Likastía IV by Rubi Elhalyn - HTML preview

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Rubi A. Elhalyn

DEDICAtória

Para Aline ‘Fell’ que ama as fofocas sobre a vida dos meus bebês felinos tanto quanto amo escrever.

ÍNDICE

Capítulo 01 ..................................................................................................................... 4

Capítulo 02 ................................................................................................................... 11

Capítulo 03 ................................................................................................................... 18

Capítulo 04 ................................................................................................................... 26

Capítulo 05 ................................................................................................................... 35

Capítulo 06 ................................................................................................................... 44

Capítulo 07 ................................................................................................................... 54

Capítulo 08 ................................................................................................................... 61

Capítulo 09 ................................................................................................................... 69

Capítulo 10 ................................................................................................................... 77

Capítulo 11 ................................................................................................................... 90

Capítulo 12 ................................................................................................................. 100

Capítulo 13 ................................................................................................................. 111

Capítulo 14 ................................................................................................................. 120

Capítulo 15 ................................................................................................................. 133

Capítulo 16 ................................................................................................................. 143

Capítulo 17 ................................................................................................................. 151

Premiando a Lealdade e a generosidade .................................................................... 163

Bônus da Autora ........................................................................................................ 172

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Capítulo 01

Faz muito tempo, muito mesmo, os felinos de Likastía eram apenas um projeto teórico na minha cabeça... Nessa época eu tinha um ajudante, porém, havia algo de errado. Eu percebi cedo, mas cometi um erro: dei uma chance.

~o ⭐ o~

- Vovô! – Aine correu com suas perninhas curtas e agarrou as pernas de Sven, quase o derrubando.

- Lindinha! Querida, não me chama de vovô. Fica parecendo que sou velho. – Sven disse e Hieron e Sunny sorriram.

- Mas, vovô, o senhor é velho. – Aine, em toda a sua sinceridade infantil disse.

- HAHAHAHAHAHAHAHA! – Sunny gargalhou enquanto Hieron abanava ela que parecia sufocar de tanto rir.

Aine olhou sem entender nada, enquanto Sven a pegava no colo.

- Eu não sou velho, lindinha. Eu sou experiente. – Sven disse.

- Aaaah... Não entindi, vovô. – Ela fez uma carinha fofa e confusa.

- Papai... – Maia chamou Hieron.

- Oi, amorzinho do papai. – Hieron pegou a filha, três anos mais nova do que Aine, no colo. – Gaa pegou meu desenho de papatinho.

- Maia! - Aine gritou do colo de Sven, dando pulinhos. – Vovô Sven não é velho?

Maia olhou, virou a cabecinha de lado, colocou uma mecha do cabelo laranja escuro atrás da orelha pensativa, arreganhou os braços e disse: - Velho assim, ó! Beeeeem gandão de velho!

Sunny não aguentou e chegou a ficar sem fôlego rindo.

- Grande Kallisti! – Sven quase gritou a ver a filha vindo correndo com a carinha toda riscada de vermelho.

- Gaaaa! – Maia gritou, se debateu até o pai soltá-la no chão, correu e abraçou a irmã, um ano mais velha. – Qué brinca comigo?

- Gaia, meu amor, o que é isso? – Sven chegou perto.

- Linda da tia, de quem você pegou esse batom. – Sunny limpou as lágrima de riso e se aproximou da garota que dava todos os indícios de que seria nível de sutileza à la Sunny.

Gaia mexeu na bainha do vestido, sem graça. – Tava na mesinha rosa da titia...

- Gaia! Não mexa nas coisas dos outros! Isso é feio! – Sven reclamou.

Maia e Aine ficaram imediatamente de cada lado de Gaia, protetoramente.

- Num bíga com a Gaa! Ela só quelia usa o batom da titia! – Maia fez uma cara de brava que era quase cômica.

- Calma, Sven. – Sunny agachou na frente de Gaia, tentando não rir do ridículo que estava a cara da menina. – Gaia, lindinha, não chora. Seu pai tem razão. Não é legal mexer nas coisas dos outros sem pedir antes.

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- Diculpa, tia. – Gaia começou a fungar, com os olhinhos cheios de lágrimas.

- Você promete não fazer mais isso? – Sven perguntou, mais controlado.

- Eu pométe, papai. – Gaia disse quase como um juramento.

- Então, vem com a tia. Vamos limpar seu rosto pra você brincar com suas amigas. E

prometo que vou te ensinar como usar batom e, quando você tiver idade, vou te dar seu primeiro batom. – Sunny pegou Gaia pela mão.

- Memelho? – Gaia perguntou.

- Vermelho. Promessa da tia.

- Vem, Maia. Vamo arrumar o milante no jardim pra gente brinca de chazinho chique.

– Aine puxou Maia pela mão.

- Oba, chazinho. – Hieron sorriu, dando um tapinha no ombro de Sven.

Aine e Maia pararam, cruzaram os braços e olharam bem sérias.

- Não, vovô! Você não pode toma chazinho! – Aine disse.

- É! Você é me-ni-no! Menino não entla no milante das me-ni-nas! – Maia se virou, jogando os cabelos curtos para trás.

- É, amigo. A gente não tem mais nem permissão para beber chá com os jovens.

Ninguém respeita mais os velhos. – Hieron brincou, já esperando a resposta.

- Só se for você. Eu não sou velho. Sou experiente. – Sven começou a rir, e logo tossiu porque ne.... Velho não pode rir que a tosse logo se manifesta.

~o ⭐ o~

- Aine, não esqueça de tomar bastante água. Ah e leve a escova de calcanhar. E não fique comendo besteiras. Ah e...

- Mãe! – Aine riu. – Eu vou para a casa da minha amiga do outro lado do pátio. Relaxa.

- Ane, amor, Aine não é mais uma criança faz tempo, querida. – Calíope se sentou devagar.

- Eu sei, mas...

- Pronta? – Scylla perguntou da porta.

- Sim, tia. – Aine deu um beijo no rosto da mãe e outro no da avó e saiu com Scylla. –

Como ela está?

- Triste, mas sua presença vai ajudar.

Aine parou na frente de Scylla que ergueu uma sobrancelha. – E a senhora? Como a senhora está?

- Querida, você é maravilhosa. – Scylla nem sabia porque ainda se surpreendia com essas atitudes. – Estou bem, minha linda. Amei Sven tanto quanto amei Hieron.

Infelizmente, na minha idade, a gente meio que se prepara para encarar o chamado de Kallisti para o outro mundo.

- Eu sei, mas...perder o vô Sven e o vô Hieron em tão curto tempo não deve ser fácil.

- Não é. Mas eu me preocupo mais com o coração das minhas filhotas agora.

