Likastía 01 by Rubi Elhalyn - HTML preview

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Likastía

Rubi A. Elhalyn

Dedicação

A todos que amam viajar entre mundos e histórias para alegrar seus dias.

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Um tigre nunca recua

Um tigre nunca se rende

Um tigre sempre se defende

Com garras e dentes!

Sumário

Introdução ..................................................................................................................... 6

Uma noite simbólica ...................................................................................................... 7

O rei ............................................................................................................................. 11

Teia de ajuda ................................................................................................................ 17

Lágrimas de felicidade.................................................................................................. 25

Destino......................................................................................................................... 33

Família real .................................................................................................................. 39

Nova geração ............................................................................................................... 44

Oportunidades ............................................................................................................. 51

Ritos de passagem ....................................................................................................... 59

Sentimentos conflituosos ............................................................................................. 68

Os três sacrificados ...................................................................................................... 75

Fugas ............................................................................................................................ 83

Espiões ......................................................................................................................... 89

Inocentes no inferno .................................................................................................... 96

Essa não... .................................................................................................................. 103

Iluminados ................................................................................................................. 110

Pontos fracos ............................................................................................................. 118

Comemoração do feriado .......................................................................................... 126

Ares de rainha ............................................................................................................ 135

Inimigo do meu inimigo ............................................................................................. 140

Medindo forças .......................................................................................................... 147

Ingestão de ânimo ..................................................................................................... 156

Dias de paz…? ............................................................................................................ 166

Palavras que tecem o destino .................................................................................... 174

Relação abalada ......................................................................................................... 181

Temos que conversar ................................................................................................. 189

Verdades malditas ..................................................................................................... 196

Pacto com o demônio ................................................................................................ 204

Relacionamentos dos sonhos ..................................................................................... 212

Aliados ....................................................................................................................... 220

Paixões felinas ........................................................................................................... 227

A perigosa falta de malícia ......................................................................................... 234

Boas-vindas ................................................................................................................ 242

Lições mal aprendidas ................................................................................................ 248

Motivações ................................................................................................................ 255

Quatro crianças e uma tragédia ................................................................................. 262

Coração de mãe ......................................................................................................... 268

O preço da inocência ................................................................................................. 275

Dúvidas, respostas e mais dúvidas ............................................................................. 283

Fi...fi...fi.... .................................................................................................................. 291

Talento diplomata ...................................................................................................... 300

A poderosa magia dos Tiger ....................................................................................... 306

Decisões ..................................................................................................................... 313

Os parentes de Lino ................................................................................................... 319

Guerra dos Reis– A Batalha de Jubay ......................................................................... 327

Guerra dos Reis- Vingança ......................................................................................... 333

Guerra dos Reis- O preço do poder ............................................................................ 340

Alianças Tiger ............................................................................................................. 346

Gratidão ..................................................................................................................... 355

Vida longa à Rainha! .................................................................................................. 365

Notas ......................................................................................................................... 373

Encontre a autora ...................................................................................................... 374

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Introdução

Felinos são seres tão majestosos, tão lindos e meigos... Alguns são mais selvagens e indomáveis, é bem verdade, mas é impossível ficar indiferente ao magnetismo dos felinos.

Em Likastía é mais impossível ainda considerando que é um planeta completamente dominado por felinos. Não felinos como os da Terra, mas sim felinos que andam sobre duas patas, falam, pensam, brigam, amam... É um lugar belo com duas luas de cores hipnotizantes reverenciadas desde sempre, seguindo seus caminhos entre os anéis azulados do planeta. Um planeta que encantaria a visão de qualquer um que se aproximasse daquela jóia girando pacificamente no espaço. Mas essa paz exterior esconde um conflito interno nesse pequeno sistema planetário que dura gerações.

Um planeta pode sustentar guerras, conflitos, discórdias, paixões, beleza, crueldade, nobreza e todas as peculiaridades de um povo? E de mais de um povo? De uma espécie? E

de mais de uma espécie dominante? Talvez possa... Mas... E se houver mais espécies dispostas a dominar o mesmo planeta? Uma espécie que não deveria estar ali, que não tinha esse direito? Mas quem pode garantir o direito ou a ausência dele no domínio de um planeta? A beleza de Likastía não poderá acalmar os corações daqueles que a habitam.

Muito sangue e lágrimas serão derramados antes que a paz possa reinar...

SE a paz puder reinar algum dia...

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Uma noite simbólica

Kallys, a pequena lua verde água, e Éris, a grande lua cor de fogo, pairavam quase lado a lado no céu noturno. Fazia quase uma hora que Hunna estava escondida no jardim chorando. Os pêlos alaranjados com listras negras como a noite estavam úmidos, seu focinho negro com uma charmosa mancha branca no topo estava escorrendo e ela não tinha ânimo nem para limpar. Seus pais estariam procurando por ela? Claro que estariam.

Mas não por amor à ela, disso ela tinha certeza. Estavam furiosos, sem dúvida. Nunca vira sua mãe tão irritada com sua negativa. Mas ela não iria ceder. Não podia ceder. Ela preferia viver no mato como um daqueles povos excêntricos do clã que vivia nas florestas sem classe ou cultura, preferia caçar sua comida com as próprias garras do que aceitar aquele inferno.

Instintivamente ela olhou as próprias garras. Eram enormes como devia ser com uma moça de sua posição. Estavam enfeitadas com desenhos e tintas azuladas, não eram garras acostumadas a caçar... Isso a fez chorar mais ainda. Ela morreria ali de frio e fome, talvez até fosse devorada por aqueles canibais leoninos. No jardim ela estava protegida, mas e quando saísse? Ela respirou fundo e tentou focar em um problema por vez. Primeiro tinha que achar uma oportunidade de sair do jardim sem ser notada. Seria difícil. O sistema de segurança de sua mansão era um dos melhores de toda Likastía. Mas ela não iria desistir.

Ela preferia morrer do que... Ela não queria nem pensar. Ela arrumou um pouco as roupas luxuosas que estavam desalinhadas e praguejou mentalmente por não ter tido tempo sequer de colocar algo mais adequado à uma fuga. Mas, antes de se levantar, uma mão forte com garras pintadas de preto e aquele perfume floral forte não deixou dúvidas.

- Ma...Mamãe! – Hunna balbuciou ante o olhar feroz da tigresa.

- Você a encontrou! Graças às luas irmãs! – Seu pai disse se aproximando.

- Levante-se! – A mãe de Hunna disse num rosnado perigoso. Num reflexo, acostumada à obedecer as ordens tiranas de sua mãe, Hunna se levantou e começou a tremer como se todos os seus pêlos tivessem sumido de seu corpo.

- Querida, olha o seu estado! Vamos pra dentro. – Seu pai disse já perto dela, mas a mãe de Hunna o impediu de ir abraçar a filha como sempre fazia.

- Você vai entrar. Vai se arrumar decentemente como uma verdadeira Tiger e vai voltar para a sala de jantar para cumprimentar os convidados. – A mãe de Hunna disse naquele tom que claramente não deveria ser desafiado.

- Mas eu não quero! Eu nunca vou...

PLAFT!

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A mãe de Hunna a calou com um tapa no rosto tão forte que o som ecoou no jardim e fez algumas aves voarem de seus ninhos. A jovem tigresa caiu sentada no chão com a força do golpe.

- Sua imunda ingrata! Você não tem que querer coisa nenhuma aqui! Você vai fazer o que estou mandando ou eu mesma vou arrancar cada um dos seus pêlos com uma pinça e queimar suas mãos de novo! – A mãe de Hunna disse com olhos brilhando de raiva e Hunna sabia que ela era capaz de fazer aquilo mesmo...De novo. – Será que fui suficientemente clara?

- Sim... Mamãe...

- Você é patética... Nem parece uma Tiger. Agora vá e não faça a família de seu noivo esperar... Para o seu próprio bem.

- Querida... Ela já entendeu... – O pai de Hunna tentou intervir para ajudar a filha a se levantar, mas parou no lugar com o olhar fulminante da esposa.

- É por isso que ela é fraca. Ela é um símbolo patético do inútil que você é! Deixe que essa estúpida levante daí sozinha. Vamos para dentro. AGORA! – Ela seguiu e o marido foi atrás de cabeça baixa, evitando olhar para Hunna.

~o~

Hunna estava pronta. Mais bonita do que antes com o vestido de gala mais bonito que encontrara no armário. Sua mãe não permitiu nem mesmo que a jovem escrava que lhe servia fosse ajudar. Ela não sabia bem como vestir todas aquelas peças sozinha. Sempre fora arrumada por escravas e por seu pai. Mas conseguiu. Seus pêlos estavam brilhando com a escovada que dera, suas garras estavam intactas, suas orelhas triangulares ostentavam os brincos de âmbar que combinavam com seus olhos, os anéis, pulseiras e colares escolhidos combinavam com o vestido azul como suas garras, seus longos dentes brilhavam sutilmente com o pó dourado da maquiagem tradicionalmente usada ali. Ela se sentia indo para o abate como se fazia com os felinos que não podiam viver em sociedade por carregarem alguma deficiência ou por serem insanos. Não sabia do que tinha mais medo: sua mãe ou seu futuro noivo. Não. Atual noivo porque a opinião dela não importava.

O acordo já tinha sido selado. Perguntar se ela aceitava ou não era só uma formalidade vazia, um mero ato simbólico sem importância.

Hunna segou uma lágrima furtiva, respirou fundo e desceu para a sala de jantar. As duas famílias já conversavam à mesa mostrando o quão pouco sua presença ali valia. Ela se manteve ereta, sua longa cauda levemente erguida como uma dama devia manter, e caminhou tentando esconder ao máximo seu desespero.

- Boa noite, damas e gentis senhores. – Ela disse e fez uma reverência para a família de posição mais elevada.

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- Finalmente. Achei que nos faria esperar até amanhã. – Um mulher disse, Khara, a irmã do noivo disse com desdém olhando Hunna de cima a baixo como se ela fosse uma mercadoria qualquer.

Hunna precisou de toda sua compostura para não vomitar. – Perdoem-me. Não queria aparecer de qualquer jeito.

- Não adiantou muita coisa, pelo visto. – Khara disse com um desdém notável.

- Vamos, irmã, já torturou o suficiente minha noiva. – Um tigre de porte admirável disse, se levantou e guiou Hunna para o lugar ao lado do dele. Puxou a cadeira para ela sentar e a olhou como se ela fosse a comida mais saborosa na mesa.

Como aquele tigre idiota podia achar que ela já era sua noiva? Ele nem parecia preocupado com a possibilidade dela se recusar. Poderia pelo menos disfarçar e evitar esse olhar nojento. Mas Hunna sabia que ele era assim, sempre soube. Ela o conhecia a anos, desde crianças, e nunca gostou dele. Era o ser mais cruel e desleal que conhecera. Era primo da atual família real de Likastía e sempre pareceu ter mais orgulho disso do que era saudável.

- Obrigada, senhor Tigrésius. – Hunna disse soando mais formal do que o necessário pra ver se isso colocava algum grau de distanciamento entre eles.

- Não há necessidade de ser formal, Hunna. Você é minha noiva. – Tigrésius disse com aquele ar arrogante que ela detestava.

- Ainda não aceitei seu pedido, senhor. Ainda não sou sua noiva. – Hunna disse antes de pensar duas vezes nas consequências.

Sua mãe a olhou e Hunna agradeceu aos céus por seus olhos não terem o poder de lançar garras afiadas ou ela estaria mortíssima agora.

- AHAHAHAHAHA! – O riso grave e meio rosnado de Tigrésius ecoou. – Tão espirituosa como eu me lembrava. Minha querida eu sei que você não conseguiria resistir à chance de ser minha mulher. Não se preocupe com formalidades. Sei que sua resposta é um grande e retumbante ‘sim’.

- Porque não me pergunta então? – Hunna disse tomada por uma coragem que não sabia de onde vinha. Os tigres eram mesmo aos seres mais corajosos do planeta, mas ela sempre tivera tanto medo de tudo graças à sua mãe socipata... Mãe... A coragem de Hunna sumiu só de lembrar dela, o medo do que aconteceria se ela se negasse...

- Muito bem. Que seja então. – Tigrésius disse. Se levantou, ajoelhou ao lado da cadeira de Hunna, pegou sua mão e disse no tom mais formal que pôde. – Hunna, filha de Ilena e Caryo, a mais bela e nobre Tiger dentre os Tiger que conheço, você aceita ser minha esposa?

O medo de Hunna falou mais alto em seu íntimo. Ela tremeu por dentro e Tigrésius percebeu. Para sua infelicidade ele interpretou esse tremor de forma errada e sempre se

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aproveitaria disso. – Eu....aceito. – Hunna respondeu e Tigrésius a puxou para ficar de pé e a abraçou. Hunna olhou para a porta piscando para conter as lágrimas, seus olhos se focando no símbolo de Likastía entalhado. O planeta anelado, as duas luas, o símbolo da realeza dos tigres, os dentes afiados e a coroa nunca foram tão interessantes quanto naquela interminável noite. Ela não conseguia encarar mais ninguém e ninguém parecia se importar com sua completa ausência espiritual daquela ‘comemoração’ que mais lhe parecia uma condenação. Ela agora só podia esperar que não fosse tão ruim como previa, que tivesse forças para viver aquele casamento, que tudo desse certo, quem sabe até pudesse tentar ser feliz.

É como diz o velho provérbio:Um tigre nunca recua; Um tigre nunca se rende; Um tigre sempre se defende com garras e dentes! ” Hunna pensou.

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O rei

Três anos de casamento com Tigrésius se mostraram os anos mais difíceis da vida de Hunna. Khara, sua cunhada, era maldosa ao extremo. Sempre a humilhando, mostrando o quão fraca ela era, enquanto Tigrésius apenas ria das maldades da irmã. Se fosse só isso, pelo menos seria suportável. Mas seu marido era extremamente violento desde o primeiro dia do casamento. Hunna tinha grandes cicatrizes pelo corpo, escondidas sob o pelo espesso, e um corte na orelha direita. Não havia um motivo específico para seu marido a agredir. Às vezes era por algo tolo como não ter usado um determinado perfume ou simplesmente porque ele chegara em casa com vontade de descontar em alguém seus problemas no trabalho. Muitas vezes Hunna teve plena certeza de que ele a agredia apenas porque se sentia feliz com isso. Ela não podia pedir ajuda a ninguém. Quem acreditaria nela se sua própria mãe vivia falando para todo mundo que ela era histérica e louca, que se batia nas coisas sozinha? Sua mãe espalhara muitas dessas histórias ao longo dos anos para esconder as surras sádicas que dava nela, ou as noites e noites jogada na masmorra por ter comido algo que não devia para não perder a boa forma.

Quando Tigrésius propôs se casar com ela a sociedade viu nele um homem bom e apaixonado, só um pouco temperamental e agressivo pela sua profissão. Então, de quebra, Tigrésius ganhou uma bela esposa, uma enorme propriedade na fronteira mais rica da região que pertencia à Hunna, limpou em partes sua fama de sádico e cruel e ganhou uma forte aliada, já que Ilana, a mãe de Hunna tinha grande influência e era amiga pessoal do atual rei. O rei era primo de Tigrésius, mas não confiava nele. Talvez o rei visse o ser ambicioso que era seu primo. Mesmo assim, talvez por consideração de família e pela indiscutível habilidade tática, Tigrésius era o General das Forças Tiger, o exército mais poderoso de Likastía, abaixo apenas da guarda pessoal do rei. Naquela tarde Hunna, vestindo seu lindo e simples conjunto azul celeste, estava no jardim da mansão em que morava com o marido e a cunhada, sua gaiola dourada, quando Tigrésius entrou como uma tempestade do deserto, mesmo quando ele estava de bom humor, aquela sensação de perigo constante quando ele estava por perto assumindo o ar ao redor de Hunna.

