Encontro de Pensamentos by Guilherme Palacios - HTML preview

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MINHA RELAÇÃO COM O CORPO

 

(Texto escrito originalmente para uma disciplina da

licenciatura em Pedagogia, um escrito do passado,

revisado em 2016)

 

Desde pequeno, eu gostava de correr, jogar bola, brincar com outras crianças. Mas sempre meu corpo era motivo de apelidos, minhas características de indígena, um isolamento dos outros. Não havia crianças que se parecessem comigo, meu pai do Equador e minha mãe do interior de São Paulo. Nessa miscigenação, não entendia que eu era o diferente, meus traços híbridos eram únicos, nunca tinha visto alguém semelhante comigo, meus colegas, poucos.

 

Sempre era motivo de piadas ou de apelidos de mau gosto.

 

Comecei a treinar para me defender, por orientação de meu pai, frequentei academias de luta. Iniciei no judô por dois meses. Depois passei pelo caratê. Pelo Tae kwon do, a luta de chutes e voadoras. Pelo Tai chi chuan, a luta da meditação. Por último, a arte marcial de quebrar as juntas do corpo: o Aikido.

Depois que comecei a frequentar essas academias, nunca mais tive problemas com esses apelidos, de certa forma meu corpo modificou, fiquei com porte musculoso, aprendi a respeitar e ser respeitado.

 

Na faculdade, o ambiente era outro, estudava na USP, as pessoas se respeitavam, e os apelidos eram poucos, apelidos entre amigos para descontrair. Eu era mais um dos muitos estrangeiros que frequentavam a academia. Meus traços corporais indígenas tinham uma relação de identificação com os povos que foram dizimados pelos homens brancos. Uma historia de sofrimento e de luta contra a dominação dos europeus, preconceito e perseguição aos explorados das colônias, uma história esquecida pelos brancos sobre os povos indígenas da América Latina.

 

Por um tempo, voltei para as academias de musculação, lá encontrei pessoas de todas as classes sociais. Será que teriam histórias parecidas com a minha?

 

Sou da periferia, e quais os tipos que frequentavam essa academia? Minhas lembranças se referem aos vaidosos que queriam ficar musculosos. Os magros que queriam um corpo bonito, apesar de não ter uma fisionomia atraente. Os guardas noturnos de bares ou seguranças. Os caras das bocas de fumo. Os peões de fábricas. Estudantes que gostavam do anabolizante para crescer.

E, eu. Que queria aumentar o meu corpo sem nenhum produto específico de crescimento muscular. Cresceram, mas não passaram de meu limite corpóreo.

 

Por trabalhar como professor, minhas idas e vindas eram esporádicas na academia, um professor ACT, não formado e de caráter emergencial de contratação, um professor temporário. Nesta época, com quase 20 anos, deixei de ser um professor estudante, aprendi a tatuar, meu corpo se tornou um espaço e lugar de desenhos tatuados que narravam uma história, cada desenho tinha o seu significado, um símbolo que condensava um conceito. Cada desenho era uma composição inacabada de meus pensamentos.

 

Ao me tornar tatuador, conheci outros mundos, sem entrar nesses mundos, sobrevivi, entre escolhas que eram colocadas diante de mim, algo não me deixou se envolver com esses outros mundos. Sentia prazer em tatuar e colorir a pele com a tatuagem.

Uma vida dupla, anônima, escondida das pessoas, uma dupla jornada para manter meus estudos e sustento de minha família, de altos e baixos econômicos. Em um momento, estava na faculdade, cursando a licenciatura de Matemática; em outro, eu estava em meu atelier de tatuagem. Um artista tatuador que sobrevivia, um mês sobrava dinheiro, no outro devia para os bancos no cheque especial.

 

Terminei a licenciatura. E a minha profissão de artista tatuador? Ia flutuando conforme as estações do ano. Voltei a lecionar, prestei concursos para ser um funcionário público. Consegui uma profissão respeitada, sairia da clandestinidade de ser um tatuador, poderia contar com um salário, todo fim de mês uma quantia para sobreviver com minha família, eu era registrado.

Mas meu corpo ainda era um motivo de preocupação, muitos desenhos tatuados, exames de admissão, estresse e medo de ser reprovado pelos médicos, o estigma voltava a rondar, dessa vez precisa esconder minhas marcas no corpo para não ser confundido com um marginal.

 

Na infância, eu era o selvagem.

Na idade adulta, sem a camisa, seria confundido com um ex-presidiário.

Ainda sinto falta da academia, seja da musculação ou das artes marciais, agora, com meus 37 anos, tenho um porte obeso, uma barriga que não me incomoda.

 

Bom, aqui deixo minhas impressões sobre meu corpo.

Como percebe, não fui hoje para a faculdade, o meu trabalho de lecionar impediu que eu continuasse o curso. Agora o que me resta é esperar outro semestre para continuar tentando adquirir créditos e me formar em licenciatura em Pedagogia. Espero que no próximo semestre você seja o mesmo professor desta disciplina.

Um forte abraço,

 

Guilherme Palacios