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~o ⭐ o~

- Eu não entendo como ela pode ficar tão calma, Celi! – Maia comentou com sua serva que, pacientemente, escovava seus cabelos até brilharem. – Tio Sven era muito legal. Aí o avô dela morre e ela nem fica depressiva?

- Sim, senhorita. – Celi disse no automático.

- Quer dizer, Gaia está lá sofrendo daquele jeito. Meio exagerado, é verdade. Mas pelo menos é mais normal. Eu sinto a perda do tio Sven também, ele era como um segundo pai pra mim. A gente nem se recuperou da morte do meu pai direito.... Mas, sabe... Era pra ela ficar mal, acabada, e tal. Mas tinha que ser a perfeitinha de sempre.

- Sim, senhorita. – Celi disse, fez três tranças finas na lateral esquerda do cabelo, deixando o resto solto. – Está pronto, senhorita.

- Muito bom, Celi. Obrigada. – Maia levantou, verificou sua roupa para que não tivesse nada fora do lugar, pegou seu caderno de desenhos e saiu com Celi um pouco atrás. – Eu acho, Celi, que tudo aquilo é só aparência. Ninguém sorri tanto assim... Amiga! – Maia mudou logo sua fala ao ver Aine e Scylla entrar. O olhar de Scylla irritado, no entanto, deixou bem claro que ela tinha captado mais uma vez os pensamentos de Maia. Aine deu um abraço forte na amiga que logo teve seu olhar atraído para as garras de Aine, bem pintadas de azul. – Lindo esmalte.

Scylla apertou os dentes para não começar um sermão de novo.

- Obrigada. Como você está, amiga? – Aine perguntou.

- Sabe como é... Não posso ficar chorando pelos cantos. – O tom ácido disfarçado de Maia atraiu um olhar assassino de sua mãe.

- Celi, leve Aine para ver Gaia, por favor. Maia precisa de algum tempo sozinha. –

Scylla disse, desafiando a filha a contestar sua ordem.

- Sim, senhora. – Celi saiu com Aine depois que esta última deu um beijo no rosto da amiga.

- Mãe, eu...

- Agora não, Maia. Agora não. – Scylla saiu temendo descontar na filha a dor do luto.

Mais tarde ela lidaria com os sentimentos perigosos da moça.

~o ⭐ o~

- Lesath, você vai lá? – Lucius perguntou.

- Não. Infelizmente, tenho uma tropa nova para treinar. Lich disse que ia. – Lesath respondeu.

- Vou mandar um convite. – Lucius passou um documento para ele dar sua assinatura.

- Não sei se ela vem. Calíope está com um pé na morte também.

- Les! – Lucius ficou bravo.

- O que? É a verdade.

- Você é pior que a mãe. – Lucius reclamou.

- Que feio. Falando mal da mamãe pelas costas. – Sunny brincou.

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Os dois rapazes se levantaram em respeito à Rainha leonina. Lucius puxou a cadeira para a mãe sentar e Lesath serviu uma caneca enorme de suco morno, do jeito que ela gostava. Desde que os trigêmeos começaram com esse ritual matinal tão naturalmente, ainda na infância, ela não conseguia evitar de lembrar sua antiga vida na casa onde fora tratada como escrava e coisas piores. Quando ela comentou isso com Alart, tudo que ele pôde fazer foi abraça-la e encher sua esposa de carinho, tentando aliviar o trauma dela e a culpa que ele sempre sentiu pela primeira vez em que estiveram juntos.

- Eu só estava falando da falta de sutileza dele. – Lucius olhou feio para o irmão e estendeu um guardanapo de tecido no colo da mãe.

- Desta vez ele tem razão. – Lich disse, saindo de um canto mais escuro, perto de uma cortina.

- AAAAH! – Lesath, Lucius e Sunny gritaram de susto. Algo tão comum que os guardas e Alart nem se abalavam mais.

- Meu filho, ainda vou ter um troço com esses seus passos silenciosos. – Sunny esticou a mão.

Lich se aproximou sem emitir nenhum ruído, pegou a mão dela e deu um beijo. –

Desculpa, mãe.

- Tudo bem, meu bebê. Eu sei que é natural pra você.

- Já que você obviamente ouviu, - Lucius se sentou com cara feia – você vai?

- Sim. Darei seu recado. – Lich se sentou e pegou uma única fruta pequena.

- Eu queria muito ir... – Lesath reclamou.

- Você tem uma tropa para cuidar, filho. – Sunny disse, sem olhar para ele.

- Eu poderia ir. Afinal, um convite meu seria mais oficial e... – Lucius começou.

- Você tem que governar, querido. – Sunny disse enquanto mordia um doce.

- Meninos, amor. – Alart apareceu, beijou a esposa e se sentou ao lado dela como sempre. – Lich irá. – Ele decretou, nem precisando perguntar para saber do que eles falavam. Os tri, como os irmãos eram conhecidos, só falavam nisso desde a morte de Sven a alguns dias.

- Sim, pai. – Lich respondeu e se levantou para sair.

- Ei, mocinho. Pode sentar aí e comer direito. – Sunny não tinha olhado ele comer em nenhum momento, mas não precisava. Lich sempre comera tão pouco que ela passou a vida toda temendo que seu caçula morresse de anemia a qualquer segundo. Ilogicamente, Lich sempre fora muito forte, extremamente musculoso.

- Mãe, não est... – Lich começou.

- Você nunca está com fome. Senta aí e come direito! Quer matar sua mãe de preocupação? – Sunny fez o drama que aprendera desde cedo o poder que tinha sobre os irmãos.

Lich sentou, sentindo-se culpado e recebendo um olhar chateado dos irmãos por terem feito sua mãe se preocupar. Alart direcionou um olhar cúmplice para Sunny e sorriu.

- Pai, tenho uma reunião com o conselho amanhã, mas... – Lucius disse.

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- Não vou assumir para você ir treinar, filho. Você será coroado em poucas semanas.

Isso é sua responsabilidade agora. – Alart disse, sem brecha para discussões. – Ah, os três precisam passar pela avaliação dos magos, principalmente você, Lich.

- Mas de novo...? – Lesath, o menos paciente com magias, perguntou.

- Sim, de novo. Trigêmeos é muito incomum, filho. Os magos precisam acompanhar vocês para documentar o progresso de suas magias e se o nascimento triplo não interfere em nada nelas... – Sunny comentou.

- Eu sei, mãe. É só que... Isso é muito chato. – Lesath disse.

- É para um bem maior. – Lich disse, se forçando a comer.

- Eu acho relaxante. – Lucius comentou.

- Chato. – Lesath resmungou. – Prefiro ficar aqui com essa linda rainha maravilhosa. –

Ele piscou para a mãe, com seu melhor modo sedutor.

- Ei! – Alart disse. – Eu a vi primeiro!

Lesath jogou um pedaço de bolo no pai. – Escolha seu bolo e vamos duelar por essa bela dama!