- Levanta, imprestável! Seu marido chega e você continua sentada como uma inválida.

– Tigrésius disse com um sorriso exibindo os dentes afiados. Ele estava de bom humor.

Hunna só não sabia se isso era bom ou ruim.

- Boa tarde, marido. – Hunna se levantou cabisbaixa e trêmula. Não precisava olhar para o marido, ela sabia que ele sorria mais amplamente, divertindo-se com o meno dela.

- Venha aqui, idiota. Não vai beijar seu marido? Está gastando seus beijos com os escravos por acaso?

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Hunna estremeceu. Da última vez que ele a puxou para perto com a desculpa de lhe fazer um carinho, ele mordeu seu ombro com tanta força que tirou sangue e ela ainda estava se recuperando do ferimento. Ele não esperou que ela se aproximasse, a puxou pelo pulso e a abraçou.

- Vamos, minha cara, não vai me dizer que está com medo de mim? – Ele disse em sua orelha ferida, mas, surpreendentemente para Hunna, ele não a estava apertando ou machucando de qualquer forma. – Diga que sentiu minha falta.

- Si..sim. – Hunna mentiu e ambos sabiam que era mentira, mas ele adorava esses jogos de domínio sádico e ela vivia apavorada perto dele. – Senti...sua falta.

Tigrésiu se afastou apenas o suficiente para olhar no rosto da esposa, levantou seu queixo trêmulo e disse: - Não. Diga: “senti sua falta, meu amado marido”.

- Eu...eu...eu senti sua fafalta, meu amado...marido. – Hunna disse rezando mentalmente a todos os deuses de Likastía para que ele não a machucasse de novo. As preces funcionaram porque ele a beijou com tamanha doçura que era quase inacreditável.

Ele nunca fora doce ou gentil com ela. Nunca. Tinha algo muito errado. Se Tigrésius estava de tão bom humor assim é porque algo muito ruim estava acontecendo com alguém.

- Assim está melhor. Tem um vestido e joias novas na nossa cama. Vista-se que hoje vamos à festa de aniversário do rei. – Ele disse acariciando o rosto dela. – E você será a dama mais perfeita e impecável do baile. Você entendeu?

- Sim. – Hunna saiu o mais rápido que a dignidade permitia e foi se arrumar, sua escrava já aguardando no quarto.

A jovem escrava era pouco mais do que uma menina, mas Hunna já tinha visto seu marido abusando dela várias vezes. Ele não tentava esconder, uma vez ela o vira em pleno ato com outra escrava e ele apenas a mandara sair em tom ameaçador e depois ainda lhe dera uma surra por ter o incomodado em seu momento de “relaxamento”. A jovem escrava Teira era uma felina de pêlo alvo com círculos cinza-escuros, e os caninos cortados bem pequenos e a calda cortada até perto do corpo como se fazia com os escravos, tinha bonitos olhos azulados como o céu e era muito gentil, a única pessoa gentil com Hunna ali.

A maioria dos escravos tinha medo até de respirar perto de seus senhores. Tigrésius tinha uma regra em casa que dava bônus em comida para escravos que entregassem outros escravos que descumprissem suas regras, dentre elas a de falar ou olhar para Hunna.

Aqueles que descumpriam essa regra sofriam pesadas torturas no pátio da mansão na presença de todos. Teira passara meses com medo de falar com a esposa de seu senhor, mas com a insistência de Hunna em puxar conversa, sabendo que estavam sozinhas, a escrava relaxou e se tornou a única confidente da tigresa.

- Ele a machucou de novo, senhora? – Teira perguntou quando Hunna entrou no quarto.

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- Não. Sinceramente ele foi até gentil. – Hunna e Teira estremeceram.

- Gentil? Senhor Tigrésius? – Teira pressentia o perigo assim como Hunna. Ambas conhecia o tigre de todas as formas que uma fêmea pode conhecer e sabiam que isso era um péssimo sinal.

- Estou com medo, Teira. Vamos ao baile hoje, o do rei, e eu tenho muito medo do que Tigrésius possa estar planejando. – Hunna confessou e encostou a cabeça no ombro da escrava.

Teira tentou ser positiva, talvez o tigre estivesse apenas de bom humor, talvez nada de ruim fosse acontecer. Mas quando ela disse isso nem mesmo a própria Teira se convenceu.

Não querendo abusar da sorte, Hunna se arrumou com ajuda da escrava e saiu rapidamente. O vestido dela era magnífico e as joias nem se fala. Mas sua maior surpresa foi quando chegou na sala e encontrou Khara, sua cunhada, e viu que a roupa dela não era mais bonita que a sua. Estranho. Geralmente Tigrésius dava as mais bonitas joias e roupas para a irmã e faziam questão de deixar claro que, perto de Khara, Hunna parecia uma velha.

Era a diversão dos irmãos todas as vezes que iam sair. Khara a olhou com indiferença.

- Mesmo num magnífico vestido e com as mais belas joias você consegue parecer patética. Me diga, como você faz isso? É algum tipo de talento especial, alguma magia única no mundo que só você tem de parecer ridícula e fraca? – Khara disse com um sorrisinho de canto que fazia Hunna querer morder o pescoço dela.

- Boa tarde, cunhada. – Hunna respirou fundo e disse. Não ia cair nas provocações de Khara. A única vez que respondera à altura, Tigrésius quebrou o braço dela e a segurou para Khara bater nela até se cansar.

- Senhoras. Khara você está magnífica como sempre. – Tigrésius disse dando um beijo gentil na mão da irmã enquanto esta sorria triunfante olhando para Hunna. – Hunna, você está bem também. – Tigrésius disse mal a olhando e deu o braço para ambas, uma de cada lado. – Bem, hora de usar minhas duas joias, as tigresas do meu lar, para me dar mais poder e beleza como macho alfa que sou.

Hunna sentiu que poderia vomitar só de sentir aquele braço asqueroso ao redor do seu.

~o~

O rei Estefan era um tigre de aparência forte, olhos firmes, corpo perfeito para os padrões de sua espécie, mas não tinha aquela crueldade no olhar como Tigrésius. Ele era o tipo de criatura que você respeita e segue, mas não tem medo, a menos que você fosse seu inimigo. Ai você teria até pesadelos com ele. A esposa do rei morrera um ano após o casamento de Hunna e, desde então, sua mãe estava sempre rondando o rei, demonstrando abertamente seu interesse nele. Seu pobre pai não aguentou as

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humilhações de ver sua mulher se oferecendo como uma qualquer para o rei, sua filha sofrendo com o marido, e morreu no ano anterior de um ataque cardíaco fulminante.

Ilana era inteligente e muito bonita. Assim que seu marido morreu ela usou isso a seu favor, fez o papel da viúva sofrida e, se aproveitando da tristeza do próprio rei, acabou indo parar em sua cama. Desde então ela não se desgrudava mais dele. Estefan por um lado tentava se afastar de Ilana, sabia que ela não era a tigresa mais virtuosa da sociedade, mas por outro... Ela era irresistível e ele não conseguia evitar a atração que sentia por ela. Mas Estefan não era idiota. Sabia que Ilana queria ser rainha, mas deixara bem claro que nunca se casaria de novo. Ele não disse que não se casaria com ela porque não queria ser grosseiro. Só que Ilana era astuta e sabia bem disso, mas não iria ceder. Estefan era só um meio para um fim.

De qualquer forma, naquela festa Ilana, como sempre nos últimos meses, estava sentada ao lado do rei como sua acompanhante de honra. Não que ela tivesse alguma honra, mas enfim... Quando Hunna entrou com o marido e a cunhada, Ilana cumprimentou ela calorosamente como sempre fazia em público, especialmente quando o rei estava por pertom, e abraçou Tigrésius e Khara. Nada em seus gestos podia ser um sinal, um indicativo daquilo para quem visse de fora, mas Hunna sabia que havia algo entre o marido e a mãe porque os vira várias vezes saindo de quartos onde não havia mais ninguém e sua mãe sempre lhe dizia com um sorriso sacana que Hunna tinha sorte por ter um marido tão viril.

Hunna se sentia enojada e infeliz. Nem podia chorar porque se seu marido ou Khara vissem, ela seria alvo de mais humilhações ainda, ou pior... Com um sorriso forçado, mas muito convincente, Hunna seguiu o marido cumprimentando seus aliados, rindo das piadas sem graça deles, fazendo todo tipo de coisa estúpida que se espera da esposa de um oficial de alto escalão e membro da nobreza. A família materna de Hunna era prima em algum grau distante da família real, mas o lado paterno era o que detinha o real poder da nobreza em seu sangue. O rei era simplesmente tio de Caryo e fora muito amigo de seu pai, ambos eram quase como irmãos apesar da diferença de idade, o que colocava Hunna acima de Tigrésius no quesito nobreza e mais próxima do rei que tinha um carinho enorme por ela.

Ela sempre soube que essa fora uma das razões para Tigrésius se casar com ela.

Em certo ponto o rei pediu para dançar com Hunna, como já era costume. Naquela noite ela se perguntara mais uma vez se poderia contar com a ajuda do rei, se ele a salvaria de seu casamento torturante, mas seu medo do marido que a observava como um predador à distância sempre vencia. No fim, ela mentia para o rei e dizia ser muito feliz com o marido. Enquanto dançavam sorrindo com a companhia um do outro, o rei ficou mais pesado. Seus olhos ficaram desfocados, sua boca entreabriu procurando por ar. Ele a olhou horrorizado e Hunna, sempre tão empática e sensível, sentiu seu coração despedaçar com o medo que via nos olhos do rei. Ele soltou o corpo de Hunna e caiu no chão com um baque.

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O salão ficou em silêncio total por alguns segundos. Tigrésius correu para verificar o rei, enquanto Ilana abraçava a filha como se realmente estivesse preocupada com ela. Hunna apenas olhou horrorizada para o rei que estava soltando uma espuma negra dos lábios, os olhos abertos e sem vida.

- Ele está morto. – Tigrésius disse com um pesar na voz que convenceria qualquer um.

Menos Hunna. Ele estava feliz. Ela sabia disso com certeza. – O rei foi envenenado. FECHEM

OS PORTÕES! NINGUÉM ENTRA E NINGUÉM SAI DAQUI ATÉ SEGUNDA ORDEM! – Ele gritou e guiou o comandante da guarda pessoal do rei nas providências necessárias. Mas, esse não era o trabalho de Tigrésius. Em um caso como este apenas o comandante da guarda deveria dar ordens ali, ou o herdeiro oficial do rei. Mas Estefan não tinha herdeiros. Sua filha fugira anos antes com os temíveis canibais Leoninos que viviam nas selvas como animais.

Porque eles estavam obedecendo Tigrésius? Não podia ser coisa boa.

~o~

Horas se passaram e, no fim da primeira varredura, foi encontrado um veneno feito com a planta das Montanhas Amarelas, uma cordilheira além das florestas e vales, lugar que era habitado por uma das tribos canibais dos Leoninos. A conta era fácil. Os Leoninos mataram Estefan envenenado. Mas como e porque era algo que levaria tempo para ser investigado. Antes de liberar os convidados daquele malfadado baile, o mago-ancião do rei e o comandante da guarda pessoal chamaram a atenção de todos.

- Damas e cavalheiros, nosso reino está sob ataque daqueles bárbaros canibais mais uma vez. O assassinato do rei não deixa dúvidas quanto a isso. O rei iria anunciar esta noite sobre sua decisão, mas, infelizmente não houve tempo. – O mago-ancião Klaus dizia com um pesar na voz. – Meses atrás nosso amado rei Estefan me ordenou que preparasse os ritos para que ele nomeasse seu herdeiro.

Um murmúrio percorreu o salão.

- Neste momento de prenúncio de guerra, - o comandante disse – não podemos ficar sem um rei para nos guiar. Então, após conversar com o nobre ancião aqui presente, decidimos que deveríamos anunciar de uma vez a vontade do rei.

Hunna sentiu Tigrésius se inflar ao seu lado e, ao se virar para ver sua mãe a poucos passos de distância, a viu sorrir discretamente. Um frio percorreu a espinha de Hunna.

- De acordo com este documento com o selo mágico do rei, como podem ver, - Klaus ergueu um pergaminho com o selo mágico, o emblema dos reis de Likastía, brilhando em cores de fogo topo do papel com um nome logo abaixo que fez Hunna estremecer – o herdeiro nomeado pelo rei Estefan, nosso novo rei, é o nobre e poderoso General das Forças Tiger, Tigrésius.

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Uma onda de apalausos percorreu o salão, Hunna atordoada demais para copiar o gesto, e Tigrésius com cara de surpresa que qualquer idiota veria ser falsa, caminhou para o lado do mago e aceitou o anel do rei que horas antes estava no dedo de Estefan, o selo mágico real que apenas o rei poderia usar. Tudo ficou escuro e Hunna caiu no chão desacordada.

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Teia de ajuda

O sol já estava alto no céu quando Hunna abriu os olhos sensíveis. Seu corpo doía tanto que parecia ter escalado todas as Montanhas Amarelas da cordilheira e lutado contra todos os Leoninos.

- Senhora, graças às Luas Irmãs! – Teira disse visivelmente cansada. Hunna não precisava ler mentes pra saber que a escrava passara a noite toda com ela.

- Que...O que aconteceu? – Hunna tentou se levantar, mas seu corpo não ajudou. Teira se aproximou e a ajudou a se sentar um pouco na cama.

- Devagar. Seu corpo ainda precisa se acostumar com os movimentos depois de tanto tempo parado. – Teira disse visivelmente preocupada.

- Tanto tempo? Como assim? A quanto tempo estou deitada? – Hunna perguntou confusa.

- Nove dias, minha senhora. – Teira disse e viu o espanto no semblante de Hunna. – A senhora esteve entre inúmeras crises de febre emocional. É compreensível dada a situação que a senhora presenciou, mas...

- Mas minha família deve me considerar ainda mais fraca agora. – Hunna completou o pensamento. – O enterro do rei! Eu perdi a chance de me despedir dele... Oh... Luas Irmãs...

Tigrésius é o novo rei!

- Sim e... Não sei se deveria lhe contar dado seu estado, mas é melhor que saiba logo para se preparar. – Teira disse e Hunna acenou pra que ela continuasse. – Ele declarou guerra aos Leoninos e está preparando um ataque sorrateiro. Um comandante foi contra a ideia porque o culpado pelo assassinato do rei não foi encontrado ainda. E... Bem...

Tigrésius o jogou num poço profundo, estreito e seco no meio da praça a dois dias.

Ninguém pode sequer se aproximar do poço para jogar comida ou água, ou mesmo dar alguma palavra de conforto para o comandante. Creio que ele irá morrer ali em pouco tempo.

- Deuses... – Hunna colocou uma pata na frente da boca, assustada com a crueldade. –

E ninguém, nenhum conselheiro, ninguém fez nada pra chamá-lo à razão?

- Um nobre que não conheço tentou conversar calmamente com Tigrésius, mas ele teve seus pêlos raspados com uma espada, mel foi derramado em seu corpo e foi pendurado de cabeça pra baixo no alto da torre mais alta do castelo. O coitado passou o dia inteiro ali, sob o sol quente, e na manhã seguinte aves de rapina o devoraram. Ainda posso ouvir os gritos na minha mente quando fecho os olhos... – Teira estremeceu. – Depois disso

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os poucos que são contra Tigrésius não são tolos o bastante para declarar isso abertamente.

