Likastía 01 by Rubi Elhalyn - HTML preview

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Um mês depois...

Carya observava Vó e Lordok brincando com Rania feito bobos, Teira sentada ao seu lado, mas a mente dela estava longe. Rodan estava cada dia mais apático, distante. Quinze dias antes parara de falar e já não reconhecia algumas pessoas. Ela estava perdendo ele pra essa maldição insana. Seth e os magos praticamente não dormiam tentando descobrir uma cura ou uma forma de amenizar os sintomas. Devon e outros espiões tentavam de tudo para roubar a cura de Leviatã, mas o mago parecia ter se enfiado na terra ou sumido do planeta. Em breve ela teria que viajar para o reino Tiger com seu exército e a cabeça do antigo rei para assumir seu posto como rainha. Mas ela não queria ir. Não agora com Rodan cada vez mais perdido dentro de si mesmo. Conseguira adiar a viagem para se recuperar do parto prematuro que quase a matara, mas não poderia adiar mais. Rodan estava sentado pouco à frente de Carya, na escada, com a boca entreaberta e um olhar boboca e distante, como se não soubesse nem onde estava e nem qual era seu nome. Provavelmente, não sabia mesmo.

- Querida, vamos descobrir uma cura. Tenha fé. – Teira disse, como se lesse os pensamentos de Carya.

- Não sei mais se tenho fé, tia. Tudo que tentamos dá errado... – Carya disse, cansada, à beira das lágrimas. Ela odiava se sentir impotente.

- Quando menos esperar, querida, algo bom vai acontecer. Sempre acontece. – Teira disse e Carya a olhou intrigada. Desde que fora trazida de volta do sequestro de Eltar, Teira tinha alguns momentos de sabedoria que pareciam não vir dela, mas sim de algo misterioso, além de sua compreensão.

Como se para confirmar a desconfiança de Carya, dois guardas de Lordok e dois Tiger, se aproximaram, cercando um mago e um espião.

- Majestades. – Um dos guardas de Lordok disse.

- Aproxime-se, Milo. Quem são... – Lordok disse e reconheceu os dois que estavam cercados pelo quarteto – Pelas Luas Irmãs!

- O que foi, tio? – Carya se levantou e se aproximou. – Devon!

- Olá, garota bonita. – Devon disse com seu charme habitual, piscando pra Carya e recebendo um olhar de reprovação dos guardas Tiger. – Olhem quem veio até mim quando eu estava perto dos portões.

Devon acenou com o polegar pro lado do mago e abaixou o capuz dele.

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- Leviatã, seu nojento! – Carya quis partir pra cima dele, mas Teira a segurou pelo pulso.

- Ouça o que menos se espera, querida. – Teira disse com aquele olhar enigmático e um sorriso doce.

Carya olhou pro mago que continuava impassível, com a cabeça orgulhosamente erguida. Mas tinha algo errado. Ele parecia muito cansado, olhos fundos como se não dormisse a dias, suas mãos estavam queimadas e ele tinha um inchaço enorme embaixo do manto no peito. Não podia ser uma arma mágica. Devon com certeza o revistara incansavelmente e os guardas também.

- Olá, Rainha Tiger. – Leviatã disse com seu ar altivo, mas, ao mesmo tempo, respeitoso. – Vim curar seu marido.

Por um momento ninguém disse nada, pasmos com a declaração.

- Claro. E meu nome é Julicelmina. – Carya respondeu com deboche. – Como se você fosse curá-lo, sem ganhar nada em troca, agora que tenho o exército e boa parte do povo Tiger sabe que matei o rei no desafio da chama de Éris.

- Estranha escolha de nome, majestade, mas gosto é gosto. – Leviatã disse meio divertido. – Eu não disse que não queria nada em troca. Além de curá-lo vou lhe fornecer o tratamento necessário para que ele se recupere ao longo dos próximos meses e evite qualquer seguela. Mas quero duas coisas em troca.

- Claro. O demônio sempre cobra por seus favores. – Vó disse, batendo a bengala em uma mão, pronta pra jogar o objeto na cara do mago. Lordok colocou uma mão no ombro da velha, sabendo que ela era louca o suficiente pra fazer isso mesmo.

- O que você quer, mago? – Carya perguntou, usando o mesmo tom imponente que Lordok usava nas reuniões com seus súditos e nobres.