- Você vai se arrepender de tentar pegar minha bela dama, garoto. – Alart pegou um pedaço de bolo e se preparou.

- Meninos... – Sunny riu.

- Mãe. – Lich se materializou agachado ao lado dela, uma névoa densa e negra se firmando na forma de um leonino alaranjado.

- Oi, meu bebê sorrateiro. – Sunny fez um carinho na cabeça do filho enquanto Alart e Lesath jogavam bolo um no outro como se estivessem em uma guerra e Lucius ficava colocando lenha na fogueira, torcendo ora para um, ora para o outro.

- Obrigado por ontem. Eu...não conseguia mais aguentar.

- Eu sei, amor. Mas saiba que você sempre pode falar comigo e com seu pai. É para isso que estamos aqui. Você não precisa e não deve carregar tudo sozinho aqui. – Ela apontou para o coração dele. - Acredite, eu sei como é se sentir sozinho e isso, meu filhote, é o pior dos venenos.

~o ⭐ o~

Os olhos de Gaia ainda estavam inchados e ela havia emagrecido bastante nos últimos dias. Sentada com a agulha no tecido, não prestando atenção em nada, sua mente aérea.

Sua mãe falava com sua irmã a alguma distância, brigando com ela como vinha acontecendo frequentemente. Mas Gaia não ouvia nada, focada demais em si mesma, tentando seguir os conselhos de Aine para sair daquele poço de tristeza no qual ela mergulhara.

- Você vai sim! E não quero ouvir mais, Maia! Você pediu ajuda. Bem, estou ajudando.

Uma temporada no templo, longe de tudo, vai te ajudar a aprender a se controlar, se dominar.

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- Mãe, o baile da duquesa é daqui a dias! Eu não posso deixar de estar perfeita! E se eu ficar trancada num templo, como vou tratar meus pelos, minhas garras, m...

- Maia! Você é vaidosa, não fútil. Muito menos burra. – Scylla massageou as têmporas.

– Você não vai nesse baile. Você vai focar exclusivamente em crescer aqui dentro. – Ela apontou para o coração da caçula. – Filha, eu te amo e não quero ver você afundar nesse sentimento mais do que já afundou. Você sabe a maldição que isso é.

- Eu sei, mãe... – Maia ficou irritada por Gaia não ir defende-la e pela irmã, mesmo tão abalada e magra, continuar sendo mais bonita do que ela. Mas aquele pensamento sobre a irmã que ela amava tanto, foi o impulso que precisava. Ela não queria continuar sentindo inveja de sua irmã e de sua amiga. Aquilo a sufocava. – Eu vou.

Scylla sentiu todos os pensamentos dela. – Graças à Kallisti. – Ela suspirou. – Faça todas as tarefas, todos os treinos que as sacerdotisas mandarem, filha.

- Mãe.... E se... Se eu não conseguir? Se não tiver mais jeito...

- Maia, sempre há um jeito para quem quer mudar, quem quer crescer. E eu sei que você pode vencer isso, filha. Você só precisa focar e deixar as sacerdotisas ajudarem. Eu fiz o que pude, querida, mas o fato de ser sua mãe às vezes pode atrapalhar porque eu sempre vou querer ver o melhor em você, nem sempre vou ter a frieza necessária para lidar com algo tão sério em minha filha. Mas eu tenho certeza que lá você vai superar isso.

Maia abraçou a mãe e sentiu a esperança de se livrar daquela inveja que a perseguia a tantos anos.

- Gaia.

- Ahn? – Gaia levantou os olhos e aceitou um bolo salgado do Tiger forte. – Obrigada, Amon, mas não estou com fome.

- Imagino. Mas é melhor comer. – Amon tirou gentilmente a costura das mãos dela e colocou arrumado sobre a mesa de centro. – Por favor?

Gaia mordeu o bolo e só então percebeu que realmente estava com fome. Em menos de dois minutos ela comeu tudo.

- Assim está melhor. – Os olhos dele brilharam de alegria.

- Querida, vamos? – Scylla chamou enquanto Maia caminhava para dentro. – Amon.

- Senhora. – Ele cumprimentou a sacerdotisa, meio sem graça.

- Obrigada pelo bolo. – Gaia disse e sua mãe olhou ocultando um sorriso. A horas ela tentava em vão fazer Gaia comer pelo menos um pouco. Scylla nem precisava ouvir os pensamentos do rapaz porque o olhar dele dizia tudo. Gaia deu um beijo na bochecha dele.

– Você é um grande amigo, quase um irmão.

Scylla olhou chocada para a filha e depois com pena para o rapaz que parecia ter seu mundo destruído. Não é possível! Quantos anos mais vai demorar pra essa tonta perceber o olhar bobo desse menino? Poderosa Kallisti, eu criei uma cega?! Scylla resmungou mentalmente.

Amon ficou lá, parado, sufocado pelas palavras de Gaia que pareceram punhais em seu peito. No dia seguinte, Maia viajou para um templo dedicado aos anéis Anuin e às luas

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de Likastía, no topo de uma colina, cercada por uma densa floresta. Uma viagem que levaria alguns dias já que Scylla não a enviou por um portal, pois a viagem pelas estradas pedregosas era parte do “tratamento” que Maia passaria. No mesmo dia, Lich chegou no palácio Tiger com uma mensagem para Gaia e outra para Aine.

No mar, perto de um deck antigo e abandonado, uma figura encurvada e mancando saiu de uma cabana velha, caindo aos pedaços e entrou na floresta carregando uma caixa de madeira escura, sumindo de vista.

~o ⭐ o~

O projeto que eu criei era perfeito em suas imperfeições. Não perfeito porque não tinha defeitos. Mas perfeito porque cada um, com suas virtudes e defeitos, era único, apenas ele era ele. Cada um com seus erros, seus acertos, suas ambições, seus sonhos...

Sempre amei quem conhece suas características e se orgulha delas assim como eu me orgulho de todos eles. Ah quem dera meu ajudante pensasse assim também...

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Capítulo 02

Houve um momento em que o projeto de uma raça inteligente ficou pronto. Não era a primeira que eu criava... Longe disso. Mas confesso que eu tinha um carinho especial por essa espécie nova. Faltava a chama de vida. Apenas isso. Mas essa não era a única fonte de vida possível. Era a única sensata, mas não a única. ..

~o ⭐ o~

Aine e Gaia chegaram no reino leonino com Lich por um portal relativamente novo, instalado onde antes ficava uma área com uma banheira de águamassagem, destruída por Alart com uma marreta anos antes. A área de águamassagem agora ficava em um setor completamente do lado oposto do palácio, enquanto ali agora ficava um portal usado exclusivamente pelos trigêmeos quando queriam sair sem atrair atenção de qualquer outra pessoa no palácio.