- Pelo menos ele a deixou em paz durante esses dias? Quero dizer... Ele deve estar ocupado com as novas rameiras disponíveis, as crueldades e o castelo, não é?

- Não... Ele ainda arranja tempo para me... A senhora sabe. Mas... Temo que não seja só isso, mas... Eu, eu não sabia como contar ou se devia contar sem lhe falar antes. – Teira parecia muito preocupada.

- Qual o problema?

- Bem, creio que seu estado de saúde é muito mais emocional, mas, pelo que pude verificar, e, graças aos céus nosso rei não chamou um médico para a senhora, ou então ele teria descoberto e não sei como ele reagiria, e... – Teira procurava a melhor forma de dizer.

- Ele nem mesmo se deu ao trabalho de procurar um médico para mim... Isso significa que eu não tenho mais serventia pra ele e que minha vida não importa. – Hunna disse melancolicamente. – Mas, Teira, por favor querida, vá direto ao ponto.

- Certo. Bem... A senhora está fraca porque há mais, pelo menos, duas bocas para alimentar aí dentro. – Teira sinalizou para o ventre de Hunna.

Hunna não sabia o que dizer, ou mesmo o que pensar. Mas confiava totalmente em Teira. A jovem felina tinha um talento natural para as artes mágicas que envolviam saúde.

Se não tivesse nascido como filha de escravos, Teira poderia ter sido uma grande sacerdotisa da cura com tamanho talento. Ela não se enganaria, não era uma possibilidade.

Aquilo era uma certeza.

Mas então o medo, a sensação de solidão e vazio que Hunna sempre sentia, foi substituído pela alegria e o carinho por aquelas coisinhas que a menos de um minuto ela nem sabia que existiam. E então, o medo reassumiu o lugar. – Tigrésius não vai gostar. Se pra ele eu não tenho mais serventia, lhe dar crias também não deve ser uma possibilidade para ele.

- Por isso eu não contei à ele. – Teira disse e sabia que Hunna estava preocupada com sua segurança, afinal a escrava escondera uma informação de seu dono. – Não tenho medo, minha senhora. Em perigo com o rei eu sempre estive. Além do mais, eu não menti. Em momento nenhum ele me perguntou muita coisa sobre seu estado. Na verdade, tudo que ele faz é perguntar uma vez por dia se a senhora está morta.

Hunna engoliu aquele nó de tristeza e medo em sua garganta. – Oh, Teira, o que vou fazer?

- Fuja. – Teira disse sem rodeios. – Precisa ser forte para aguentar o que irei falar, mas a senhora tem que saber para conseguir se proteger e proteger seus futuros filhos.

- Diga. Eu posso ser forte. – Hunna disse tentando se convencer disso.

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- Bem, todos os escravos sabem a anos, muito antes de seu casamento, mas ninguém seria tolo para revelar esse segredo. – Teira começou e o nojo em seu semblante era evidente. – Khara e Tigrésius são amantes.

- O que? – Hunna perguntou de olhos arregalados. Mas, no fundo, ela sabia que isso explicava muita coisa. – Mas... Eles são irmãos...

- Meio-irmãos. A senhora Khara é filha do pai de Tigrésius com uma amante. Ele obrigou a esposa a criar a menina como punição por algo errado que a esposa fez. Não sei o que foi, mas, com o tempo, Khara cresceu e se tornou uma tigresa muito bonita e Tigrésius a conquistou. Os dois mantém essa relação nojenta desde que ela era uma criança e se tratam como se fossem um casal. A mãe deles morreu de desgosto quando descobriu e, anos mais tarde, quando o pai deles descobriu, deu uma surra em Khara de tirar sangue.

Tigrésius o matou nessa mesma noite.

- Isso...é... Deuses! Eu nem sei o que dizer sobre essa nojeira...

Essa...crueldade....abominação... – Hunna tentou pensar coerentemente e falhou.

- Mas isso não é tudo.

- Como pode ser pior?

- Desde que a senhora se casou com esse... Tiger... Sua mãe e ele vem tendo encontros amorosos aqui com muita frequência. A única pessoa que não sabia era a senhora, porque o senhor não fez questão nenhuma de esconder de mais ninguém. – Teira disse e pelo olhar de Hunna ela entendeu. – A senhora desconfiava, não é?

- Sim. Mas eu não entendo. Se Khara se vê e é tratada como esposa dele e ela provavelmente sabe dessa relação com minha mãe, porque ela não fez nada? Porque trata minha mãe tão bem?

- É isso que eu também estava me perguntando. De qualquer forma, agora a senhora sabe que não pode confiar em sua mãe. Deve fugir o quanto antes. Esforce-se para melhorar e rápido. Eu direi ao senhor que a senhora ainda não teve nenhuma melhora, até o farei acreditar que a senhora piorou um pouco. Muitos escravos aqui estão ajudando de coração porque a senhora sempre foi gentil e justa conosco. Quando estiver melhor nós a ajudaremos a fugir. – Teira disse e Hunna não se conteve.

Chorando e murmurando inúmeras palavras de agradecimento, ela abraçou Teira, a coisa mais parecida com uma família de verdade que ela tinha no momento.

~o~

Mais motivada do que nunca, Hunna comeu e bebeu tudo que Teira levava para ela.

Toda noite Tigrésius arrastava a escrava, às vezes mais de uma, para seus abusos. Khara agora ficava o tempo todo no castelo, bem como a mãe de Hunna. Ambas pareciam as

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rainhas do castelo, mais Ilena do que Khara, na verdade. Tigrésius voltava para sua mansão apenas para abusar das escravas e perguntar a mesma coisa pra Teira: - Ela já morreu?

Teira sempre respondia a mesma coisa: - Não senhor. Ela piorou um pouco, mas ainda está viva.

- Droga! Será que essa estúpida decidiu lutar logo agora? Assim que ela morrer mande um mensageiro ao castelo. – Tigrésius sempre respondia e saía de volta para o castelo que agora era todo seu.

Então, numa noite, o caos se espalhou pela cidade. Um grupo de leoninos invadiu a cidade, após descobrirem que um ataque contra eles estava sendo preparado. O grupo seguiu para o castelo, quebrando e incendiando muitas casas no caminho. Obviamente eles não estavam tentando matar nenhum felino da cidade, a menos que os atacassem (e muitos atacavam querendo ser lembrados como heróis). Seu foco era o castelo. Hunna estava bem o bastante a algumas noites para andar e até correr um pouco. Teira entrou no quarto sem o sinal que combinaram e Hunna se assustou de pé perto da cama, temendo ser seu marido.

- Teira! Pensei que fos...

- Não há tempo. Tome. Vista isso. – Teira entregou o conjunto azul favorito de Hunna e uma capa e jogou uma bolsa na cama. – Você precisa ir. Os leoninos estão atacando a cidade e indo para o castelo. São poucos, mas eles nunca precisaram ser muitos para derrubar um grande exército. Mas o caos será seu aliado. No meio da confusão ninguém irá se preocupar com um Tiger correndo por sua vida. Fuja para a cidade dos jaguares. Eles recebem muitos felinos de muitas famílias sem fazer perguntas e há muita oportunidade de trabalho. Você poderá se misturar entre eles. Procure uma fazenda-tecelagem chamada Lhagua. A dona é uma senhora que tem motivos de sobra pra odiar seu marido. Lá a senhora poderá conseguir trabalho como tecelã, a senhora é excepcional nessa arte. Não diga à mais ninguém quem a senhora é. Não sabemos até onde vai a influência de seu marido. – Teira dizia rapidamente enquanto ajudava Hunna a se vestir. – Alguns escravos colocaram um cavalo não marcado perto da Região de Comércio, atrás do jardim da praça.

Vá até lá com cuidado, monte e fuja. Aqui tem comida, água, uma poção para aumentar suas forças e duas mudas de roupas.

- Teira... Venha comigo. – Hunna se virou e agarrou os ombros da escrava que era mais sua amiga do que qualquer outro ser vivo no mundo. – Por favor. Você pode se livrar dele também. Nós nos apoiaremos.

- Eu... Eu não posso. Ele me mataria se me encontrasse. Na melhor das hipóteses. –

Teira tremeu lembrando dos gritos do conselheiro pendurado na torre do castelo. – Você tem por quem lutar. Agora tem seus filhos que eu amo como se fosse minha família também... Oh... Eu não quis ser insolente...

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- Não foi. Fico feliz que pense assim. Você é minha família também, Teira. É por isso que não posso deixá-la aqui. Preciso saber que, se algo me acontecer, meus filhos não ficarão desamparados. Não posso ir embora sabendo que deixei você aqui à mercê dessa corja toda. Venha comigo, Teira. Eu a amos demais, não conseguiria viver sabendo que você foi morta por aquele animal podre com quem me casei. Ele saberá que você me ajudou.

Você sabe disso...

Em um impulso de vontade de viver, Teira pegou uma capa dentre as que ficavam no armário de Hunna, puxou sua senhora pelo corredor, jogou um pouco de comida e água em uma bolsa simples que usava para carregar as comprar no mercado, e fugiram da mansão de Tigrésius.

~o~

As ruas eram a imagem perfeita do caos. Felinos de inúmeras espécies corriam aos gritos e rugidos, alguns tentavam lutar contra alguns leoninos e eram rapidamente mortos, outros tentavam apagar o fogo das incontáveis residências e comércios em chamas, outros se escondiam nos cantos, outros fugiam para os portões de saída da cidade. Hunna e Teira precisariam fazer um caminho mais longo que o previsto. O caminho planejado estava bloqueado por destroços em chamas de uma casa que caíra quase em cima delas, acertando em cheio outros felinos que fugiam à frente delas. Agora elas teriam que passar pela praça principal, contornar a Região dos Phanter, a grande área destinada à casas de eventos, então chegariam na Região do Comércio e depois a praça menor com seu jardim onde o cavalo estava escondido. Pelo menos, rezavam para as Luas Gêmeas pra que ainda estivesse lá.

Na praça principal o caos não era menor. As amigas duvidavam que houvesse algum lugar onde o caos fosse menor naquela cidade agora. Durante a correria um leonino parou em frente à elas. Ele carregava as famosas espadas de lâminas curvas de seu povo, tinha uma enorme juba amarelada e o pelo curto de um amarelo quase luminoso sob a luz das chmas nas residências ao redor. Ele olhou para elas esperando para ver se elas seriam do grupo dos felinos que atacavam bancando os heróis ou dos mais inteligentes que apenas corriam por suas vidas. As duas não tinham intenção nenhuma de lutar, se dependesse delas, os leoninos podiam invadir o castelo e devorar Tigrésius ainda vivo. Seria um favor.

Sem desviar o olhar, cautelosamente, as duas deram alguns passos para trás esperando que o leonino entendesse que elas não eram uma ameaça. Ele entendeu e abaixou as espadas.

Deu um passo para o lado e sinalizou para que elas passassem.

Elas acenaram com a cabeça em uma gratidão silenciosa. Sem desviar o olhar, lentamente e com a maior cautela possível, elas passaram por ele, mas, quando estavam lado a lado com o leonino, Hunna ouviu um som bem distante. Suas orelhas triangulares se

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mexeram captando o som e, com uma troca rápida de olhares com o leonino, percebeu que ele também ouviu. Mas ele não parecia interessado em seguir o som. Hunna por outro lado... Foi um impulso, um reflexo involuntário que fez Hunna passar pelo leonino, mesmo correndo o risco de ser morta por ele, e seguir na direção do som, pouco atrás da fera de jubas douradas. O leonino foi pêgo de surpresa pelo movimento ágil da tigresa, mas, de alguma forma, ele sabia que ela não era uma ameaça, que estava, por algum motivo louco, tentando ajudar alguém. Ele correu na mesma direção e Teira, preocupada com a amiga, seguiu ambos sem entender nada já que ela não tinha escutado o som.

Hunna parou sua corrida desenfreada quando garras firmes a seguraram na beira de um buraco. Suas patas estavam perigosamente na borda circular do buraco fundo e a única coisa que a impedia de cair era aquela pata forte segurando-a pela gola de seu conjunto.

- Você está louca, mulher? Quer se matar? Sei formas bem mais rápidas e menos dolorosas de fazer isso. – A voz firme, meio rosnada, do leonino sussurrou em sua nuca lhe causando um arrepio incontrolável.

- Largue ela ou eu mato você! – Teira disse apontando a faca de cortar carne que roubara da cozinha.

O leonino nunca vira nada mais cômico. Uma felina de presas curtas, trêmula com uma faquinha de nada o ameaçando com aqueles olhos apavorados.

- Se eu a soltar você acha que ela vai criar asas, menina? – Ele perguntou divertido.

Então deu um puxão em Hunna e a abraçou para impedir que ela caísse de cara no chão.

Um arrepio conhecido, um fragmento luminoso surgiu em sua mente. Um não. Dois. Ele entendeu. Sua magia nunca se enganava.

- So....orro... – Um sussurro quase inaudível em meio àqueles caos surgiu do buraco e dessa vez até mesmo Teira ouviu.

- Você ouviu também não é? – Hunna perguntou se afastando do leonino. – Temos que ajudá-lo.

- Não. Não temos. Seja quem for, posso sentir sua vida praticamente no fim. Sua força vital é tão fraca que, sinceramente, não sei como ele ainda está vivo, muito menos falando.

– O leonino respondeu.

- Hunna.... É...você acha que é ele? Mas... Faz quase três semanas.... – Teira disse ainda apontando a faca pro leonino.

- Eu vou lá. Não vou deixar ele ali. Isso não é certo. – Hunna disse e virou-se para o buraco.

- Não seja tola. Como vai tirar essa criatura daí? O buraco é fundo e ele não tem forças. E... – O leonino viu que Hunna nem mesmo o ouvia. Teira já estava ao lado dela ajudando. As duas já estavam tirando as peças de roupas de uma bolsa e amarrando uma na outra pra usar como corda. Ele sabia que aquelas pecinhas nunca chegariam até o fundo

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do buraco e nenhuma das duas tinha forças pra segurar a corda. – Eu mereço. Vamos saiam daí. Eu faço isso.

- Não precisa. Ele é do nosso povo e tenho uma dívida com ele. Eu vou descer. – Hunna disse. Ela se sentia culpada pelo que seu marido fez àquele Tiger.

Mas o leonino já estava em ação. Sinalizou pra um dos seus companheiros, sinalizou para a corda em seu cinto, o outro a corda grossa da cintura e entregou sem fazer perguntas. O leonino que falara com as duas, parecia ser um tipo de líder, pegou uma corda igual de sua cintura e uniu as duas com um nó hábil. – Não há nenhuma razão neste mundo miserável que me faria deixar uma felina grávida fazer esse esforço.

Quando ele disse isso, Hunna e Teira se entreolharam em choque. Será que estava tão evidente que ela estava grávida? Mas seu corpo ainda parecia idêntico.

Tão rápido que ambas nem se deram conta, o leonino chefe desceu pela corda que o outro leonino segurava com tamanha força que faziam as veias de seus braços saltarem visivelmente acima do pêlo curto. O chefe foi içado pela corda e surgiu do buraco com um tiger de roupas rasgadas, sujo, fedido, ossos visivelmente quebrados, e tão magro que sua ossada estava visível em todo seu corpo sob os pêlos listrados de laranja e negro.

- Vocês têm para onde ir, cara rainha? – O leonino disse e Hunna sentiu seu corpo gelar.