- Quero que me deixe ir embora depois que curar seu marido, óbvio.

- Óbvio. – Carya disse com desprezo. – E?

- E quero que cuide dele como se fosse seu. – Leviatã abriu o manto exibindo um pequeno Tiger dorminhoco com uma enorme queimadura no braço e ombro esquerdos. –

Majestade, este é Kursk, filho de Eltar e Ilena. Faz um mês que o pai está tentando matá-lo de inúmeras formas. Não sei se poderei protegê-lo muito mais e preciso focar em encontrar e destruir Eltar. Você é a rainha Tiger, além de ser tia e sobrinha dele. Quem melhor para proteger esse rapaz do que você?

O queixo de Carya poderia facilmente tocar o chão se ela abrisse mais a boca. Lordok, Vó e até mesmo os auto controlados guardas estavam boquiabertos. Só Teira tinha um sorriso discreto e amoroso no rosto, mas nenhum fragmento de surpresa. Lordok notou e fez uma nota mental para investigar aquilo depois.

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- Você...Você quer só que...que eu cuide dele? – Carya perguntou, as palavras soando surreais na mente dela.

- E que me deixe ir. Preciso encontrar aquele rapaz tolo e acertar umas contas. Quero que crie esse rapazinho como um filho, como o nobre que ele é. – Leviatã disse com a mesma intensidade que pronunciava um encantamento. – E então, rainha Tiger? Temos um acordo?

Carya ainda olhava pra ele embasbacada quando o pequeno Kursk acordou, coçando os olhinhos com os punhos. O olhar do menino se moveu curiosamente pelo ambiente.

Ele olhou pro mago, puxou a gola da roupa de Leviatã e perguntou: - Casa, tio Atã?

Casa?

- Quase, meu fofinho. Quase. – Leviatã disse olhando pro menino com o mesmo amor que Carya vira nos olhos de Rodan quando segurara Rania antes de começar a perder a lucidez. Ela olhou pro marido que continuava do mesmo jeito, mas agora também babava.

Kursk viu algo que chamou sua atenção, se debateu e Leviatã deixou ele descer. O menino correu, tropeçando e se levantando pra correr de novo, até parar na pequena Tiger que brincava no chão em cima de uma toalha quadriculada, aos pés de Lordok e Vó, tentando (e falhando miseravelmente) engatinhar.

- Axim, ó. Axim. – Kursk sentou na toalha ao lado de Rania e ficou de quatro, tentando ensinar Rania a engatinhar.

Lordok com seu poder pôde ver um fio dourado entrelaçado entre as duas crianças.

Ele vira isso entre Rádara e Carya, Carya e Seth, Rodan e Devon, Teira e Hunna, e tantos outros felinos ao longo da vida. Ele sabia que, não importava o que acontecesse em suas vidas, aqueles dois seriam amigos inseparáveis. Lordok olhou pra Carya e ela percebeu que ele sentira algo entre as crianças que, em poucos segundos, já pareciam amigas, Kursk com um ar protetor e Rania encantada.

- Cure meu marido, Leviatã, e tem minha palavra de que poderá ir embora sem que ninguém vá atrás de você e cuidarei de Kursk como o membro da família real Tiger que ele é. – Carya deu sua palavra formalmente.

E a palavra de um Tiger nunca voltava atrás.

Nunca.

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Gratidão

Leviatã, cercado sempre por guardas Tiger e leoninos, ensinou à Seth a receita de cura e os cuidados posteriores pra evitar quaisquer efeitos colaterais de longo prazo. Lordok e Carya assistiram literalmente roendo as unhas enquanto os dois magos poderosos curavam Rodan. Hunna se recusou a sair do quarto enquanto Leviatã estivesse na cidade. Ela tremia convulsivamente com crises de pânico, as memórias do passado assustador a atormentando. Teira não tinha medo de Leviatã, o que deixou Lordok mais intrigado. Ela estava calma, serena, mas o marido preferiu não arriscar. Todos conheciam os desejos maníacos do mago Tiger. Assim, Teira ficou com Hunna, aproveitando para acalmar a amiga que, durante as crises de choro e desespero, não aceitava nem mesmo a proximidade de Fagrir ou Seth. Apenas Teira, Carya, Rádara e Vó conseguiam chegar perto dela. Rodan estava tão distante de tudo, a demência o dominando quase totalmente, que nem conseguia parar de babar ou andar sem ajuda de uma cadeira de rodas feita de madeira.