- Acho essa parte do palácio tão linda. – Gaia suspirou. – Não sei porque o Rei e a Rainha nunca vêm aqui.

- Também não sei. Todo mundo muda de assunto quando a gente pergunta. – Aine respondeu, com um braço entrelaçado no da amiga.

Lich era o único da nova geração que conhecia o motivo de ninguém dentre seus pais e os amigos deles gostarem dali. Era por um motivo parecido que sua mãe nunca ia na propriedade dela no litoral Tiger e passou o ducado dali para Lich, o único que tinha algum interesse no local e governava ele com firmeza e impiedade aos nobres corruptos.

- Divirtam-se. – Lich disse, cumprimentou as duas elegantemente na porta da sala e saiu sem olhar para trás.

- Nunca vou entender ele. – Gaia sentia um pouco de medo de Lich, sempre tão calado, surgindo do nada como um fantasma, com aquele olhar que parecia ver a alma das pessoas.

- Lich é legal, só mais quieto. – Aine respondeu e se virou para cumprimenta Sunny.

- Tia. – Gaia abriu um sorriso ainda meio triste.

- Oi meus amores.. – Sunny deu um abraço nas duas e focou seu olhar em Gaia. –

Querida... Sinto muito. Sei que já disse isso no velório, mas...

- Obrigada, tia. – Gaia respondeu, os olhos nublando com lágrimas teimosas.

Sunny puxou a menina para o sofá e a abraçou. – Tudo bem, linda da tia, deixa sair.

Aine ficou mais distante, dando privacidade para as duas, aliviada por que Sunny tinha uma ligação forte com sua amiga e era sua esperança para dar alguma paz à menina.

Sorrateiramente, Aine saiu por outra porta e seguiu o caminho do qual se lembrava.

Guardas espalhados pelo caminho cumprimentavam respeitosamente a princesa Tiger com um aceno de cabeça, para alguns Aine perguntava algo sobre sua família, pessoas que ela tinha ajudado em algum momento, sempre atenciosa com todos.

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Essa era uma das coisas que mais incitavam a inveja de Maia. Aine sempre fora atenciosa com todos, sempre pronta para ajudar, sempre gentil e sorridente, respeitada e amada em ambos os reinos.

- Capitão Justino. – Aine cumprimentou o guarda na porta de saída para a ala dos escritórios. – Como vai sua tia? Ela conseguiu terminar aquele casaco de linho?

- Alteza. – O Capitão fez um sinal de respeito com o punho sobre o coração. – Sim. Ela agradeceu pelo conjunto de agulhas e o manequim que a senhorita enviou. Está cada vez melhor nisso.

- Fico feliz por ela. – Aine deu aquele sorriso encantador, típico dela. – Ele pode falar comigo agora? Se estiver ocupado, tudo bem. Eu volto depois.

- Sua alteza real está terminando uma reunião no mirante 3, mas vou verificar. – O

Capitão soprou em um chifre de sapo de 4 centímetros pendurado em seu pescoço, enviando uma mensagem codificada para um de seus oficiais. Menos de 20 segundos depois, o objeto emitiu um som baixo e uma vibração sutil. O Capitão encostou o dedo indicador direito no objeto, sentindo a resposta que vibrou em sua mente como uma frase perfeitamente pronunciada. – Pode ir, alteza. O Oficial aqui a acompanhará.

Um leonino mais jovem e muito alto, mais do que os padrões de seu povo, se aproximou e aguardou.

- Oficial... – Aine disse em um cumprimento. – Qual é o seu nome?

O Oficial olhou meio confuso, pois não era costume nenhum nobre se dar ao trabalho de saber o nome dos guardas. Apenas alguns príncipes leoninos, como Alart e seus filhos faziam isso. O rapaz então se lembrou das histórias sobre Aine e relaxou.

- É Lester, alteza. – Ele respondeu.

- Bem, é um prazer, Lester. – Ela deu alguns passos e o Oficial a guiou até o mirante por mero respeito, não por necessidade, já que Aine conhecia bem o local. Quando ela se aproximou, viu alguns nobres e magos saindo com pilhas e mais pilhas de documentos nos braços, alguns com seus servos do lado carregando documentos também, todos saindo por outro caminho.

- Que surpresa magnífica. – Lucius sorriu educamente, embora seu olhar fosse muito mais alegres.

- Obrigada, Oficial Lester. – Aine disse, arquivando o nome do rapaz na sua lista mental interminável de nomes e rostos que nunca esquecia. – Oi, tri bravo.

- Oi, menina louca. – Lucius a abraçou e guiou para a cadeira. – Chá, suco ou algo mais forte?

- Suco. – Aine esticou os braços sobre a cabeça e bocejou.

- Aqui. – Ele entregou o copo para ela, puxou uma das cadeiras para seu lado e se sentou. – Sinto muito, princesinha. Eu e os caras ficamos presos aqui com toda aquela confusão do desabamento.

- Não se preocupe, Luc. – Aine tomou um grande gole de suco e colocou o copo na mesa. – Seus pais representaram bem vocês lá. Além do mais, as vítimas do desabamento

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eram prioridade. Afinal, elas estão vivas e ainda dá pra ajudar de alguma forma. Meu avô não. Adoro vocês, mas, até onde eu sei, nenhum dos tri poderia trazer aquele velho bonitão de volta dos braços consoladores de Kallisti.

Lucius sempre fora o mais sensato e mais impaciente dos irmãos e admirava muito a praticidade e capacidade de sua amiga em colocar o bem-estar do Reino acima de qualquer coisa. Mas Aine tinha um truque que os tri conheciam bem. Quando ela não queria responder, ela não mentia, mas manipulava a verdade ou desviava a atenção dos outros para evitar responder.

- Você não me respondeu. – Lucius puxou as mãos dela, a forçando a olhar para ele e se arrependeu imediatamente. Naqueles olhos sempre luminosos, como se sorrissem o tempo todo, tinha uma expressão sutil, quase imperceptível de dor. – Como. Você. Está?

Aine nunca abaixava a cabeça. Sua mãe dizia que ela era mais orgulhosa do que todos os reis e rainhas Tigers da história juntos. Mas ela sentiu vontade de fazer isso agora.

Qualquer coisa para desviar o olhar. – Eu estou aqui, não é? – Ela sorriu seu sorriso brilhante.

- O que não responde o que perguntei.

- LOUCAAAA! – Lesath gritou praticamente já no mirante, subindo os três degraus de uma única vez. Ele puxou uma das cadeiras, colocou colada na de Aine e sentou, puxando a amiga em um abraço. – Vamos sair e tomar todas para afogar a dor e lembrar do velhote como velho-novo-experiente que ele era.

Lucius deu um olhar rígido para o irmão, mas logo se acalmou ao perceber que a ideia era realmente boa. Aine aproveitou seu rosto quase sufocando na camisa do amigo para deixar uma lágrima sorrateira secar nela.