- Não, não sei do que está falando...

- Não banque a tola comigo. Acha que não investigo meus inimigos? Sei de quem você é esposa e porque está fugindo. E não. Não tenho nenhum interesse em ferí-la para atingir seu marido. Nós dois sabemos que ele não sentiria nada se você fosse morta, talvez até gostasse. Este aqui deve ser o conselheiro tolo o bastante para enfrentar o rei... Pobre coitado. Achei que estava morto à esta altura. Talvez eu deva matá-lo e poupá-lo desse sofrimento...

- Não! Eu vou cuidar dele. Nós duas vamos. – Hunna disse e Teira segurou sua mão, entrelaçando seus dedos. O leonino olhou Hunna com interesse.

- Nós... Nós temos pra onde ir. Temos um plano. – Teira disse.

- Claro que vocês tem... – O leonino disse. – Suponho que o cavalo sem marcação perto da praça era de vocês então. – O desespero surgiu como uma sombra nos rostos das duas felinas. – Sinto muito. Eu não sabia. Nós o soltamos. A esta altura deve estar à léguas da cidade. Mas vou compensá-las. Meu soldado aqui as guiará e levar esta pobre criatura para a saída da cidade e lhes conseguirá uma carroça. Assim vocês viajarão melhor e poderão levar esse cara aqui.

- Porque? Porque está nos ajudando? – Hunna perguntou ainda desconfiada.

- Porque vocês são corajosas e nobres e eu respeito isso. – Ele respondeu enquanto o outro leonino já estava com o tigre quase morto jogado no ombro.

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- Porque deveríamos confiar nele? Isso pode ser uma armadilha. – Teira disse para Hunna.

- Porque, menina, vocês não têm opção se quiserem salvar este tigre azarado. Além do mais, - o leonino chefe acrescentou – se eu quisesse lhes fazer mal, já teria feito, não acham?

Ele tinha razão e elas sabiam disso. Elas acenaram com a cabeça para ele aceitando a ajuda inesperada. Ele deu um passo elegante para o lado e fez um sinal cortês com o braço sinalizando para elas passarem. Sem soltar as mãos uma da outra, as duas passaram e Teira disse, abaixando o olhar timidamente: - Obrigada, senhor.

O outro leonino, mesmo com um tigre moribundo no ombro, dobrou os joelhos e inclinou a cabeça em uma reverência rápida, se virou e começou a caminhar por entre as sombras.

O leonino chefe olhou para a jovem que obviamente era uma escrava e, quando as duas se viraram para seguir o soldado, ele chamou as duas e disse: - Boa sorte, menina... e lady Hunna.

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Lágrimas de felicidade

O soldado leonino ajudou mais do que apenas levando o grupo até uma carroça.

Fagrir, o ex conselheiro do rei, estava entre a vida e a morte. O leonino, um tenente sério e calado de sua tribo, enviou uma mensagem ao superior que ajudara aqueles tigres e seguiu o grupo. Hunna e Teira morriam de medo do leonino durante boa parte do caminho e pensavam numa forma de derrubá-lo assim que tivessem chance. Mas o tenente acabou ganhando a confiança e o respeito delas por sempre tomar a iniciativa e ajudar em tudo, desde buscar água e plantas que pudessem ajudar a curar Fagrir, até serviços pesados como subir em gigantescas árvores para conseguir algum fruto mais saudável ou observar o caminho à frente em busca de inimigos. Ele raramente falava, apenas ‘sim’, ‘não’,

‘obrigado’. Nunca mais do que isso o caminho todo. Mas sempre que elas pensavam num plano para acampar, cuidar do ferido ou apenas se aquecerem, ele já estava lá fazendo o serviço pesado sem dizer nada.

Nove dias de viagem se passaram até que o grupo chegou à fazenda Lhagua. Fagrir estava consciente a dois dias, mas muito fraco, ferido e febril. O tenente leonino ocultava-se sob um manto e capuz de mago para não causar pânico entre o povo. Por mais que Jagity, a cidade dos jaguares, fosse conhecida por recepcionar diversas espécias felinas que conviviam em harmonia, sempre haveria um desconforto generalizado quando um leonino chegasse em qualquer lugar de Likastía que não fosse sua tribo. Especialmente um leonino militar. Não foi difícil encontrar Lhagua. Era uma fazenda famosa que produzia inúmeros produtos comuns das fazendas (leite, frutas, verduras, aves para abate, ovos, queijos, etc.), mas sua produção mais famosa eram os tecidos confeccionados pela família e os empregados contratados para isso na fazenda. A qualidade dos tecidos de Lhagua era tamanha que a feira e as lojas especializadas em tecidos e confecção eram repletas deles. A carroça do grupo seguiu até a porteira da fazenda e parou. O leonino desceu de seu posto como cocheiro e se aproximou da parte traseira onde os três Tiger estavam.

- É aqui que nos despedimos, senhoras e cavalheiro. – O tenente disse mais palavras do que as moças julgavam ser possível para ele.

- Sim. Entendo. Você precisa voltar para seu posto. – Hunna disse. Ela se acostumara tanto com a presença silenciosa e eficaz do leonino que até se esquecera que ele não estaria com elas sempre. – Eu agradeço de coração por tudo que você fez por nós.

- Certo. Melhor irem. – Ele disse apenas e deu a mão para Teira descer e tomar o lugar do cocheiro.

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Teira ficou surpresa por ele se lembrar que ela havia dirigido a carroça uma ou duas vezes durante a viagem. Às vezes ele parecia tão ausente em seu silêncio como uma pedra.

Ela aceitou a ajuda e foi para seu posto.

- Obrigada, tenente. Nunca poderemos agradecer o suficiente por sua ajuda. – Teira disse.

- Sim. Você nos ajudou sem pedir nada em troca. Tem muita nobreza nesse coração, tenente, e jamais esquecerei sua ajuda. – Fagrir disse quase como um juramento formal.

O tenente deu dois passos para trás e apenas acenou com a cabeça antes de abrir a porteira para eles passarem. Observou a carroça seguir caminho. Mas não foi embora. Seu chefe enviara uma mensagem muito clara na segunda noite de viagem, no meio da madrugada, quando as duas felinas dormiam abraçadas ao tigre mais morto que vivo para mantê-lo aquecido. Ele viu os três serem recebidos pela dona da fazenda na porta de casa e entrarem na casa. Esperou até a manhã seguinte, oculto entre as árvores próximas da casa, e viu quando Hunna e Teira saíram rindo e conversando como duas meninas praticamente saltitando com baldes nas mãos em direção ao poço nos fundos da casa. Elas tinham sido aceitas na fazenda, não havia mais dúvidas. Então o tenente foi embora para dar a notícia ao seu superior.

~o~

Dois meses e meio depois, Hunna, Teira e Fagrir já haviam se tornado membros da família da velha Laguna, a dona da fazenda, uma pantera idosa de pêlos negros com fios brancos espalhados por toda a pelagem. Seus olhos amarelos demonstravam a firmeza de caráter da idosa ainda muito ágil e rigorosa com o serviço, mas muito carinhosa, tratando seus funcionários como se fossem seus netos. Fagrir se lançava em todo trabalho braçal que podia, aprendendo os ofícios com avidez, mesmo mancando de uma perna, a única sequela dos ferimentos que quase o mataram. Quando não estava trabalhando, estava com Hunna, babando pelos filhos dela que nasceriam em poucas semanas. Para qualquer um que os visse, ele pareceria o pai das crianças. Um pai que estragaria a tigresa e os filhos com mimos. Teira dividia a cama com Hunna e Fagrir dormia com mais dois funcionários no quarto ao lado. O trio quase não dormia, mesmo esgotados fisicamente. Eram raras as noites que eles não tinham pesadelos com Tigrésius. Toda madrugada o trio se encontrava na cozinha depois de um pesadelo. Laguna parecia ter algum toque de empatia porque ela aparecia na cozinha pouco antes ou depois deles e lhes fazia um chá de camomila, sentava com eles e conversavam até o esgotamento os chamar para cama. Laguna sabia o básico do que aconteceram com os três por causa do rei de Likastía, a noite da fuga e a semana que se seguira até a chegada em Lhagua. Eles evitavam falar muito nisso traumatizados com tudo que viveram e Laguna evitava perguntar porque não queria fazê-los reviver tudo

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aquilo. Naquela noite, Hunna comentava sobre o assunto quando Laguna entrou na cozinha pra fazer o chá.

- O que terá acontecido com o tenente? Ele foi tão gentil. – Hunna perguntou e Fagrir sorriu para ela. Ele adorava aquele jeito empático que ela tinha com todo mundo. Laguna e Teira se entreolharam e sorriram. Fagrir adorava muita coisa em Hunna e vivia sorrindo feito besta quando ela passava ou só respirava perto dele.

- Não sei, mas gostaria de saber. Espero um dia ter a chance de retribuir o que ele fez por mim. – Fagrir respondeu com aquele sorriso bobo na cara.

- O tenente leonino da carruagem? – Laguna perguntou.

- Sim. Estávamos lembrando dele hoje o dia todo. – Teira respondeu levantando para pegar as xícaras na prateleira.

- Obrigada, menina. – Laguna disse colocando as flores de camomila dentro das xícaras que Teira arrumara na mesa. – Vocês são corajosos. Não sei se eu teria coragem de confiar em leoninos, principalmente viajar com eles. O tal leonino que vocês falaram que ajudou na cidade... Parecia assustador.

- Sim. Muito. – Teira disse pensativa. – Mas ele acabou nos ajudando, não é? E o tenente respeitava muito ele, acho que não só por ser superior deles.

- Também tive essa impressão. Especialmente quando ele fez aquela reverência antes de sair... – Hunna disse.

- Pelas Luas Irmãs! – Laguna quase derramou a água quente na mesa.

- Reverenciou? Tem certeza? – Fagrir perguntou se levantando da cadeira num pulo.

- Sim. Foi bem sutil porque ele estava com você no ombro, mas fez. Qual o problema?

– Hunna perguntou tão confusa quanto Teira.

- Não posso acreditar... E ele me salvou? No meio de um ataque? Porque? Eu era o maior conselheiro do rei Estefan... Porque me ajudar? – Fagrir estava balbuciando, olhando para o nada.

- Menina e doce mamãe, - Laguna chamou as moças com os apelidos carinhosos que lhes dera – vocês não fazem ideia de com quem falaram, não é?

- Com um comandante leonino? Ou um general, talvez? – Teira respondeu.

- Não, queridas. Leoninos não reverenciam ninguém, exceto seu rei. Vocês falaram com o próprio rei Lordok. – Laguna respondeu e as felinas se entreolharam abismadas.

Porque o próprio rei lideraria o ataque à cidade? A coisa era tão séria assim? Hunna e Teira nunca quiseram saber por medo de que, apenas falar o nome dele em voz alta pudesse invocá-lo ali como um demônio, mas agora a pergunta martelava em suas mentes.

- Tig... O rei... Ele foi morto? – Hunna perguntou com a mão em cima de seu ventre de forma protetora.

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Laguna e Fagrir se entreolharam e ele respondeu. – Não. Ele colocou um Tiger, um soldado, com suas roupas em seu quarto para atrair os inimigos. Lordok matou o pobre soldado, mas, ao sair, o castelo estava sendo incendiado por Tigrésius com as ‘chamas de Éris’, o poder do rei.

- Lordok escapou, astuto feito o rei dos infernos, mas as armadilhas de Tigrésius quase o mataram. Era quase como se o rei de Likastía conhecesse os planos de Lordok, segundo dizem. – Laguna completou.

Hunna e Teira tremiam nervosamente. Laguna abraçou Teira por trás dando um beijo no topo de sua cabeça. Fagrir segurou ambas as mãos de Hunna e olhou em seus olhos.

- Ele não vai encontrá-la. Nem às crianças. Eu vou proteger você nem que eu morra pra isso. – Fagrir disse e Hunna sabia que era verdade.

Fagrir vivia arrumando coisas para as crianças quando nascessem, até fizera dois bercinhos de madeira com as próprias patas que ferira muitas vezes no processo, não acostumado ao trabalho braçal. Mas estava tão alegre, tão iluminado de felicidade quando terminou, que os cortes nas patas não importavam pra ele. Hunna não podia pensar em sentir vontade de algum alimento ou só de passear na fazenda, que ele estava lá pronto para atender. Às vezes até parecia que ele advinhava o que ela queria. Quando as crianças se mexeram pela primeira vez em seu ventre, era ele quem estava lá perto, rindo feito bobo, chorando de emoção pelo acontecimento. Era difícil não gostar de alguém assim, sempre tão bom, gentil, amoroso com ela e com seus filhos que nem tinham nascido ainda.

As noites seguintes foram as piores. Hunna estava agitada, sempre assustada com tudo e com nada, não conseguia comer ou beber, um nó sempre incomodando em sua garganta. Ela achava que era por saber que o marido ainda estava vivo, ou talvez preocupação com as crianças. Mas Teira e Laguna verificaram elas com seus dons e experiência e garantiram que elas estavam bem. Fagrir não desgrudava de Hunna, sempre preocupado com o estado dela. Isso quase o fizera desistir do que queria dizer. Quase. Mas naquela tarde ele a levara para um passeio pelo rio que cortava a fazenda, a alguns quilômetros da casa, e a oportunidade perfeita surgiu. Hunna estava de pé olhando para a água, tão perfeita quando uma pintura, seu pêlo balançando suavemente com a brisa, as patas em cima da barriga já crescida, a hora do nascimento se aproximando.

- Hunna. – Fagrir disse num impulso de coragem.

Ela virou-se para ele sorrindo. Por mais exausta e tensa que estivesse, Fagrir sempre a fazia feliz apenas com sua presença. – Sim?

- Eu quero perguntar uma coisa. Não quero que sinta que tem alguma obrigação comigo pelo que faço por você. Nunca. Isso faço por prazer, de todo coração. Mas, eu preciso perguntar ou ficarei louco. – Ele disse retorcendo a roupa velha que usava.

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Ela pegou uma de suas mãos e olhou para ele com carinho. – Você sabe que pode falar comigo sobre qualquer coisa, Fagrir.

Ele fechou os olhos, respirou fundo e os abriu de novo, olhando naqueles olhos cor de âmbar que o faziam suspirar. – Hunna, eu não sou mais um Tiger de alta posição, não tenho mais riquezas, não sou o mais belo dos tigres do mundo, sou manco e não tenho muito a oferecer. Mas amo essas crianças como se fossem minhas e isso não é segredo. Mas...

Bem... Eu... Eu... Ééééé. – Ele respirou fundo mais uma vez e disse como se cuspisse as palavras pra fora antes que perdesse a coragem: - Eu amo você e quero que seja minha esposa!

Hunna estava parada em choque, ainda segurando a pata peluda litrada dele. Ela sempre dissera a si mesma que ele só estava sendo grato à ela por ter ajudado a salvar sua vida, que ele não podia gostar dela. Ninguém podia. Tigrésius repetira tantas vezes que ela era patética, louca, sem graça, ridícula e burra que ela acreditara. Agora então, carregando os filhos de outro... Tigres não criavam filhos de outro machos, a menos que ambos os pais tivessem morrido. Quando um Tiger se casava com uma fêmea com filhos de outro ainda crianças era costume que o marido matasse as crianças ou a mãe os entregasse para fêmeas inférteis. Era mais comum, um motivo de enorme orgulho para as fêmeas, que elas criassem seus filhotes sozinhas até a vida adulta e só depois aceitassem outro marido.