Era triste ver um leonino tão forte, tão poderoso, tão autossuficiente daquele jeito. No fundo de sua mente, bem no fundo, ele tinha consciência de seu estado, os olhares de pena, o trabalho que dava a todos, a tristeza de Carya. Mas não podia fazer nada além de observar como se visse sua vida de fora, como se fosse um mero espectador. A cura veio como uma espécie de calor reconfortante, como o amanhecer num belo dia de primavera, dentro de sua mente. Era sutil e levaria mais dois dias para ele começar a reagir. Leviatã seria mantido na cidade até que os efeitos da cura pudessem ser vistos. Ele não protestou, seu único pedido foi para ficar com Kursk o máximo que pudesse para se despedir do menino.

Mesmo com a preocupação pela fama do mago, ninguém teve coragem de negar esse pedido porque Kursk chamava por ele o tempo todo. Enquanto brincava com Rania e tentava ensinar à ele como andar, Kurks até imitava os trejeitos do mago. Era visível o carinho do menino pelo velho e do velho por ele. Carya permitiu que Kursk ficasse com o mago, desde que ambos estivessem sempre acompanhados de guardas, mesmo na hora de dormir. Ela nunca se perdoaria se o mago fizesse algum mal à criança que agora era sua responsabilidade.

Quando isso ficou acertado, Rádara foi até ela, de novo, tentando ter alguma relação sexual com a amiga. Era uma prática cada vez mais insistente desde que os sintomas de Rodan pioraram. Carya sempre se afastava de Rádara, praticamente sem falar com ela, mas naquele dia Devon viu a mulher ir até a rainha Tiger com aquele ar sedutor e se virou, magoado, indo pra casa dos dois sozinho. Carya viu ele se afastar enquanto Rádara se aproximava e a raiva fez seu sangue nada paciente ferver. Não era só pela insistência, o

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desrespeito Devon e à Rodan que estava doente. Mas a forma como Rádara agia com Rania, e agora com Kursk, também estavam entalado na garganta de Carya. Ela esperou Rádara se aproximar, cruzou os braços sobre o peito e rosnou baixo.

- O que você quer? – Carya perguntou rudemente.

- Falar com você, minha...

- Não sou “sua” nada, Rádara! Meu marido está doente com uma maldição que, aliás, você insistiu que ele não tinha. Você trata minha filha como se fosse um inseto que você é obrigada a aturar e está começando a fazer isso com Kursk também...

- Ela é filha daquele mentiroso que roubou você de mim. Vai ser tão falsa quanto ele e o garoto...bem...sabemos que ele será um maníaco como...

- Porra, Rádara! Cala essa boca antes que eu quebre seus dentes! – Carya quase gritou.

– Você está falando dos MEUS FILHOS! As duas criaturas por quem sou responsável e sua praga invejosa não vai pegar nas minhas crianças! Cuida da merda da sua vida e do seu marido que é um bom felino e você vive humilhando!

- Aquele lá não tem nada a ver comigo! Se você parasse de se preocupar com aquele velho e viesse comigo, eu deixaria tudo pra trás sem pensar duas vezes!

- Você ouve as merdas que saem da sua boca? ‘Aquele lá’ é seu marido, sua anta!

Alguém que te protegeu e te ama a ponto de aturar seus preconceitos idiotas que não sei onde você aprendeu. Eu amo meu marido, amo meus filhos e nunca deixaria eles por causa da sua neurose!

- Você não ama aquele velho. Está com pena dele. E essas coisinhas já tem um sangue ruim...

Carya deu dois passos à frente, parando a poucos centímetros de Rádara, a fumaça quente saindo de suas narinas dilatadas, o calor emanando de seu corpo. Rádara se calou assustada. Carya disse com a voz baixa, emanando perigo: - Se sua teoria estiver certa, Rádara, então eu também tenho sangue ruim. Eu também sou perigosa. E, acredite, sua merdinha fútil, neste momento eu adoraria torturar e arrancar cada pêlo do seu corpo com uma pinça. Nunca mais fale assim dos meus filhos ou, eu juro por Kallisti, Rádara... Você vai implorar pela morte.