- Eu até topo, mas Gaia está muito pra baixo e não sei se ela vai querer ir. – Aine se afastou e deu um beijo no rosto de Lesath.

- Duvido que minha mãe deixe a garota sozinha, caso ela não queira ir. – Lesath comentou.

- Ah, muito bonito. – Lucius cruzou os braços e fechou a cara. – Esse nojento suado ganha um abraço E um beijo, mas eu, todo bonito, perfumado, penteado, lindo de morrer, só ganho um abraço.

- O bravinho tá com ciúúúme. – Lesath mostrou a língua, algo que ele aprendeu com Sven desde pequeno. – Não tenho culpa de ser o mais gostoso, tri velho.

- Você é só um mala sem alça. – Lucius começou brincando, mas daí para ficar realmente bravo era um sopro.

Aine deu um beijo estalado no rosto de Lucius para evitar a discussão entre os irmãos que, ela desconfiava, brigavam por esporte.

- Você sabe que vai ter que dar um beijo e um abraço no Lich também, não é? – Lucius sorriu. – Direitos iguais.

- Eu fiz isso mais cedo, ontem, hoje, .... – Aine deu um sorriso arteiro.

- PILANTRA! – Les gargalhou.

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- MAS QUE FILHO DE UMA... – Lucius começou.

- Ei! A mãe dele é a nossa também, gênio! – Les deu um beliscão no braço do irmão, ativando o Lucius-Bravo que deu um tapa na mão dele. Aine deu alguns passos para o sofá mais distante, sentou com as pernas cruzadas e seu copo de suco em uma mão, já prevendo o que viria.

Les revidou com um tapa no ombro dele, Lucius deu outro na barriga dele e logo virou uma trocação de socos e chutes entre os dois. Com Lesath provocando o irmão com seu deboche e Lucius revidando rosnando, irritado.

- Chega. – A voz de Lich soou calma e estável antes que ele se materializasse na sombra de uma árvore no chão.

- AH! CACETE! – Les e Lucius gritaram ao mesmo tempo de susto e pararam lado a lado. Só Aine não se abalou.

- Um dia meu coração vai parar com esses sustos. – Lucius ofegou.

- Sem brigas. – Lich disse sem piscar, algo que dava arrepios em muita gente.

- Mas o Luc me provocou! – Les disse.

- Eu? Você, seu cara de madeira, veio me provocar! – Lucius gritou, seus olhos vermelhos de raiva.

- Eu não! Você que tudo fica bravinho. – Les disse.

- Mandei. Parar. – Lich disse e sua voz emanava uma autoridade tão forte que raramente alguém o contestava.

Os irmãos ficaram quietos, trocando olhares irritados, mas logo esquecendo suas desavenças, como sempre acontecia.

- A gente vai levar a Aine para beber todas. – Les disse.

- E Gaia? – Lich perguntou.

- Ela não vai mesmo... Melhor nem tentar. – Luc disse.

- Chamem ela. – Lich decretou com seu senso inabalável de justiça.

- Mas...

- Sem “mas”, Luc. Ela é uma visita em nosso reino, o reino que você vai governar em breve. É assim que você quer governar? Escolhendo a qual convidade estender sua hospitalidade?

Lucius fez cara feia, se sentindo um bobo. – Ta, ta. Eu chamo.

- Se quiserem, eu chamo. – Aine disse.

- Não, louquinha. – Les disse. – Luc é o futuro Rei, é meio que responsabilidade dele fazer os nossos convidados se sentirem em casa.

~o ⭐ o~

Maia entrou no templo dos Anéis e das Luas que ficava no meio da estrada, um dos cinco no longo caminho até o templo que ela deveria ir. Apenas uma Sentinela e uma sacerdotisa novata acompanhavam a moça, afinal não havia guerra a gerações e Maia precisaria apenas de ajuda para evitar qualquer animal selvagem e se virar na estrada. O

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templo era pequeno, austero, sem ornamentos coloridos, sem objetos caros, móveis confortáveis e simples. Este tinha apenas quatro quartos: um para a sacerdotisa chefe, dois para as quatro sacerdotisas e um para visitantes. Além disso existia um jardim com um labirinto circular (algo comum em todos os templos de Likastía), duas fontes com imagens de Kallisti e dos três personagens do mito dos Anéis e das Luas, um pequeno riacho, um refeitório com uma cozinha adjacente, duas áreas de banhos termais internos, uma área para lavar e estender roupas, um enorme oratório interno para dias de chuva e uma sala de visitas com os melhores móveis do templo. Em suma, era o mesmo design em todos os templos dos Aneis e das Luas, apenas o que Maia ficaria era maior por ser o centro desse culto. O caminho era uma preparação psicológia para o viajante enfrentar seus demônios interiores sem distrações, sem o luxo e conforto, dando uma espécie de choque inicial, obrigando o viajante a focar em si mesmo e não dar tanta importância à coisas superficiais.

Sendo filha da Grã-Sacerdotisa de Kallisti, uma mulher focada, prática e acostumada a sobreviver em diversos tipos de locais, Maia não dava tanta importância ao luxo. Ela gostava dele, era vaidosa, mas não era extremamente importante. No início ela estranhou a diferença na cama, na temperatura mais fria, a umidade, mas sabia que logo se acostumaria. Scylla sempre ensinou ela e sua irmã que saber se adaptar a tudo era essencial na vida. O que a incomodava mais era o silêncio do lado de fora de seu corpo porque isso fazia sua mente gritar as coisas que ela não queria ouvir, que tentava se livrar, ignorar até.

A princesinha deve estar em uma festa atraindo toda a atenção de todos... Eu preciso parar com isso. Não é da minha conta o que Aine está fazendo. Ela tentou bloquear esses pensamentos, mas, sem ruídos, sem conversas e risos no corredor, sem nada para distraí-la, não demorou para sua inveja voltar a dominar seus pensamentos. Aposto que a perfeitinha não tem que viajar para perder algum defeito bobo. Claro que não. A bonitinha, a que todo mundo ama, a que estala os dedos e os caras se jogam nos pés, não tem defeitos. Eu sou muito mais bonita. Mas ela é a futura rainha. Só por isso ela atrai mais a atenção do que eu.

Sem perceber, Maia dormiu um sono pesado, esgotada pelo longo dia de viagem.

Ela tem inveja de você. Foi ela quem disse pra sua mãe te mandar para longe porque ela não suporta ser a segunda em tudo. Ela sabe que você é mais bonita, mais forte, mais inteligente, mais adorada... Ela tem inveja.