- Eu... Sei que não tenho muito. – Fagrir continou, mais nervoso. – Mas, se me permitir, prometo trabalhar duro, construir uma casa para nós e não deixar que nada falta para você ou nossos filhos. Se você não quiser me aceitar como seu, eu só imploro que me deixe ser padrinho dessas crianças que eu amo tanto. Não me obrigue a me afastar deles.

Vocês são a razão para eu continuar vivendo e... E... – Ele não sabia mais o que dizer e tinha certeza que Hunna não o aceitaria. Ele era velho demais para ela, não era rico e poderoso, não mais. Ele se esforçara para aprender como construir coisas, casas e fazer vários trabalhos braçais e ter alguma utilidade antes de confessar o que sentia. Mas talvez não fosse o bastante. Ela era jovem, forte, bonita, inteligente, nobre. E ele era só um tigre manco e fracassado.

Ela colocou uma pata em seu peito e ele olhou pra ela como se saísse do seu transe auto depreciativo. – Pra mim você é o Tiger mais rico e poderoso de toda Likastía porque você lutou contra a morte, lutou contra a falta de habilidade em trabalhos braçais, foi o único a se levantar contra a injustiça de um rei assustador, e você venceu tudo isso. Eu nunca me senti digna de alguém como você, Fagrir. Mas eu o amo como nunca pensei ser possível amar. Não poderia desejar um pai melhor para meus filhos... Não. Nossos filhos.

A surpresa estava estampada do rosto do Tiger mais velho, mas logo foi substituída pela felicidade. Ele a abraçou com cuidado, colocando uma mão protetora sobre o ventre dela, e a beijou com tanta doçura que Hunna achou que iria derreter.

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Todos na casa já sabiam dos sentimentos de ambos porque, bem, até um cego veria isso de longe. Quando eles chegaram anunciando que ficariam juntos, Laguna propôs uma festa na noite seguinte, após o dia de trabalho, para comemorar. Mas, na tarde seguinte Hunna faltou ao seu turno de trabalho. O que era muito estranho porque ela não faltava ao trabalho mesmo quando Laguna mandava ela descansar para superar algum mal estar da gravidez. Muitos moradores da fazenda formaram grupos de busca e praticamente reviraram as proximidades da casa de cabeça pra baixo atrás dela. Faltavam dias para o nascimento das crianças, talvez algumas semanas, e Hunna se alimentava e dormia tão mal ultimamente que poderia ter desmaiado em algum lugar. Mas ninguém a encontrou. Fagrir era a imagem do desespero e Teira não estava muito mais calma que ele. Ao anoitecer o grupo se reuniu dentro da casa para planejar onde seriam feitas as buscas de noite pegar tochas e materiais para carregá-la e aquecê-la quando encontrassem.

A reunião foi interrompida por sons de cascos do lado de fora. Laguna saiu sentindo um arrepio que não sentia a muito tempo desde que seus netos foram assassinados brutalmente na floresta porque seu filho não quis pagar um tributo injusto à um certo Sargento na época. Parece o ditado era correto. Bastava pensar no diabo pra ele aparecer.

- Laguna, não é? Quanto tempo, velhota. Nunca esqueço um rosto, sabia. – Tigrésius disse montado num cavalo castanho, com mais seis soldados montados e armados até os dentes com espadar, arcos, machados, chicotes e acompanhados por dois magos.

- Rei. – Ela disse com um nojo nada disfarçado na voz. – A que devo a honra da visita?

- Veja bem, velha inútil, eu sou um tigre sensato. Não pretendo fazer mal à você ou os habitantes da sua fazendinha. Então basta colaborar que eu os deixarei em paz. Me entregue os dois traidores que você esconde embaixo da sua cauda e vou embora com meus soldados. – Ele disse com aquele sorriso de canto que deixava qualquer um irritado, apontando para trás. Ao longe podia-se ver um exército numeroso o suficiente para cercar toda a fazenda ao longe dentro das cercas.

- Não sei do que está falando. Aqui ninguém trai ninguém. Todos são trabalhadores dignos. – Ela enfatizou a última palavra.

Teira e Fagrir estavam ocultos dentro da porta por um grupo de trabalhadores da fazenda que haviam tomado sua frente, talvez intuindo pelos semblantes assustados de ambos que eles eram o alvo.

- Velha, velha... Achei que você tivesse aprendido a lição. – Tigrésius balançou a cabeça e, olhando para Laguna com um ar cruel, acrescentou: – Escolham dois e matem.

Os dois magos ergueram seus cetros com uma pedra branca bruta em cima, uma luz surgiu delas e, com um estrondo, saiu das pedras em direção à dois trabalhadores da fazenda, um casal jaguar que estava bem na frente de Teira e Fagrir. Ambos caíram no chão, os corpos negros e soltando fumaça, completamente carbonizados.

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- NÃO! – Laguna gritou quando a magia atingiu os dois felinos.

- Seu bandido disfarçado de rei! – Fagrir gritou e correu para frente, pronto pra arrancar aquele sorriso irritante da cara do rei. Teira o segurou com dificuldade.

- AHAHAHAHA! Pelos céus! Você está inválido! – Tigrésius gargalhou ao perceber que Fagrir mancava. – Parece que fiz um ótimo trabalho, vejam rapazes. – Ele acrescentou sorridente chamando atenção dos seus soldados que riram junto com ele.

- Calma, Fagrir. Não seja tolo. Temos que pensar com frieza. Ele não perguntou pela Hunna. – Teira sussurrou.

- O que? Você acha que...

- Ele pode ter capturado ela a horas. – Teira disse com a voz trêmula.

Ou Tigrésius ouviu com uma audição demoníaca, ou o ódio no rosto de Fagrir o entregou. Tigrésius abriu um sorriso enorme. Não precisava ser nenhum gênio para entender.

- Seu maníaco! Você a pegou, não é? – Fagrir gritou.

- O que? Não... Não pode ser. Deixe-a em paz! – Laguna captou a ideia no ar.

- Ela já está em paz. Eu garanto. – Tigrésius disse com aquele sorriso no rosto, encarando Fagrir.

Foi o fim da paciência do ex-conselheiro. Ele correu com garras à mostra, se soltando de Teira que correu logo atrás dele. Aparentemente tudo fazia parte do plano. Os magos rapidamente tiraram cordas de seus mantos e jogaram aos pés da dupla. Com um simples gesto as cordas se prenderam como cobras vivas ao redor das pernas dos dois, os derrubando.

- Podem levá-los. – Tigrésius disse. Seus soldados desceram dos cavalos com suas armas sacadas, e levaram os fazendeiros para dentro aos empurrões e a dupla amarrada, arrastando-os sem nenhuma consideração. Lá dentro, todos foram amarrados e colocados sentados no chão. Um grupo de cerca de 40 felinos de várias espécies, sentados com as patas amarradas para trás, Teira e Fagrir jogados de joelhos no chão. Tigrésius entrou com aquele andar firme e arrogante.

- Tudo pronto, senhor. – Um dos soldados disse ao lado de Tigrésius.

- Eu não vou perder tempo com ralés imundas como vocês. Na próxima encarnação quem sabe vocês aprendam que nunca devem acolher meus inimigos. – Ele se virou para sair, mas parou e olhou para a dupla de joelhos. – É assim que vocês deveriam ter ficado.

De joelhos ao meu comando. Eu poderia dar um jeito em você, escrava, como nas noites que você fez tudo que eu quis na cama. Mas eu tenho coisas mais importantes para fazer.

Quanto à você, deficiente inútil, não posso deixar você livre depois daquela ceninha ridícula no rio, não é mesmo. Pegando a bosta de fêmea que seu rei deu a esmola de se casar... Que feio.

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Deuses! Desde quando ele estava nos observando? Fagrir se perguntou. – Onde está Hunna, seu doente?

- Aquela coisa sem graça? Eu enterrei... Viva. – Tigrésius disse com visível felicidade. –

Pena... Se você não fosse tão merda e conseguisse lutar decentemente, talvez até pudesse salvar... Ela está tão perto, descansando sob a luz...

- Isso é baixo até pra você! Ela está grávida dos seus filhotes, seu maníaco! – Laguna disse.

- Não está mais. – Tigrésius respondeu sorridente e saiu, seguido de seus soldados. Lá fora ele disse em alto e bom som: - CHAMAS DE ÉRIS! – O fogo no anel do rei surgiu como uma bola flamejantes e se multiplicou no ar, seguindo para todas as direções, atingindo a casa e rapidamente a cercando com chamas altas. Quando as chamas haviam tomado todas as paredes externas da casa, Tigrésius foi embora assoviando com seus soldados e magos atrás.

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Destino

- Agora! Vão. – O leonino sussurrou quando as tropas do rei estavam longe o bastante.

Os leoninos saíram da floresta um pouco distante da casa e entraram nela com presa, mas muito silenciosos, ignorando a dor das queimaduras, alguns soldados já usando água do poço pra molhar uma das portas e assim abrir um caminho pra fuga. Por algum milagre, Fagrir tinha conseguido se soltar e estava tossindo em meio a fumaça e os escombros desamarrando os outros que se uniam à ele nessa tarefa. O tigre deu um pulo assustado, com dentes e garras à mostra, pronto para atacar quem entrara naquela sala. Mas Teira que já estava desamarrada, correu para abraçar o invasor.

- Tenente! Graças à todos os deuses! – Ela soluçou e puxou ele pela mão. – Por favor, ajude-nos...

- Estou aqui pra isso. – O tenente leonino correu com seus homens para soltar e tirar os felinos que ainda podiam ser salvos. Mais da metade já estavam mortos sob escombros flamejantes ou pela fumaça. Uma pobre velha morrera abraçada à uma onça de poucos anos de idade que ainda estava viva e chorando muito com o pânico.

Todos correram para fora, Fagrir tossindo muito com a fumaça, as mãos apoiadas nos joelhos e Teira corria para lá e para cá verificando os feridos e ajudando o quanto podia com sua poderosa, mas destreinada, magia.

- Fagrir. – O tenente chamou. – Preciso que venha comigo. Vocês dois.

- Mas eu tenho que ajudar a curar.... – Teira protestou.

- Encontramos a dama Hunna e os filhos. – O tenente disse e todo mundo, mesmo os mais feridos, olharam para ele num misto de temor, esperança e desespero.

- Vão! Agora! Ela precisa de ajuda. Eu cuido deles. – Laguna disse, metade do rosto queimado.

- Leoninos! Fiquem aqui e os ajudem. Voltarei assim que possível. Vocês três, - Ele apontou para três de seus arqueiros – venham comigo.

O grupo seguiu pela mata até onde havia um campo de flores-de-ouro, pequenas e singelas flores que emitiam um luminescência amarela muito forte. Ao longe um grupo de leoninos estava acampado.

Hunna. Fagrir tinha certeza de que ela estava lá. Seu coração não deixava dúvidas. Ele correu, tossindo, mancando, mas nada disso importava. Ele precisava vê-la tinha que saber se ela estava bem. Por mais que o tenente dissesse que ela estava viva, ele não dizia nada além disso. O tenente sinalizou e nenhum leonino o parou, ou à Teira correndo logo atrás.

Quando entraram na tenda maior, Hunna estava deitada limpa, com roupas que

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obviamente não eram para o seu corpo pequeno, com o cansaço estampado nos olhos, as garras destruídas e o ventre baixo.

- Fagrir! Teira! – Ela falou com voz rouca pela garganta machucada e começou a chorar desesperadamente.

Teira e Fagrir a abraçaram e perguntaram o que havia acontecido, mas Hunna só chorava desconsoladamente. Um leonino forte se aproximou e Teira o reconheceu de imediato.

- Você? Bem... Quer dizer... Senhor... Majestade. – Ela se corrigiu lembrando do que Laguna e Fagrir tinham dito.

- Lordok, apenas Lordok, menina. – Lordok disse. – Vejo que seu amigo está bem melhor. Fico feliz por isso.

- Eu tenho uma dívida de honra com você, majestade. – Fagrir era um nobre, afinal de contas, uma vida como conselheiro. Ele não trataria nenhum rei com informalidade. Isso estava fora de questão.

- No momento, você tem duas. – Lordok disse e Hunna finalmente se acalmou olhando para ele com dor e esperança.

- Duas? Por favor, Lordok, me diga que funcionou... – Ela disse entre lágrimas.

- Acalme-se, mais nobre e guerreira das fêmeas deste mundo. Os dois estão bem, embora o garoto, pelo tempo em que esteve....fora, digamos assim, tenha mudado um pouco. – Lordok disse e, antes que Hunna pudesse perguntar qualquer coisa ou ceder ao medo de novo, ergueu o tecido da tenda e o tenente trouxe dois filhotes de tigres no colo.

Um com listras laranja e negras como Hunna, mas o outro com listras brancas e negras e a pinta branca no focinho idêntica à de Hunna.

- Um tigre...branco? Isso é muito raro... Alguém na sua família tem essa anomalia, Hunna? – Teira perguntou confusa.

- Não. – Hunna disse preocupada. – Ele vai ficar bem? Vai ter alguma doença por causa do que aconteceu?

- Não. É só nos pêlos, pelo que pude sentir. Talvez, se ele tiver talento pra magia, pode ter algum dom diferente, mas não dá pra saber. – Lordok respondeu. – Ele é bem calmo. A mocinha ali, por outro lado, é bem agitada. Parabéns, mamãe. Nunca vi nenhuma fêmea fazer o que você fez por seus filhos.

Teira e Fagrir queriam perguntar o que acontecera, mas o alívio e a alegria ao ver aquelas pequenas criaturas foi mais importante. Ambos só faltavam babar em cima dos filhotes e de Hunna.

- Como vai chamá-los? – Fagrir perguntou.

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- Seth e Carya, em homenagem ao pai de Teira que morreu tentando protegê-la e do meu pai que tinha um coração bondoso. Bondoso demais para este mundo tão cruel. –

Hunna respondeu.

~o~

Mais tarde Lordok contou o que acontecera. Alguns de seus espiões ficaram de olho na fazenda durante os meses e, no dia anterior, enviaram uma mensagem informando que o próprio Tigrésius estava rondando a fazenda. Por destino, talvez, Lordok estava em missão de reconhecimento a um dia de viagem dali. Ele reuniu seus leoninos o mais rápido que pôde e partiu para impedir o ataque e, de quebra, destruir Tigrésius. Mas chegara tarde.

Passando pelo campo de flores-de-ouro, ele ouviu um choro fraco vindo de uma pequena gruta e muita terra remexida e flores arrancadas do chão. Seguindo o som encontrara Hunna suja de terra e muito sangue, com uma pedra nas mãos pronta para jogar nele. Atrás dela dois filhotes, ainda presos à mãe pelo cordão umbilical, estavam um ao lado do outro. Um dos filhotes chorava baixo, mas o outro parecia quieto demais.

Ele se aproximara acalmando Hunna que parecia perdida entre na própria fúria, incapaz de recenhecê-lo. Com cuidado ele conseguiu tirá-la de lá. Montou o acampamento e dividiu as tropas ao meio para ajudar na fazenda. Hunna havia cavado dois metros de terra, e comido boa parte, para sair do túmulo improvisado pelo marido. Quando finalmente saíra, estava fraca e dolorida dos socos que recebera antes de ser enterrada.

Mas, o pior, as dores do parto começaram. Ela se arrastou até a gruta e fizera o próprio parto. A menina nasceu primeiro, mas o menino demorou para nascer e já nasceu morto.

Lordok usou sua magia para tentar trazer o menino de volta à vida, mas nada funcionava.