Carya se virou e entrou antes que seu impulso assassino a dominasse. Rádara saiu o mais dignamente possível, controlando os tremores nervosos e as lágrimas que ameaçavam cair. Ela entrou em casa e dispensou as servas com grosseria. Devon, sentado à mesa, continuou comendo tranquilamente.

- Vejo que seu pretenso encontro não saiu como você planejava. De novo. – Devon disse ironicamente.

- Vai se danar, espiãozinho de quinta! – Rádara disse, batendo ambas as mãos sobre a mesa onde Devon estava, fazendo os pratos e talheres pularem.

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- Acho que vou agradecer à Carya. Parece que ela te disse algumas verdades, já que você está mais nervosinha que o habitual. – Devon disse, continuando a comer normalmente. Ele sentia uma dor lancinante no peito. Odiava ser tão cruel com a mulher que amava, mas ela também já o tinha ferido de tantas formas...

- A culpa é sua! Você fez um draminha que fez ela se sentir culpada!

- Primeiro a culpa foi do meu pai. Agora eu sou o culpado. Incrível. Daqui a pouco você vai culpar o velho que vende charutos na praça pela Carya não corresponder à sua loucura.

- Eu odeio você!

- Eu amo você. – Devon disse amargamente. – Mas você é tola demais para perceber.

- Ama tanto que se aproveitou de mim na nossa segunda noite como casados!

Devon deu um soco na mesa, fazendo Rádara dar um pulo de susto. – Estou cansado de você me acusando disso...dessa coisa nojenta! Eu nunca toquei em nenhuma moça sem o desejo dela! Muito menos em você e você sabe disso! Pode me humilhar pelo meu nascimento humilde, por ser um simples espião, por não ser a sua preciosa Carya, - Ele se aproximou com passos lentos e firmes, a raiva nítida em seus olhos – mas nunca, nunca Rádara, de ser um estuprador! Eu nunca faria isso com ninguém em minha vida e se disser isso de novo eu não respondo por mim!

- Mas...

- MAS PORRA NENHUMA! – Devon gritou e ela se encolheu encostada na parede, a poucos centímetros dele. Devon nunca levantava a voz e ele era realmente intimidador naquele momento. – Você aceitou minhas carícias, pediu por mais e gemeu loucamente.

Então não venha me dizer que você não queria. Nós dois sabemos que você queria pra caramba! Mas você é burra demais pra admitir que sente algo por um simples

“espiãozinho”, alguém que não é a sua Carya! Agora sente-se e coma. Você não comeu nada desde ontem.

Ele se virou e caminhou para seu lugar.

- Nã..Não estou cocom fofome. – Rádara tremia visivelmente.

Devon parou onde estava, a poucos passos de sua cadeira. Seus ombros largos subiram e desceram com sua tentativa de respirar fundo pra não fazer besteira. Ele virou-se de uma única vez, pegou Rádara no colo tão rápido que ela mal teve tempo pra protestar, e a colocou sentada na cadeira à frente da dele.

- Coma e não teste minha paciência. – Devon disse entredentes.

- Você não pode me obrigar!

- Tem certeza, querida? Eu fui treinado pra obrigar pessoas muito mais duronas do que você a fazerem o que eu mandasse. Quer mesmo que eu te trate como trato os inimigos que capturo? – Ele disse, parado em pé ao lado da cadeira dela, com um ar perigoso. A paciência dele estava mesmo por um fio.

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Rádara fez menção de se levantar, batendo as mãos na mesa. – Eu prefiro morrer à me sentar com um ninguém à mes...

A frase dela foi cortada quando ele colocou uma mão em seu ombro direito e, com firmeza, a empurrou lentamente de volta à cadeira. Ela desceu e, antes de se sentar, desmaiou quase batendo de cara na mesa.

- Rád? – Devon chamou em pânico, se chutando mentalmente, temendo ter sido muito rude com ela. – Amor? Querida? Minha ninfa, acorde!

Rádara estava gelada. Ele a levou pro divã na sala e chamou uma serva que ficara na cozinha.

- Lia! Traga algo para sua senhora beber. Um suco ácido de flor-negra. – Ele ordenou.

Era o favorito dela e tinha uma acidez que ajudaria a despertar.

- Meu senhor...Não poss... – Lia começou.

- MAS QUE DIABOS, LIA! VÁ LOGO! – Devon gritou fazendo a velha dar um pulo.

Ela correu pra cozinha e voltou com uma vitamina gelada de banana, mel e mamão que Rádara odiava.