Maia acordou sobressaltada, como corpo pesado, dormente, tamanha foi a profundidade de seu sono. Seu ouvido zumbia um pouco, mas logo ela se recuperou, sentou na cama de pedra com um colchão fino de folhas e palhas, pegou um copo com água no chão e virou todo de uma vez na garganta. Pela manhã, ela e suas duas companheiras de viagem comeram no refeitório deserto e saíram. A sacerdotisa que acompanhava Maia comentou que as sacerdotisas do templo não se aproximariam dos visitantes naquele dia porque estavam em preparação para um ritual naquela noite e não podiam falar com ninguém.

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Maia se lembrou de alguns ritos desse culto que exigiam esse tipo de purificação de contato externo e saiu, agradecendo mentalmente pela acolhida das mulheres do templo.

Elas viajaram o dia todo, parando rapidamente para comer e de noite montando um acampamento. Maia se deitou abraçada com a sacerdotisa para manter o calor de seus corpos, enquanto a Sentinela montava guarda por metade da noite, trocando de lugar mais tarde com a sacerdotisa. Não acostumada com aquelas horas de viagem cansativa, Maia dormiu quase imediatente.

Eu podia ser uma princesa também.

Sim, você deveria ser. É tão melhor do que ela.

Eu...não sei. Talvez, eu não seja melhor....

Bobagem. Você é melhor do que a princesinha e até do que aquela sua irmã que nunca te dá nada.

Gaia...é minha amiga. Mas... Ela pensa que é mais bonita do que eu...

Sim, ela tem certeza. Você acha mesmo que ela e Aine não riem de você pelas costas?

Elas riem?

Claro que sim. Elas sabem que você é melhor em tudo, mas zombam de você por inveja.

Elas nunca serão melhores do que eu.

Nunca.

Maia acordou no raiar do sol por trás dos Anéis Anuin, com o corpo pesado, toda dolorida. Então parte das coisas que ela sonhou vieram como fragmentos desconexos em sua mente. A Sentinela lhe entregou uma caneca de sopa de carne simples, perguntou como ela estava, se queria alguma ajuda, deixando Maia confortada e irritada ao mesmo tempo. Aquilo a alertou e ela procurou a sacerdotisa.

- Cassiopeia?

- Maia. Dormiu bem? – Cassiopeia sorriu.

- Não tenho certeza. Podemos...conversar?

- Claro, sente-se e me conte o que a incomoda.

- Bem...não sei se minha mãe contou...

- Sim. Eu sei porque você vai para a purificação. – Cassi disse. – Não me olhe assim, Maia. Eu preciso saber para te apoiar na viagem. É para isso que uma sacerdotisa sempre acompanha o viajante em seu caminho. Sou uma amiga com conhecimentos úteis e gostaria que me visse assim.

Maia se sentiu humilhada por sua mãe ter contado, mesmo que fosse algo necessário, mas a sacerdotisa realmente não agira esse tempo todo como uma babá ou uma chata controladora que estava cuidando de uma invejosa nojenta. Não. Ela a tratara como uma amiga e, diferente de Gaia e Aine que não conheciam seu problema, Cassi conhecia e poderia ajudar, ela podia desabafar. E foi o que ela fez. Maia contou tudo que a incomodava, contou sobre os anos lutando contra isso e se sentindo como se batesse o tempo todo contra uma parede intransponível, nunca vencendo o problema. Contou sobre

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os incômodos no caminho e o sonho desconexo. Em momento nenhum Cassi interrompeu ou avisou que elas precisavam se levantar e seguir viagem. Cassi deixou Maia desabafar por mais de uma hora, pacientemente, mantendo a Sentinela à distância com um olhar que a outra mulher entendeu e respeitou.

- Eu entendo sua preocupação e você está certa em se preocupar. – Cassi entregou um pouco d’água para a moça. – Mas isso é normal. Você é uma viajante e os primeiros passos do caminho são sempre intensos como se você lutasse com você mesma. E, de certa forma, é isso mesmo.

- Então eu vou continuar tendo esses incômodos?

- É possível. Não dá para saber como sua mente vai reagir. Mas me procure sempre.

Desabafar é um ótimo remédio.

Maia então percebeu que ela realmente se sentia muito mais leve, leve como não se sentia a anos... Ela nem lembrava da última vez que se sentira tão ela mesma. – Sim.

Prometo que te procuro. Obrigada, Cassiopeia.

- Cassi. Apenas Cassi. – Cassiopeia-Apenas-Cassi respondeu com um sorriso. Quando Maia saiu para pegar sua mochila e seguir viagem, Cassi se levantou, pegou seus poucos pertences e entregou a água e uma sacola de couro com frutas para a Sentinela. A Sentinela foi até um riacho próximo, lavou a nuca e o rosto, cavou um buraco de dois palmos no chão, colocou a água dentro, enterrou e encheu a garrafa de novo no riacho com água fresca. O trio seguiu viagem em um ritmo mais rápido para conseguir alcançar o próximo templo e evitar dormir na floresta de novo.

~o ⭐ o~

Existem dois tipos de fontes de vida. A fonte de fogo e a fonte ácida. A primeira é estável, dura muito, não destrói o hospedeiro. A segunda pode não destruir, mas pode destruir; é instável, não é confiável e exige muito da alma do hospedeiro que jamais está satisfeito. Eu amo minhas criações, nunca arriscaria suas almas. E não arrisquei.

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Capítulo 03

Meu assistente tinha uma visão levemente diferente do que seria uma raça sapiente ideal. Como quem manda aqui sou eu, a palavra final era minha. Nós conversamos e expliquei as razões para minha decisão e concordamos.

Ou foi o que pensei. Não. Foi o que escolhi pensar. E esse foi meu erro: eu escolhi acreditar.

~o ⭐ o~

Cassi abriu a garrafa de couro onde guardavam a água e entregou para Maia. – Não beba muito, Sarin já está trazendo a comida.

- Umhum. – Maia engoliu a água e devolveu a garrafa para Cassi, seu estômago rocando alto ao ver as tigelas fumegantes e o aroma de soma de carne e pão de peixe-arroz na bandeja.

- Obrigada, Sarin. – Cassi disse, enquanto Maia ajudava a Sentinela a colocar tudo na mesa.

- Sarin, o cheiro disso está formidável. Mas...você errou a quantidade. – Maia observou. – Só tem duas tigelas e dois pães.

- Eu não vou comer. – Cassi disse. – Apenas chá esta noite. Aquele bife seco na estrada não caiu muito bem.

- É melhor você se deitar e descansar então. – Maia disse. – Vou deixar um pão para você.

- Prefiro ficar. O templo está deserto demais com o retiro das sacerdotisas. Não vou deixar vocês sozinhas nesse silêncio. – Cassi sorriu.

Pelo menos alguém sabe te respeitar como uma princesa. Não é como sua mãe que nunca ligou para você.

Maia parou a colher a meio caminho da boca, tentando desviar o pensamento intruso.