Com muito esforço depois de horas tentando, o garoto finalmente respirou, mas seu pêlo pertou a coloração alaranjada por algum mistério da natureza.

Quando o tenente chegou na fazenda, ainda na floresta, Tigrésius lançava as chamas que já tomava a casa quase toda. Como a ordem de Lordok era dar prioridade às vidas dos fazendeiros, ele esperou até que o rei estivesse longe para ajudá-los. Infelizmente, a casa da fazenda estava completamente destruída. Lordok ofereceu ajuda para reconstruir a casa da fazenda e Laguna agradeceu profusamente. Mas alguns felinos surpreenderam à todos quando pediram ao rei para se juntar ao seu povo na luta contra Tigrésius. Lordok aceitou os novos membros de seu povo. Ele sabia bem o ódio que Tigrésius era capaz de despertar.

A viagem não podia esperar. Ele queria tirar Hunna e, principalmente, Teira dali o quanto antes. Antes que Tigrésius descobrisse que elas estavam vivas. Alguma coisa naquelas moças despertaram sua simpatia imediatamente naquele ataque à cidade. Talvez por odiarem Tigrésius tanto quanto ele, ou algo mais misterioso que ainda não podia compreender. De qualquer forma, ele não podia deixa-las ali. Hunna ainda estava muito

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fraca, mas seria muito mais perigoso permanecer na fazenda. Entre seu povo ela estaria à salvo do ex-marido insano. Ex com certeza, considerando a forma como Fagrir cuidava dela e das crianças.

Na noite seguinte, protegidos pela escuridão, Lordok partiu para seu lar com Teira, Fabrik, Hunna e as crianças, e muitos felinos da fazenda, deixando alguns de seus soldados para trás para ajudar na reconstrução da casa. A jornada era longa, mas foi muito mais prazeirosa com a presença de Teira sempre gentil e talentosa com magias, ao lado de Lordok. Ela até conseguia fazer ele rir de algumas piadas, o que atraiu olhares de todo o exército dele porque Lordok nunca, NUNCA, ria.

Quando chegaram às Montanhas Amarelas, o lar dos leoninos, Lordok, Teira, Hunna e Fagrir tinham se tornado tão grandes amigos como se convivessem uma vida inteira juntos.

~o~

Na mesma noite, a quilômetros dali, em sua mansão, Tigrésius jantava com Ilena literalmente em seu colo quando a notícia chegou. Um mensageiro entrou trêmulo. Dar uma má notícia para o rei era quase o equivalente ao suicídio.

- Fale de uma vez, inútil! – Tigrésius disse sentado à mesa.

- Meu senhor, eu, eu trago notícias.... De sua... Errr... Esposa. O local do enterro foi revirado...senhor... Nossos informantes disseram que...aparentemente...ela sobreviveu e fugiu com os bárbaros. – O mensageiro terminou e engoliu com dificuldade.

- O QUE?! – Sua voz retumbou como um trovão ao redor da sala. –

INFEEEEEEEERNOOOOOO!!! – Com sua explosão de raiva, Ilena foi jogada no chão quando ele levantou bruscamente, e, de seu anel, símbolo do poder do rei, uma rajada de fogo surgiu carbonizando a mesa e o mensageiro aos gritos.

~o~

O rei leonino criara uma ligação tão forte com os filhos de Hunna, em parte por ter salvo suas vidas, que ele não conseguia evitar fazer aquela voz boba que fazemos para crianças. Na noite seguinte à chegada do grupo, Lordok estava no quarto das crianças com Hunna, Fagrir e Teira.

- Quem é o garoto mais lindo desse mundo? É você! É você mesmo. – Lordok dizia que nem bobo com Seth no colo. – Você tem cuidado da sua irmãzinha? É claro que sim, ne.

- Você sabe que ele não entende nenhuma palavra do que está dizendo, não é? –

Hunna disse sorrindo.

- Não consigo evitar. Eles são tão lindinhos. – Lordok respondeu.

- Vai mimá-los demais assim. – Teira comentou.

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- Você não pode me julgar. É pior do que eu nesse quesito. – Ele respondeu olhando pra ela com um sorriso enorme.

- Por isso mesmo estávamos pensando. – Fagrir disse e olhou pra Hunna que acenou de volta. – Você nos daria a honra de ser padrinho dos nossos filhos junto com Teira?

Lordok ficou boquiaberto e aceitou sem rodeios. Quando saiu do quarto com Teira do lado, seu coração parecia que ia explodir de felicidade e, àquela altura, ele duvidava que fosse só pelo pedido de Tagrir para ser padrinho das crianças. Alguns dias depois, Teira estava treinando com um mago local para focar suas magias e Lordok observava de longe sem conseguir desviar o olhar. Ela era encantadora e nem percebia isso.

- Você pode falar com ela, sabia? Ao invés de ficar só olhando o dia inteiro como se estivesse em transe. – Hunna disse com Seth no colo. Ele nem vira ela se aproximar.

- Eu falo com ela. – Ele respondeu.

- Sabe muito bem a que me refiro. Não sou cega, Lordok. E você não é o felino mais sutil do mundo.

- Sobre o amor nada oculto dele por Teira? Não, não é mesmo. – Fagrir se aproximou com Carya nos braços.

Lordok ficou sem graça, mas tentou disfarçar. Seu olhar meio que involuntariamente se voltou para Teira de novo. Ela era muito querida por todos, não havia dúvida. Em pouco tempo ela conquistara o respeito de todos em seu reino com seu jeito amável e sempre tentando ajudar todos sem distinção de classe social. Mesmo os membros do conselho admiravam a astúcia dela. Diferente dos Tiger, os leoninos não tinham preconceitos de classes sociais ou mesmo de espécies. Para eles tudo que importava em um felino era sua honra e sua capacidade de trabalhar pelo bem de todos na comunidade. O resto, tudo podia ser conversado e acertado.

- Viu. Ele nem consegue prestar atenção nos amigos por dois minutos. Você vai enlouquecer se não resolver sua situação com ela, meu amigo. – Fagrir disse.

- Experiência própria, querido? – Hunna brincou.

- Com certeza. Mas sei o que ele está passando. Vocês fêmeas são assustadoras. A gente fica tão nervoso com vocês piscando esses olhos brilhantes pra gente.

- Com licença. – Lordok levantou rapidamente, com uma decisão tomada.

Só quando Hunna e Fagrir olharam para Teira, entenderam o rompante do rei. O mago que a ensinava estava obviamente flertando com ela de formar respeitosa, mas com certeza incomodara muito o rei por razões evidentes.

Lordok se aproximou e, com um olhar fuzilante, mandou o mago para alguma tarefa aleatória. Depois levou Teira para a sala do trono vazia naquele momento.

- Qual o problema? – Teira perguntou estranhando o silêncio do rei.

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- O problema é que ele estava flertando com você! – Lordok disse impaciente. Ele não estava zangado com Teira, nem mesmo com o mago, ele estava zangado consigo mesmo por não ter tido coragem de falar com ela antes.

- Eu não sei se isso deveria irritar o rei... É porque sou uma escrava e você não quer que um de seus magos se rebaixe me dando esse tipo de atenção? – Ela perguntou amargamente.

- O que? Você é louca, menina? Você FOI uma escrava Teira! Não é mais e nunca será!

Só você pra achar que eu considero qualquer felino menos importante por se aproximar de você!

- Então qual é o problema? – Teira perguntou um pouco menos amarga.

- O problema é que eu quero você! Não aquele mago idiota!

- Você quer pra que? Precisa de algum serviço mágico específico? Achei que ele fosse seu mago mais importante... Não seria mais prático pedir pra ele? – Teira respondeu mais confusa do que um peixe nadando numa árvore.

- Eu quero você pra mim, menina. Não como maga, não como serva, e, definitivamente, não como escrava. Quero você como minha companheira, minha noiva, minha amiga e minha mulher. Será que agora eu fui claro o bastante pra você? – Não assim que ele pretendia confessar o que sentia por ela. Ele planejara tantas vezes de tantas formas românticas e doces diferentes. Mas o medo dela dar atenção à qualquer outro felino subiu à cabeça e ele falou no calor da emoção. Agora não havia mais como remediar.

Teira estava parada feito uma estátua no lugar. Sem saber o que pensar ou como responder. Ela o amava, lógico, mas como amigo. Nunca pensara no rei de outra forma porque, bem, ele era o rei. Mas sabia que o amaria com facilidade. Sinceramente, tinha certeza que talvez lá no fundo, bem escondido de si mesma, ela já o amasse.

- Eu não sei se é correto, ou mesmo se o amo. – Teira começou a dizer e Lordok murchou como uma flor sem água. – Mas eu quero tentar.

Bastou essas quatro palavras para ele se sentir flutuando.

Os meses seguintes passaram voando e tudo parecia estranhamente calmo. Lordok fazia de tudo para mostrar que era digno do amor de Teira e, antes que os dois decidissem que estavam prontos para oficializar a relação, Teira estava com uma bela felina nos braços, filha do rei leonino, a mais nova princesa leonina, Rádara.

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Família real

Ilena, a mãe de Hunna, conseguiu o que queria. Tigrésius queria ela como rainha.

Também não havia ninguém melhor e mais digna ao cargo do que ela. Khara era uma boa candidata, mas era irmã de Tigrésius e, mesmo que ele tivesse alguma atração por ela, o que Ilena duvidava totalmente, a lei não permitia a relação entre irmãos nem em pensamento. Foi assim, com essas ambições, que Ilena e Tigrésius (e Khara, mas a mãe de Hunna não sabia ne) planejaram por anos o assassinato do rei Estefan. Ilena tinha muitos contatos obscuros e Tigrésius tinha o apoio de muitos membros do conselho e do exército que não gostavam das constantes fiscalizações de Estefan, atrapalhando seus negócios obscuros. Khara dera a ideia de envenenar o rei e Tigrésius elaborou o plano. Ilena conseguiria entre seus contatos obscuros o raro veneno das montanhas e se aproximaria do rei, assim tendo acesso fácil para colocar o veneno no vinho. Mas Estefan não facilitara as coisas. Apesar de dormir com ela inúmeras vezes, ele não confiava nela e sempre mandava algum servo levar comidas e bebidas embora antes de se deitar. As vezes seguintes em que ela tentara, o conselheiro mais próximo do rei, Fagrir, sempre estava por perto como uma sombra extra do rei.

Um dia Estefan abaixou a guarda por poucos segundos, entregando a taça em que bebia para um servo para ir dançar com Ilena, e depois pegando a taça de volta. Mas o servo era um aliado de Ilena, um jovem escravo cuja irmã estava sob poder da mãe de Hunna a anos, sendo usada em uma das muitas casas de prostituição que Ilena era secretamente a dona. Com a promessa de libertar a irmã do jovem, ela o convenceu a colocar o veneno na bebida do rei. O jovem, claro, foi assassinado horas mais tarde e sua irmã vendida à um poderoso mago da corte.

Quando Tigrésius se tornou rei ele disse à Ilena que daria o tempo apenas de Hunna morrer, de uma forma ou de outra, e então se casaria com ela. Na noite em que eles comemoravam a morte de Hunna um mensageiro chegou dando a notícia de que a tigresa não apenas sobrevivera, como também agora vivia com os maiores inimigos dos Tiger e, o que mais irritava Ilena, agora havia uma enorme probabilidade de que os herdeiros do trono, filhos do atual rei e de sua filha, estivessem vivos também. Para Ilena era uma notícia ruim, péssima na verdade. Mas para Tigrésius... Aquela era a chance que ele esperava. Ele conhecia Ilena melhor do que ela imaginava, sabia o que ela pensaria em fazer. E isso seria sua chance de ouro.

Como Tigrésius previu, dias mais tarde Ilena o avisou que sabia como solucionar seu problema com Hunna. Ela enviaria uma de suas leais servas das casas de prostituição para pedir refúgio entre os leoninos. A moça envenenaria Hunna e os filhotes, se estivessem

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vivos, com veneno das montanhas, típico da região onde os leoninos viviam, e então receberia uma enorme recompensa. Quando a notícia se espalhasse, Ilena já teria matado a tal serva com o mesmo veneno e toda a culpa recairia sobre os leoninos. Enquanto isso, Tigrésius espalhou a história de que Hunna era uma aliada dos leoninos a anos e o seduzira sabendo, por sua proximidade com Estefan, que Tigrésius seria herdeiro do trono, e ajudara os leoninos a invadir a cidade se aproveitando do pobre coitado e apaixonado rei Tigrésius.

- Perfeito, Ilena! Vê porque eu amo você? – Tigrésius disse abraçando a tigresa de uma forma nada puritana. Pena que Ilena não podia ler mentes ou teria percebido do que ele estava falando.

Khara fora encarregada do trabalho que seu irmão-amante planejara a dias. O veneno estava escondido em algum lugar que só Ilena sabia, afinal ela não era burra pra confiar plenamente num tigre que, ela desconfiava, podia ter matado o próprio pai. Mas Tigrésius tinha Khara para seguir sorrateiramente cada passo de Ilena usando suas servas para espionar e tudo que a tigresa mais velha fazia. Ilena deveria encontrar a serva rameira naquela noite, então, horas antes, foi até seu esconderijo e pegou o veneno da montanha, colocou preso nas partes íntimas e seguiu para seu palácio. A serva que a vigiava de longe viu e avisou à Khara que correu para Tigrésius imediatamente.

O rei não perdeu tempo. Minutos depois ele e um grupo suficientemente grande para chamar atenção, acompanhado de seu mago mais poderoso, bateram... Não. Praticamente derrubaram a porta do palácio de Ilena e quatros fortes guardas a arrastaram para fora como uma qualquer, sem nenhuma consideração por sua posição e poder na sociedade.

Uma multidão já se reunira na rua quando Ilena fora jogada no chão, os quatro guardas atrás dela, Tigrésius em pé na frente dela com o mago Leviantã ao seu lado, ambos com expressões de raiva e decepção nos rostos.

- Ilena Tiger, você é acusada de matar cruelmente o rei Estefan e ser aliada dos bárbaros leoninos, em troca de que sua filha fosse protegida e apoiada por eles. - O mago Leviatã disse, e todas as pessoas na rua ficaram entre o espanto e a raiva – Como você se declara? Inocente ou culpada?

- Claro que sou inocente! Isso é uma armação dele! – Ela apontou para Tigrésius, mas óbvio, o público já estava imaginando as conexões entre Hunna, leoninos, Ilena e a morte do rei.

- Eu lamento tanto... – Tigrésius disse e ele realmente era um bom ator, a tristeza emanava de seu rosto peludo. – Eu me apaixonei por Hunna. Depois você veio e me seduziu como fez com nosso saudoso rei Estefan. Até agrediu minha irmã com uma faca... E... Está traficando veneno das montanhas enquanto explora pobres jovens felinos com casas de prostituição pela cidade toda...

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Aqui o povo perdeu se exaltou de verdade. Como assim uma nobre de um ramo tão poderoso dos Tiger, era uma cafetina? Isso era deplorável até mesmo para uma pessoa qualquer, pior do que vender o próprio corpo era explorar o de outro. Pedras foram jogadas em Ilena e ninguém se moveu para ajudar. Tigrésius, de cabeça baixa, sorria sutilmente, aquele sorriso predatório e assustador. Então ele levantou o rosto com a expressão mais triste do mundo, digna de um prêmio por melhor atuação, a voz embargada, e disse: - Por favor... Parem. Vamos dar à Ilena o benefício da dúvida. Leviatã, meu bom senhor, por favor verifique se ela está com o veneno em sua posse.