- Ficou louca? Ela... – Devon começou, mas o olhar assustado da velha acendeu um alarme em sua mente.

A velha começou a colocar o líquido na boca de Rádara que bebeu sem acordar. A cora pálida sumiu de seus lábios lentamente e o desmaio foi substituído por um sono esgotado.

Ele a cobriu com uma manta que a velha Lia prestativamente trouxe. A velha começou a sair silenciosamente, mas Devon a segurou pelo braço.

- Venha comigo. Agora. – Ele sussurrou e, pelo seu tom, não adiantava discutir.

Chegando na sala onde a briga com a esposa começara, ele colocou a velha sentada numa cadeira, sentou em outra na frente dela e usou o mesmo semblante sombrio que usava quando estava interrogando um inimigo.

- Vou perguntar e não quero mentiras. Se você mentir, eu saberei e nem mesmo sua senhora irá salvá-la do que vou fazer com você. Estamos entendidos?

Lia balançou a cabeça confirmando.

- Rádara não pode beber o suco de flor-negra?

Lia ficou calada.

- Lia... Não é um bom dia pra me irritar... Vou perguntar outra vez. Minha esposa não pode beber o suco de flor-negra?

- Não, senhor. Mas não me pergunte o motivo, por favor. Eu sou leal à minha senhora e ao senhor também, mas ela me pediu...

- Lia, só existe uma contra-indicação à ingestão desse suco. Você já respondeu o que eu queria saber. – Devon disse, um misto de felicidade e temor se apossando dele. – Só mais uma coisa. Se ela não pode, porque há essa flor no armário para o suco?

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Lia abaixou a cabeça. A planta toda era útil como temperos diversos, mas a flor só servia como suco.

- Senhor...eu....por favor... – Lia estava visivelmente dividida.

- Não. Isso não. – Devon entendeu, mas preferia não ter entendido. – Foi você quem a impediu?

Lia confirmou balançando a cabeça.

- Pode ir, Lia. – Ele disse, transtornado. Minutos depois, chamou a velha e ordenou que fosse preparado um jantar festivo. Enviou uma mensagem ao rei pedindo que ele e a rainha jantassem com eles.

Rádara acordou em sua cama e Devon jogou um vestido lindo ao lado dela.

- Vista-se. – Ele disse friamente, sem sequer olhá-la. – Seus pais estão vindo para jantar. Hora do showzinho do ‘casal apaixonado’ pro seu pai, querida.

Ele saiu, deixando Rádara desconfortável. O vestido era um dos poucos que ainda serviam nela. Ela se arrumou e desceu, já encontrando seus pais conversando animadamente com Devon. Lia havia sido dispensada e o próprio Devon disse que serviria o jantar.

Típico de gentinha sem classe como ele. Rádara pensou, irritada.

O jantar terminou e Devon levou todos para a sala de estar. Poucos minutos depois, ele se levantou e ficou de costas para lareira, de frente para seus sogros e Rádara.

- Senhor e senhora, confesso que temos uma razão oculta para este jantar. – Deu uma de suas famosas piscadelas galanteadoras para Rádara que não entendeu nada, mas fingiu concordar com ele. Ele fez um sinal para ela se aproximar e ela foi, confusa.

- Que merda é essa? – Ela sussurrou bem baixinho quando se aproximou dele, forçando um sorriso gentil para Lordok não perceber sua raiva.

- Você verá, querida. – Ele sussurrou de volta. Se voltando para seus sogros, ele disse: -

Estou tão feliz que não sei se consigo falar. Querida, - ele virou-se para Rád com um olhar que era quase como se ele gritasse que sabia de tudo – você conta ou eu conto?

Rádara só podia pensar em duas coisas que ele pudesse estar querendo revelar. Uma era sua aliança secreta com Tigrésius e Eltar. Mas não podia ser isso. Devon não ganharia nada revelando isso, por mais irritado que estivesse com ela. Então, só havia outra possibilidade. Uma que fizera sua língua pesar de medo. Ele não poderia saber... Ela não queria aquilo, tentara acabar com tudo pra não dar a ele esse prazer, porque, sim, ela sabia que isso deixaria Devon nas nuvens. Mas aquela serva imbecil da Lia a impedira todas as vezes! Ela desviou os olhos, o que não passou despercebido por seus pais.