Seu olhar automaticamente caiu sobre Cassi que continuava sorrindo e falando sobre coisas bobas, aparentemente não percebendo nada. Ótimo. Pelo menos ela não é telepata. Já basta minha mãe. Maia e Sarin comeram e as três se dirigiram ao quarto de visitantes. Cassi dissera que a Sacerdotisa chefe lhes forneceram mais alimentos para viagem e pediu silêncio por causa do jejum e retiro das sacerdotisas. Maia não vira ninguém naquele templo, o que dava uma sensação meio de abandono. Toda Likastía conhecia os rigores daquela parte da crença likastiana, mas Maia nunca tinha visitado ou estudado a fundo seus costumes, afinal ela não tinha nenhuma gota de magia. Tudo que ela podia fazer era seguir as regras e respeitar o desejo daquelas que estavam lhes dando abrigo e se acostumar, afinal ela viveria com esse mesmo clã no templo para se purificar.

No meio da noite, Maia acordou com frio. Muito frio. Seus olhos demoraram para entender onde ela estava. Parecendo quase uma cópia do templo anterior, ela estava

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próxima do labirinto, de pé no jardim, confusa, descalça, vestindo apenas sua camisola longa e marrom.

~o ⭐ o~

- Como foi a festa? – Ane perguntou.

- Legal. – Aine bocejou. – Les fez a cadeira do Luc cair quando ele sentou. Luc correu atrás dele por dois quarteirões com uma perna da cadeira, gritando furioso e Les rindo feito idiota enquanto fugia.

- Que perigo! – Ane respondou, sutilmente analisando cada centímetro do rosto da filha pela tela mágica de contato.

- Eles se entendem, amor. – Calíope sorriu, fazendo a mesma coisa que a esposa fazia.

- Sim. Luc desafiou ele numa queda de braço. Sabe como eles são. – Aine riu.

- E quem venceu? – Calíope perguntou.

- Eles discutiram sobre isso também. Les meio que trapaceou. Aí já sabe ne.

- Sim. Lich colocou um fim nessa bagunça. – Ane respondeu.

- Exatamente. – Aine confirmou.

- Esse rapaz sim tem juízo. – Ane disse. – Quando você volta?

- Mãe, eu estou aqui a dois dias só. Calma.

- Eu sei... Mas... Ah, Epaine! Eu não posso sentir saudades da minha filha maluca, não?!

- Oooown, mamãe linda do meu coração. Também te amo. Mas eu quero ficar mais um pouco, se não tiver problemas. – Aine sentou mais ereta, com maior atenção. – Preciso fazer algo no reino?

- Não, amor, fique calma. – Calíope deu uma cutucada no braço de Ane. – Sua mãe só está sendo protetora como sempre. Vá se divertir um pouco porque, acredite em mim, quando você for rainha isso vai ser bem raro.

- Se precisar, vó, eu volto.

- Relaxe, querida. – Ane disse.

- Vá comer algo. – Calíope disse e Aine sorriu de um jeito bastante sapeca. – Eu disse

“algo”, não “alguém”.

- Cali! – Ane não conseguiu evitar um sorriso.

- O que? Sua filha é pior que Scylla, amor. Aposto que já arrumou mais paqueras do que os tri.

- Os tri não são meus paqueras, vó. São meus amigos.

- Sei bem que tipo de amigos são esses. – Ane disse.

- Amigos com carinhos amigáveis ue. – Aine sorriu e se despediu do casal real. - Você pensou bem nisso?

- Sim. – Gaia respondeu do outro lado do quarto. – Só preciso de coragem pra falar com a mamãe. Ela vai ficar meio triste, mas...

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- Ela supera. Além do mais, tia Scylla pode vir aqui quando bem entender e voltar em minutos ne. – Aine abraçou e deu um beijo na testa da amiga.

~o ⭐ o~

Scylla se sentou na frente de Alart e apoiou a bengala do lado de sua perna. – Foi realmente um acidente.

- Fico mais tranquilo. Depois daqueles dois escondidos por tantos anos entre nós, armando sem que ninguém percebesse, e o desaparecimento de Ciara, confesso que esses desabamentos me deixaram desconfiado. – Alart se acalmou.

- Eu entendo. Nós dois procuramos por anos algum sinal dela, mas não houve nenhum.

Acho difícil alguém que nem andava direito ter sobrevivido aquela queda.

- Eu também acho, mas todo cuidado é pouco.

- Sim.

- Gaia falou com você? – Alart perguntou.

- Sim. – Scylla se sentiu meio triste. – Por mim, não tem problema. Ela é adulta e sempre foi bastante sensata. Se minha filha acredita que isso é o melhor para ela, eu apoio.

- E você? Como vai ficar lá, sozinha?

- Eu me viro. Não é fácil ficar sozinha depois de tantos anos sempre tendo alguém por perto, mas não é exatamente uma novidade para mim. Além do mais, eu venho vê-la sempre e vou focar mais na preparação da minha principal aprendiz. A garota é boa no que faz e detecta Harpias com uma facilidade invejável.

Alart se arrepiou como todo mundo se arrepiava. – Me sinto aliviado. Quanto mais sacerdotisas de Kallisti para dar fim nesses demônios, melhor.

- Não há muitas nos últimos 300 anos. Sinal de que as Grã-Sacerdotisas de Kallisti tem feito muito bem o seu trabalho. A última vez que matei uma dessas foi a uns quatro anos.

- Boa tarde, Scylla. – Sunny entrou com uma travessa de petiscos de frutos do mar, colocou na mesa de centro e abraçou a outra mulher. – Gaia e Aine saíram a algumas horas.

Que tal esperar com uma comidinha gostosa e muita fofoca?

- Haha! Totalmente de acordo. – Scylla riu e se sentiu menos triste com a solidão.

O trio conversou por algum tempo, rindo de momentos do passado, até ouvir duas vozes grossas soando nas proximidades.

- Não, mas se você fizer magia de cura não vai adiantar na natação. Eu sou o melhor nadador e você não tem como superar... – Lucius disse, orgulhoso e tempestuoso como sempre.

- Mas você não pode curar uma cãimbra se acontecer enquanto nada porque você não é mago de cura como eu. É só um pouco telepata. – Lesath se gabou, como era habitual.

E como era habitual também, Lich vinha no meio dos irmãos, calado, altivo, imponente e atento a tudo.

- Mas isso não tem nada a ver, porque eu posso evitar cãimbra com exercícios. – Luc disse.

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- Mas ainda sim você pode ter cãimbra. – Les respondeu.

- Posso não. – Luc disse, do lado direito de Lich.

- Pode sim. – Les respondeu do lado esquerdo de Lich.

- Posso não.

- Pode sim.

- POSSO NÃO!

- Pode sim!

- POSSO NÃO!