O normal seria revistar a acusada e sua casa ao mesmo tempo em busca da prova do crime. Seria. Mas Tigrésius já tinha colocado a opinião pública contra Ilena e não precisava fingir tanto assim, ele queria partir logo para sua parte preferida naquele caos: a agressão.

O mago usou seu cajado de madeira com uma pedra branca bruta no topo para lançar um encanto de luz branca que oscilaria para a cor negra se qualquer substância das montanhas estivesse presente em Ilena. Óbvio que a luz oscilou visivelmente arrancando um “ooooh!”

da população.

- Senhor, ela possui o veneno armazenado em seu corpo... Nas partes íntimas de uma dama. – Leviatã disse ocultando maestralmente sua satisfação por atender aos planos do rei.

- Devemos colocá-la em uma área privada para retirar então... – Tigrésius disse, mas sabia qual seria a resposta do mago. Ambos haviam até ensaiado aquele diálogo no caminho.

- VOCÊ NÃO VAI ME TOCAR, SEU VERME TRAIÇOEIRO! – Ilena gritou a plenos pulmões, mas ninguém deu atenção.

- Creio que não seja o adequado, meu senhor. – Leviatã disse com uma expressão genuinamente triste, quase tão perfeita quanto a do rei. – Ela precisa ser abordada aqui mesmo ou pode alegar que isso foi armação e estávamos com o veneno em nossas mãos.

- NUNCA! NÃO VOU ME SUBMETER À ESSA HUMILHAÇÃO! EU SOU UMA TIGER! EU

SOU UMA NOBRE! EU SOU PODEROSA! – Ela gritou.

- REVISTEM ESSA VAGABUNDA AQUI! – Alguém gritou na multidão.

- DEIXEM ESSA TRAIDORA SEM PÊLOS! – Outra pessoa gritou, apelando para o ápice da humilhação para qualquer felino.

- DEIXE-NOS VER! SEREMOS TESTEMUNHA! – Uma velha e corcunda jaguar gritou.

- Bem... Devo obedecer os desejos de meu povo. – Tigrésius disse e fez um sinal para que os guardas segurassem a tigressa e arrancassem suas roupas ali mesmo.

Ilena se debateu, rugiu, gritou chutou, mas de nada adiantou. Os guardas foram rápidos e brutais para rasgar toda sua roupa, ferindo seu corpo no processo. Cheia de arranhões e humilhada, a sorte parecia finalmente estar ao seu lado porque o veneno preso

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nas partes íntimas não caiu junto com a roupa. Mas Khara previra isso e, depois de dar uma facada no próprio ombro para culpar Ilena caso ela já tivesse escondido o veneno em outro lugar e não se safar da prisão, também dera a ideia que sabia que seria apoiada pelo povo.

Assim, Leviatã fez o que Khara ordenara. O mago entoou duas palavras mágicas desconhecidas pelo povo e a pedra de seu cajado brilhou em tons laranjas e negros. Uma nuvem escura, mas não muito densa, com pequenos raios laranjas como uma tempestade surreal saiu da pedra e circundou Ilena a deixando visível como se estivesse atrás da fumaça de uma fogueira. A nuvem sumiu e ao mesmo tempo todos os pêlos dela caíram no chão como se fosse uma peça qualquer de roupa retirada, seguido de um som metálico. Com um rugido que mais parecia um grito assustado ela usou as patas para tentar se cobrir.

Tigrésius se aproximou com um sorriso sutil que apenas ela e os guardas, que já amarravam com as patas para trás, podiam ver. Ele se abaixou e pegou o frasco metálico que caíra dela, a olhou com aquele olhar que claramente dizia “você já era”, e se virou com um semblante de dor e mágoa para o povo.

- Infelizmente, meu amado povo, nossas suspeitas se confirmam. – Ele disse.

O povo foi controlado com dificuldade. Todos queriam arrancar cada membro do corpo de Ilena dolorosamente, muitos xingavam, arranhavam com suas poderosas garras, jogavam pedras, alguns até cuspiam nela, e, verdade seja dita, Tigrésius e seus aliados deixaram muitas dessas agressões a atingirem de propósito. Até idosos e crianças participaram desse cortejo macabro seguindo até a porta do castelo do rei enquanto Ilena era literalmente arrastada o caminho todo, se debatendo, gritando, praguejando e acusando o rei e sua irmã por tudo aquilo. Mas Tigrésius em poucos dias fora de um vilão tirânico assustador para um pobre tigre seduzido e traído por sua esposa, na mente do povo. Agora, com a acusação de Ilena comprovada em público, sua rede de prostituição escancarada e o ataque à “pobre e inocente Khara”, nem se as luas irmãs de Likastía gritassem que Tigrésius era o culpado pela morte do rei Estefan o povo acreditaria.

~o~

Dois meses depois, a máscara de pobre coitado do rei não durara nem por um mês após o incidente no palácio de Ilena. Ele já havia torturado e matado muita gente apenas por diversão. Seu alvo favorito nesses dois meses tinha sido Ilena que sofrera de frio, fome e sede nas masmorras do castelo, seu pêlo sempre sendo queimado pelo próprio rei quando dava sinais de crescimento. Tigrésius condenara Ilena à trabalhos forçados nas minas de carvão como escrava pelo resto de sua vida, sem o direito de usar o nome Tiger nunca mais. Porém, Ilena tentara fugir (com uma facilidade suspeita) e Tigrésius a feriu mortalmente. O povo comemorou a morte de Ilena como um feriado nacional. Na verdade, virou mesmo um feriado nacional oficial chamado de ‘ Ilenostia Kifey’, em Tiger antigo

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significava “a expulsão do demônio Ilena”. Foram dois dias de festas nas quais o povo comeu, bebeu e dançou como se não houvesse amanhã... E depois sentiu o golpe no meio da cara quando Tigrésius criou uma lei considerada abominável.

Dois dias após as festas pela morte de Ilena, em uma bela tarde de sol, o rei Tigrésius criou a lei que bania uma lei anterior, a da proibição do casamento entre irmãos. E, como se para provar que ele não estava de brincadeira e que ele podia fazer o que quisesse, na noite do dia em que a lei foi sancionada, em um banquete gigantesco, com direito à todo luxo possível naquele mundo, ele se casou com sua irmã Khara. Mas Tigrésius não estava pra brincadeira. Exatamente três meses e meio depois, Khara dera à luz ao ‘único’ filho conhecido de Tigrésius, o herdeiro do trono, um pequeno tigre chamado Eltar.

Quem seria tolo o bastante para contestar o rei que torturava cruelmente qualquer um que ousasse respirar do jeito errado perto dele? Você tentaria dar uma lição de moral em um rei que se mostrava cada vez mais cruel e tirano com seu povo? Que podia ferir cruelmente até mesmo um aliado em público apenas porque ele olhou torto para alguma coisa? Ou apenas para ‘relaxar’ como ele mesmo dizia sempre? Você arriscaria seu belo pescoço assim? O povo de Likastía nunca rezou tanto para que alguém tivesse poder suficiente para enfrentar um rei. O rei mais tirano de toda a história de Likastía.

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Nova geração

- De quem foi essa ideia? – Lordok perguntou em tom sério, sentado em seu trono de madeira negra com Teira ao seu lado, e Hunna e Fagrir em pé um pouco atrás.

À frente, dois tigres e uma Lonçar, uma mestiça filha de um leão e uma onça, estavam em pé de cabeça baixa, em completo silêncio. Mas a resposta era um pouco óbvia.

- Bem. Não vão falar? Então deixem-me advinhar. – Lordok disse, em parte orgulhoso pela união entre eles. – Rádara não foi, não é de tomar iniciativa para coisas insanas, mas também não abandona os companheiros. Seth, muito menos. Calmo e pacifista demais...

Então... Vejamos... Ah, claro! Carya. A ideia só pode ter partido da mente inquieta do grupo.

- Não, pai. A ideia foi minha. – Rádara disse erguendo a cabeça e dando um passo à frente, cheia de coragem. – Eu achei que seria divertido pular do topo da cahoeira e...

- Não. A ideia foi minha, padrinho. Sinto muito. – Seth disse dando um passo à frente ainda cabisbaixo.

- Parem vocês dois. Fui eu, padrinho. O senhor tem razão. Eu quis ir até lá pra treinarmos nossas forças e nossa habilidade na natação. – Carya disse olhando torto para Rádara e Seth.

- Eu sei que você gosta de treinar suas forças, ultrapassar seus limites, Carya, e admiro isso. Em breve você será uma grande guerreira do meu exército, uma comandante, provavelmente. Mas não deve se arriscar e à seu irmão e amiga assim. – Lordok disse.

- Mas nós não estávamos nos arriscando. Nós temos força suficiente para esse desafio, eu avaliei a situação... – Carya dizia, mas foi interrompida.

- Você obviamente não avaliou bem, Carya, já que seu irmão se feriu. – Fagrir disse sério, mas sem nenhum traço de raiva na voz.

- Ele só se feriu porque não treina como deve. Ele é um fraco! – Carya disse com raiva e Seth se entriteceu, mas não disse e nem olhou para a irmã.

- CALE A BOCA, CARYA! – Hunna perdeu a paciência. Algo que acontecia com muita frequência ultimamente. – Nunca mais chame seu irmão de fraco! Ninguém aqui é fraco.

Peça desculpas à ele agora!

Carya ergueu o queixo com um ar de desafio. - Não vou me desculpar por dizer a verdade. Ele é fraco, um molenga emotivo que não consegue nem caçar sem chorar pela morte da presa!

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- Pois bem. Se é assim que você quer assim será. Até você pedir desculpas a seu irmão por tudo que disse, você não sairá de casa para se divertir e cuidará do ferimento de seu irmão. – Hunna disse.

- Pai! – Carya recorreu à Fagrir que sempre a apoiava.

- Sinto muito, querida, mas sua mãe está certa. – Fagrir respondeu muit sério.

- Carya você ouviu. Até pedir perdão à seu irmão você também será afastada de seus treinos. – Lordok disse com uma pontada de dor no coração. Ele odiava ter que castigar qualquer um dos três. –Rádara você será responsável por impedir que Carya fuja de seu castigo para aprender a ser responsável por suas ações.

Aquilo era pior que um tapa na cara de Rádara. Ela era muito apegada à Carya e ter que cuidar da punição da amiga doeria mais do que tudo. Por outro lado, Carya não tentaria fugir para não colocar Rádara em apuros. Rádara acompanhou a amiga até em casa e ficou do lado de fora, vigiando.

Ainda na sala em frente aos pais e padrinhos, Seth, um tigre de pêlos brancos com listras negras e bonitos olhos cinzentos, estava apoiado de pé com o auxílio de uma bengala. Ele finalmente ergueu a cabeça e disse: - Mãe, pai, padrinho, madrinha... Eu entendo porque fizeram isso. A senhora, mãe, tem medo que minha irmãzona se torne igual ao nosso pai. Mas ela não é igual à ele. Ela só é tempestuosa, mas tem bom coração.

Por favor, tirem ela do castigo. Ela só quer que eu seja mais forte para me defender melhor.

Ela não falou aquilo por mal.

- Seth, você tem um coração puro e gentil, o que é muito bonito, mas às vezes, meu rapaz, temos que ser rígidos com quem amamos, por mais que isso doa. – Lordok disse com um carinho pelo rapaz que ajudara a criar e a quem amava como seu próprio filho.

- Sua mãe está certa, querido. Carya precisa ser mais prudente e menos...

Tempestuosa, como você disse. – Teira disse com pena do rapaz.

- Eu.. Eu entendo. Juro. Mas eu não fiquei bravo com ela. Ela cuida de mim e da Rádara, sei que ela nos ama. Ela não é como ele... Mãe, pai, por favor... – Seth já estava trêmulo de emoção.

- Sinto muito, querido. Mas ela terá que pedir perdão. – Hunna disse.

- Você é um rapaz sábio, Seth, tenho certeza que pode compreender. – Fagrir disse.

Dias se passaram. Carya era uma tigresa enérgica, sempre fazendo algo para ajudar ou treinando. Ficar presa era uma tortura, mas ela não queria ceder. Ela estava certa, sabia disso. Seth era muito fraco e isso um dia podia causar um ferimento mortal à ele. Por anos seu mais biológico fingira que eles não existiam, sempre enviando ataques aos leoninos como se seus filhos nem estivessem ali. Lordok repelia os ataques e atacavam ele de volta, mas nunca o atacara especificamente, como se seus filhos não fossem dignos nem da mínima atenção. Mas isso uma hora podia mudar. Ela protegeria Rádara e Seth com a

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própria vida sem vacilar, mas e se ela não estivesse por perto? Rádara não era tão hábil na guerra quanto ela, mas era muito boa nas lutas e feroz. Mas Seth... Ele era carinhoso demais, puro demais, calmo demais e sempre via bondade em todo mundo.

- Ele é carinhoso demais... – Carya disse a si mesma, encolhida em seu quarto. E então algo a atingiu. Ele podia ter ficado magoado com o que ela disse. Pior. Ele podia estar se sentindo culpado por ela ter sido castigada. - Não. Que droga...

Aproveitando que toda a família tinha saído para conversar com Teira e Lordok, Carya chamou Rádara que montava guarda do lado de fora e pediu ajuda. Carya era péssima com trabalhos domésticos, mas Rádara, como futura rainha, era especialista no assunto para comandar as servas da casa. Carya fez questão de fazer tudo seguindo as instruções da amiga, mas sem deixá-la colocar a mão na massa. Quando a família chegou havia um magnífico jantar elegante na mesa. Carya serviu à todos e, no prato de seu irmão, ela colocou uma flor branca de cinco pétalas, a flor favorita de Seth.

- Eu te amo, irmãozinho. Você é bobo e precisa ser menos... Sensível. Para o seu próprio bem. – Carya disse meio sem jeito. - Mas, aconteça o que acontecer, eu vou cuidar de você. Me desculpe se eu ferí seu te magoei?

- Claro, irmãzona. Eu te amo. – Seth disse se levantando para abraçar a irmã. Fagrir enxugou uma lágrima sutilmente, enquanto Hunna apertava a mão dele e tinha a maior cara de boba.

- Vamos, já ta bom ne. Chega de tanto grude. – Carya afastou o irmão gentilmente e sinalizou pra todos se sentarem, sentando logo em seguida. – Provem e me digam o que acharam. Eu mesma que fiz tudo.

Os três deram uma garfada e pararam com a comida na boca e uma expressão estranha.

- Então? Como está? – Carya perguntou.

- Irmãzona, eu te amo. Mas... Da próxima vez, pode só pedir desculpas ta. – Seth disse não conseguindo evitar de cospir a comida extremamente salgada e caindo na risada.

~o~

- Carya! Aumente o apoio na pata esquerda e foque seu golpe acima da cabeça! –

Rodan, capitão da guarda pessoal de Lordok e mestre de Carya no combate corpo a corpo, disse. Ele era seu mestre desde que ela era uma filhotinha. Rodan era o tentente que havia acompanhado Fagrir, Hunna e Teira na fuga da cidade e tanto os ajudara. Por isso era muito querido pelos pais da menina e acompanhara o crescimento dos gêmeos bem de perto. Era um mestre rigoroso e exigente, bem o tipo de mestre que Carya respeitava. – Já chega!

Bom treino hoje, mas amanhã iremos praticar descendo as montanhas de novo. Lordok e seus pais já permitiram.

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- Amanhã tudo indica que choverá bastante e o terreno ficará escorregadio, muito difícil. – Carya disse se alongando.