Devon a abraçou e sussurrou eu seu ouvido: - Se você tivesse feito essa loucura, eu mesmo te mataria, querida.

- Qual é o problema? – Lordok perguntou.

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- Acho que minha querida esposa está mais deslumbrada do que eu. Sendo assim, eu conto. – Devon deu um beijo em sua testa e se virou para os sogros, segurando a mão da esposa apertando com tanta força, com tanta raiva, que poderia ter quebrado. – Eu vou ser papai.

Lordok já desconfiava com seu poder, mas odiava se intrometer na intimidade dos outros e preferiu esperar que sua filha e Devon descobrissem e lhes comunicasse. Fora quase um mês de espera angustiante. Ele queria saltar, gritar, tocar mil tambores, abraçar todo mundo na cidade, até seus inimigos, gritando loucamente que seria avô. Ele não se conteve e levantou, esquecendo todo o decoro que um rei deveria ter, abraçando a filha com carinho e Devon com tanta força que chegou a levantar o rapaz do chão, preso em seu abraço. Teira se levantou mais graciosamente, como uma perfeita rainha, colocou as mãos nos ombros de Rádara e olhou em seus olhos de um jeito que a moça podia jurar que sua mãe estava lendo sua alma. Não havia julgamento nos olhos dela, mas ela tinha certeza que Teira sabia que ela tentara abortar desde que descobrira, 15 dias atrás.

A rainha a olhou com ternura e disse: - Você ainda pode concertar as coisas, filha.

Aceite a chance que a vida lhe dá. Você me entendeu?

Havia algo mais naquela pergunta, um significado velado que Rádara não sabia dizer ainda o que era. Ela acenou com a cabeça e lágrimas de raiva brotaram em seus olhos. Teira a abraçou e seu pai se uniu ao abraço achando que a filha estava chorando de felicidade.

Devon se manteve à parte, sabendo o real motivo das lágrimas dela. Agora ela não poderia fazer nada contra o filho deles sem se denunciar. Saber que o fim dessa possibilidade a fazia sofrer tanto foi um golpe mais doloroso do que a facada que ele levara nas costas, traído por um antigo companheiro de guerra anos atrás.

O olhar dos dois se encontrou por um segundo e ele sabia que o dele tinha uma mensagem bem clara que ela percebia: Eu vou proteger meu filho de qualquer um. Até mesmo de você. Mesmo que custe a minha vida.

~o~

Rodan começou a melhorar e Leviatã estava na porta da cidade, agachado em frente ao pequenino Kurks que fungava com o queixo erguido orgulhosamente, fazendo até o impossível para não chorar.

- Seja bom e justo, garoto. Não importa o que aconteça. Se você for mal uma única vez...Bem...Não haverá mais volta. O mundo não é cruel, meu pequeno, mas nós mortais somos. Seja justo e corajoso. Promete que vai tentar? – Leviatã disse e os olhos dele tinham um brilho de lágrimas não derramadas que era de cortar o coração.

- Ometo, tio. Vo sê usto. O senhiô vai tê ogulho de mim. – Kursk disse como um pequeno lord.

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- Eu já tenho, meu pequeno. – Leviatã abraçou o garoto e o soltou antes que começasse a chorar feito um bebê. Ele virou as costas e caminhou sem olhar pra trás.

Kursk ficou em pé trêmulo olhando o velho andar pra longe, um aperto em seu pequenino coração dificultava sua respiração. Nenhum dos adultos parados atrás dele se aproximou, deixando o menino tomar seu tempo. Rania no colo de Vó se contorceu um pouco querendo descer e a velha colocou a criança no chão. Mas, ao invés de engatinhar ou sentar balbuciando coisas desconexas, Rania se levantou meu insegura, deu alguns passinhos incertos, parou ao lado de Kursk e segurou sua mão com força. Todo mundo observou a cena com um carinho tão grande que era quase palpável. Só Rádara estava com uma expressão sombria olhando para as crianças à frente. Carya sentia como se seu peito pudesse explodir de tanto amor por aqueles dois. Rodan segurou a mão dela, mais um sinal de que ele estava voltando ao normal.

O menino não olhou pra Rania, mas se sentiu grato porque a presença dela o confortava imensamente.

- Âski. – Rania balbuciou a pronúncia do nome dele, sua primeira palavra.

Kursk se virou e abraçou Rania com força.

~o~