- Exato. Quer desistir? – Rodan perguntou sabendo o que ela responderia. Ambos adoravam um desafio e ela era uma jovem muito divertida, conseguindo arrancar boas risadas dele a vida toda. Por mais que ela fosse jovem, mesmo quando era criança, ele sempre se sentira mais à vontade para conversar com ela. Era fácil, como se ela tivesse uma chave mágica que o fizesse se soltar e falar mais em 20 minutos com ela do que falara a vida toda com Lordok, seu rei e amigo mais próximo.

- Claro que não! Vamos mostrar pra essas montanhas quem é que manda aqui! –

Carya disse animada.

- Carya! Vamos? – Rádara se aproximou.

- Sim. Claro. Obrigada pelo treino, senhor Rodan. Até amanhã. – Ela disse e saiu correndo com a inseparável amiga do lado.

- Eu não gosto disso. Ele força você demais. – Rádara disse quando já estavam longe, seus pêlos amarelos com círculos negros esvoaçando ao vento.

- Rádara, eu te amo, mas você é muito super protetora. – Carya disse. – O senhor Rodan é meu mestre de combate, assim como seu pai é meu mestre nas táticas de guerra e de magia do Seth. É trabalho deles forçarem os aprendizes.

- Meu pai também é meu mestre de combate e táticas, minha mãe e a senhora Hunna me ensinam as coisas que uma rainha tem que saber, mas nenhum deles nunca forçou tanto a mim, ou Seth ou mesmo você. Você pode se machucar de verdade uma hora dessas e eu sei que o capitão Rodan não ia se sentir bem com isso porque ele gosta muito da gente e é leal ao meu pai. Mas eu acho que ele nem percebe como te expõe ao perigo.

- Rádara. Pare. Agora você está sendo dramática. Amanhã eu vou voltar de noite porque vamos descer as montanhas, aí podemos fazer uma festinha noturna, só eu e você.

Só as meninas. Pra você ter certeza de que estou intacta. Certo?

Rádara tentou convencer a amiga a desistir desse treino, mas, como sempre, não conseguiu. Ela tinha uma boa lábia com todo mundo, mas quando se tratava de Carya, às vezes parecia que Rádara travava.

~o~

Eltar era um bonito e forte tigre de 14 anos, com um porte altivo e um olhar distante, quase triste. Aos 5 anos, Eltar estava de pé à frente do pai naquela noite, com uma mesa entre eles repleta de nobres, cercada por servos. Quando seu pai o impediu de se sentar para comer e deu a ordem para que ele matasse uma serva qualquer ali de pé ou não teria direito à jantar, todos os servos estremeceram, mas não levantaram a cabeça com medo.

Eltar sentiu o sangue gelar nas veias. Ele recusou veementemente, mesmo morrendo de

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medo do pai. Foi uma decisão ruim. Nunca se dizia não à Tigrésius, Eltar já tinha pago caro por isso antes, mas ele não podia matar uma pobre fêmea ali por nada. Ele não conseguia.

Sua mãe, sentada perto de seu pai, o olhou com tanto desprezo que um soco doeria menos.

Tigrésius olhou para seu prato e começou a comer calmamente, o mandando se sentar ao seu lado na cadeira vazia.

Eltar mesmo tão novo conhecia seu pai bem o bastante para temer essa calma, mas obedeceu. Quando uma serva se aproximou e serviu o garoto, ela furtivamente o olhou com a gratidão estampada nos olhos, mas logo seu olhar estampou o medo. Tigrésius, silencioso como um demônio, se levantar e segurara a cauda cortada da serva, pegou o pulso dela e colocou em cima do prato do filho, em cima da comida quente. Ela gritou e ele apenas cortou o pulso da jovem numa linha vertical, o sangue jorrando na comida.

- Pára pai. Por favor. – Eltar gritou se levantando. Foi a pior das suas ideias.

O “por favor” para Tigrésius foi como uma facada na cara. Ele largou a serva que caiu no chão como um saco de batatas, viva, mas perdendo muito sangue, agarrou o pescoço do filho e empurrou a cabeça dele em direção ao prato sangrento. Ele o forçou a beber o sangue da moça, quase o afogando no prato. Ninguém se moveu na mesa, todo mundo estava acostumado com as loucuras do rei, alguns até gostavam. Khara estava observando a cena com uma expressão que não deixava dúvidas de que ela aprovava a loucura do marido. Quando o prato estava vazio, Tigrésius soltou o garoto que se encolheu no chão tossindo.

- SEU MONSTRO! EU VOU TE MATAR! EU ODEIO VOCÊ! EU ODEIO TODOS VOCÊS. –

Eltar gritava. Todos apenas riram, o rei ainda de pé, de costas para o filho. Eltar não se conteve. Ele estava com tanto ódio que seu corpo parecia que ia explodir a qualquer minuto. Ele levantou, correu até a mesa, pegou uma faca de cortar carnes e correu em direção ao pai que o observava sem mover um músculo. – AAAAAAAH!!!!

Tigrésius parou o golpe do pequeno tigre facilmente. Torceu seu braço e o colocou de costas para ele. – Você é um fraco, Eltar. Quando tentar atacar um inimigo seja mais esperto se não for mais forte, garoto estúpido. Eu devia arrancar seu braço já que você não sabe nem dar um golpe direito.

- Não papai, me perdoe. Eu não vou mais fazer isso. Desculpe, papai. – Eltar chorou.

Esse foi seu erro.

Furioso, Tigrésius rosnou e, com a mesma faca que o garoto tinha usado para tentar atacá-lo, usou seu poder do rei, as chamas de Éris no anel, transformando a lâmina em uma lâmina de fogo. – Nunca mais implore por nada, seu merda imprestável. – Ele disse enquanto fazia um corte lento e profundo na parte frontal da garganta do filho. Ninguém se moveu, ninguém o ajudou. Sua mãe nem mesmo foi visitá-lo enquanto os servos cuidavam

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dele. Ás vezes ele não sabia quem odiava mais. Seu pai com seus castigos físicos e torturas, ou sua mãe que o tratava com desprezo e ofensas.

Ele aprendera a não confiar em ninguém. Muitas vezes ficou acorrentado nos porões escuros, frios e fedorentos, sem comer ou beber por dias, apenas por ter desabafado com algum servo ou algum amigo que o delatava para o rei em troca de alguma recompensa.

Neste momento ele voltava de uma missão dada pelo pai para saquear uma ilha que era protegida pelos leoninos e trazia algumas belas fêmeas como escravas para o pai. Ele aprendera arduamente que era sempre bom trazer presentes para o rei, algo inesperado, algo além do que lhe fora ordenado fazer, mas que agradasse aos gostos sádicos do pai.

Aquelas fêmeas não viveriam muito tempo, ele sabia disso. Mas aprendera a não se importar. Era mais seguro assim.

- Saudações, meu rei. – Eltar disse formalmente, se ajoelhando. Nunca devia chamar o rei de pai em público. Já fora açoitado por noites seguidas por causa disso. – Minha rainha, a senhora está magnífica como sempre.

- Eu sei. – Khara disse sem dar muita atenção. – Pelo menos o idiota não voltou ferido.

Querido, vou receber a costureira. Tenho coisas melhores para fazer do que gastar minha beleza com coisas de homens.

- Vá, querida. A guerra não deve incomodar sua linda cabecinha. – Tigrésius disse e se voltou para o filho depois que ela saiu. – Tudo saiu como eu planejei, não foi?

- Sim senhor. Os números estão aqui. – Eltar entregou as anotações sobre os saques, sem encarar o pai ou tremer. Outra lição duramente aprendida.

- Humm. – Tigrésius avaliou os números, já planejando ir contar pessoalmente, quase torcendo para alguém ser tolo o bastante para tentar roubá-lo e ele ter uma desculpa para torturar alguém. Não que ele realmente precisasse de alguma desculpa pra isso. – Espere.

O que são esses números separados de escravos?

- São fêmeas que encontrei e achei que o senhor gostaria de aproveitá-las. – Eltar respondeu sem qualquer emoção no rosto.

- Hmm. Não mandei trazer escravas. Mas foi uma boa iniciativa. As daqui já estão muito usadas... HAHAHAHAHA! Por mim, é claro. Vamos ver se você pelo menos escolheu bem. Quem sabe eu não te dê uma de presente quando eu me cansar dela. – Tigrésius respondeu com aquele ar malicioso, obviamente lembrando de quando seu filho arranjou uma namorada e ele abusou e matou a moça porque... Bem, porque ele achou ela bonitinha.

Eltar sabia que era só uma tentativa de arrancar algum olhar torto, ou mesmo um suspiro dele para que o pai o agredisse ou castigasse de alguma forma inimaginavelmente cruel. Mas ele, aos 14 anos, era especialista em manter o controle de si mesmo.

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- Não ouso ter tamanha ambição de desejar algo que pertence ao meu rei, mas se me entregar uma fêmea qualquer não rejeitarei tal honra. – Eltar respondeu com lembranças amargas muito bem contidas. Se curvou e saiu quando o rei o dispensou. Em seu quarto um servo que o servia a anos, preparava seu banho.

- Deseja mais alguma coisa, alteza? – O servo disse de cabeça baixa.

- Não. Retire-se da minha presença, inútil. – Eltar disse rudemente e o servo saiu. Um dia eu vou matar a todos neste reino idiota. Até aqueles pobretões da cidade que nunca me ajudaram em nada. Um dia... Ele pensou se afundando na banheira de água quente.

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Oportunidades

- Eltar, alteza. – O mago Leviatã chamou.

Eltar sentiu aquele embrulho no estômago que tinha toda vez que sequer pensava no mago que tanto odiava, com toda razão. – Leviatã, em que posso ajudá-lo? – Eltar disse com sua habilidade perfeita de fingir simpatia.

- A jovem que você me trouxe de presente é bastante interessante. Agradeço pelo presente, rapaz. Mas, espero que me conceda um presente melhor em breve. – O mago disse sorrindo predatoriamente e Eltar precisou de todo seu auto controle pra não demonstrar o ódio que sentia do mago.

- Em breve, eu prometo. Primeiro devo manter meu rei feliz. Você me entende, não é?

– Eltar disse sorrindo tão genuinamente que parecia mesmo real.

- Sim, claro. Só não me faça esperar muito. Nós sabemos que não sou muito paciente.

– Leviatã disse gentilmente e saiu.

- Velho desgraçado. – Eltar disse baixinho num sussurro. – Seu dia vai chegar.

- Alteza, vossa mãe está passando mal e não encontro o rei. – Um servo se aproximou quase tropeçando nas próprias patas.

Podia morrer de uma vez. Eltar pensou, mas apenas acrescentou em voz alta com o tom mais triste e assustado do universo: - Pelas Luas! Encontre o mago Leviatã, ele foi para os jardins. Eu buscarei meu rei. – Ele saiu em busca do rei que, quando não era encontrado, só podia estar em um lugar: torturando algum azarado na sala secreta das masmorras. A única sala em que apenas Tigrésius e Leviatã entravam com seu prisioneiro misterioso.

Fosse quem fosse o pobre felino, Eltar não sabia como ele ainda podia estar vivo depois de anos de tortura ou mesmo se era um só.

Ele bateu no gongo na porta de pedra da sala secreta e seu pai sai sujo de sangue até mesmo nos dois caninos enormes, lambendo como se fosse uma deliciosa sobremesa.

- O que você quer, moleque? – Tigrésius disse de mal humor.

- Minha mãe está passando mal. – Eltar disse com uma expressão assustada, mas intimimamente saltitando de alegria porque ele sabia que essa era a única forma de realmente ferir o rei.

Tigrésius ficou em choque por alguns segundos, então correu sem nem mesmo falar com o filho, em direção ao quarto dele, deixando Eltar para trás. A preocupação de Tigrésius com a irmã-esposa lhe custaria caro. O problema foi que Tigrésius esqueceu de fechar a porta de pedra e, lógico, essa chance de ouro Eltar não perderia. Mesmo se o pai o torturasse por anos seguidos por causa disso, a oportunidade de descobrir algo valioso valia

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a pena. Sem pensar duas vezes, o jovem tigre entrou na sala secreta e a cena que viu o encheu de repulsa.

~o~

- Rádara, onde está sua cabeça, filha? – Teira perguntou chamando a atenção da filha pela terceira vez em menos de uma hora. A garota parecia preocupada, aérea, algo incomum para ela que sempre fora aplicada em suas aulas.

- Desculpe, mãe. – Rádara disse voltando sua atenção às regras de etiqueta e posicionamento correto dos nobres na mesa do rei.

- Ela está bem, querida. – Hunna disse entrando com uma serva trazendo chá para as três. – Carya é uma guerreira natural e Rodan é um grande guerreiro que morreria antes que qualquer coisa acontecesse com ela.

- Eu sei. Só que... Está chovendo tanto... – Rádara não conseguia evitar a preocupação com a amiga desde o dia anterior quando ela dissera que desceria a montanha para os treinos. E estava começando a escurecer...

- Querida, se acalme. Venha vamos tomar algo quente. – Teira pegou a mão da filha e levou para as poltronas em frente à lareira. – Seth e Lordok ainda estão praticando e não acho que eles irão parar antes do fim da tarde.

- Eu sei, mas Fagrir está ocupado com o Conselho e eu não tinha mais nada para fazer.

Odeio ficar em casa sozinha. – Hunna disse.

- Mãe, o senhor Rodan enviou uma mensagem. Não fique preocupada, minha mãe... –

Seth disse entrando na sala com Lordok logo atrás.

- Seth se você fala algo assim automaticamente ela vai se preocupar. – Lordok disse sorrindo para o afilhado-aprendiz. – Hunna, Rodan avisou que ele e Carya ficaram presos lá embaixo por causa da chuva que se intensificou mais que o esperado. Eles encontraram abrigo, comida, estão aquecidos e voltarão assim que o caminho secar.

- Pelas Luas... – Hunna disse com uma mão no peito. Ela odiava quando Carya tinha que passar a noite fora em alguma missão ou treinamento. Seth correu pra abraçar a mãe e beijar a mão dela. O tigre branco era sempre um poço de doçura e tranquilidade para qualquer um que se aproximasse.

- Ela vai ficar bem, Hunna. Rodan não vai deixar nada acontecer com ela, você sabe disso. – Teira disse fazendo um cafuné na cabeça peluda da amiga.

- Eu sei... Só não gosto de ficar longe dos meus filhos. – Hunna disse.

- Eu sabia! Mas ninguém me escuta. – Rádara levantou como se um escorpião tivesse picado sua cauda. – Agora ela está lá fora nesse temporal, sem nenhum conforto, por culpa de vocês que deixaram ela sair!

- Rádara! – Lordok disse em tom severo.

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- O que? Será que não era evidente que isso ia acontecer? – Rádara nem ouvia mais o que qualquer um estava falando, tudo que ela sabia é que a pessoa mais importante no mundo pra ela estava no frio, longe de qualquer conforto, sem que ela pudesse nem mesmo dar algum consolo ou ajuda. Ela virou as costas e seguiu para o seu quarto como um furacão. Era raro tirar a princesa de sua calma e auto controle, ela era muito parecida com Lordok e sem dúvida seria uma grande rainha, mas quando o assunto era Carya, sua calma podia evaporar rapidamente se qualquer coisa ameaçasse a segurança da amiga. Mas, naquele dia, não era só o fato de Carya estar nessa situação que a incomodava. Era algo mais, algo que ela suspeitava e que, apesar de tecnicamente não ser algo ruim, a deixava furiosa.