- Pode sim!

Os dois começaram a discutir, prontos para trocar socos, apenas ainda controlados porque Lich estava no meio. Sunny, Alart e Scylla se entreolharam quase rindo, já esperando o desfecho habitual.

- POSSO NÃO, IDIOTA!

- PODE SIM, LERDO!

- QUEM É LERDO AQUI?

- QUEM É IDIOTA AQUI?

- Chega. – Lich disse em tom baixo e firme com sua voz rouca. Imediatamente os irmãos se calaram. Luc olhou para Les irritado, enquanto o irmão respondeu mostrando a língua.

O coração de Scylla apertou ao ver o gesto birrento tão comum de Sven.

- Tia Scylla. – Lich cumprimentou, se aproximou e abaixou a cabeça para a sacerdotisa o abençoar. Os dois irmãos seguiram o gesto. – Quer falar com Gaia?

- Ela já chegou? – Scylla perguntou, terminando o gesto de bênção na cabeça de Les.

- Acabou de chegar com a Aine. Acho que estão no quarto se trocando. – Luc disse.

- Não vai levar a Aine de volta ainda, não é? – Les perguntou, correu para a poltrona e sentou no colo da mãe, com as pernas de lado.

- AI, MENINO! – Sunny gritou. – Você tem que parar com isso! Um monstro musculoso desse tamanho!

- ÔÔÔ, mamãe! – Les deu muitos beijos em seu rosto e se balançou. – O principezinho tá calenti!

- Hahaha....Pára, menino....hahahaha. Alart! Socorro!

- Les, falta beijar aquela parte do pescoço ali da sua mãe, ó. – Alart disse com toda calma do mundo.

- Ih, é mesmo. – Les respondeu. – Luc!

Lucius correu e sentou no braço da poltrona, pronto para beijar a mãe quase caindo em cima dela. – ATAQUE À MAMÃE!

Os dois atacaram a mãe com beijos e cócegas, fazendo Sunny rir muito enquanto tentava se livrar dos dois filhos que pareciam armários. Alart sorriu com a paz que ver sua família lhe dava. De repente, sem que ela percebesse, Scylla sentiu mãos firmes em seus ombros massageando com carinho e firmeza, silenciosamente transmitindo todo amor que

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ela sabia que seus amigos e os filhos deles sentiam por ela. Ela deu um tapinha grato na mão de Lich e ele abraçou seus ombros por trás, meio torto por causa do encosto da poltrona dela.

- Vou chamar sua filha. – Lich sussurrou, deu um beijo em sua bochecha, cumprimentou seu pai daquele jeito silencioso e respeitoso dele, se aproximou da mãe que era impiedosamente atacada pelos irmãos. Ele sentou no braço do outro lado da poltrona, beijou sua mãe uma única vez na testa, levantou e saiu.

Ele caminho a passos firmes e calmos até o quarto onde as meninas estavam e parou na porta, ouvindo os risinhos bem familiares. Depois de respirar fundo duas vezes, ele bateu na porta e esperou.

- Entre! – Aine gritou com a voz ainda soando bem humorada, com um riso contido.

Ele abriu a porta e entrou. Gaia estava enxugando as lágrimas de riso, ainda jogada no chão e descabelada. Aine não estava muito diferente. Ambas pareciam mais bonitas, mesmo bagunçadas, apenas pelo bom humor.

- Gaia, sua mãe a aguarda no salão de chá. – Lich disse.

A Tiger mais nova deu um pulo, arrumou com os dedos os cabelos na altura dos ombros e, sem esforço nenhum, saiu linda à procura de sua mãe, se despedindo rapidamente dos dois.

- Parece até magia! Essa garota consegue ser linda em qualquer situação. Só perde pra irmã dela. – Aine comentou com um risinho.

- Uhm. – Lich respondeu.

Aine o abraçou pela cintura, seu corpo de frente colado na lateral dele. – Você não vai me contar o que está te incomodando?

- Nada.

- Você está muito quieto, calado.

- Aine, eu sou quieto e calado.

- Você entendeu o que eu quis dizer. Lich, você sabe que pode contar comigo. Pode desabafar...

- Do mesmo jeito que você? – Lich olhou nos olhos dela e Aine sentiu um nó na garganta. – Você também pode desabafar com a gente, mas prefere fingir que nada está te incomodando como se fosse desaparecer magicamente.

- Parece que nisso somos iguais então. – Aine se afastou, incapaz de olhar nos olhos dele. Um Tiger nunca chora. Um Tiger nunca chora. Um Tiger nunca chora. Ela repetiu se obrigando a não ceder às lágrimas.

- Aine... – Lich quase podia sentir a dor da amiga.

- Eu... – Aine não se virou para olhar para ele. Ela nunca conseguia mentir olhando em seus olhos e desconfiava que ninguém conseguia.

- Aine. – Lich fechou a porta e a abraçou por trás. – Me conta. Fala comigo.

- Eu sei...sei que você é um mago dos mortos e não...não pode....quebrar a natureza...mas....queria tanto falar de novo com o vovô....ou...ou...

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- Ou....?

- ....Meu pai.... – Aine soltou o que nunca tivera coragem de admitir. Sempre se sentia mal por sentir tanta falta do pai que nunca conhecera, afinal sua mãe e sua avó sempre foram muito presentes e ela não queria ser ingrata. Mas a verdade é que ela sempre sentira uma falta dolorosa dele, sempre pensava em como seria se ela tivesse vivido com ele pelo menos alguns anos, se tivesse qualquer memória com ele. A morte de Hieron e a de Sven pouco depois só fizeram essa dor aumentar como um furacão em seu peito. Assim que as palavras saíram de sua boca, sua garganta pareceu se fechar, seu corpo tremia, lágrimas escorriam de seus olhos e ela as escondia na camisa de Lich, mesmo sabendo que não adiantaria. Ele sabia que ela estava chorando, que ela não era a força que ele achava que ela era. Isso só fez com que ela perdesse o pouco controle e chorasse mais ainda. Os dois acabaram descendo lentamente até sentar no tapete, abraçados. Se Aine tivesse levantado a cabeça veria a dor nos olhos molhados dele.

Lich a segurou, deixando a moça desabafar. Quando ela se acalmou, ele secou os olhos com a manga da camisa e percebeu que ela dormia. Gentilmente, ele a pegou no colo, colocou na cama e a cobriu. Para deixar Aine dormir sossegada, Lich fechou as cortinas, colocou um aviso do lado de fora da porta para que ela não fosse incomodada, fechou a porta devagar e deu alguns passos planejando ir até a cozinha.

Seu corpo tremia, sua mente rodopiava, louco para seguir seu antigo e perturbado impulso. Mas ele se controlou como seu pai ensinara. Pelo menos por meio minuto. Lich se transformou em uma névoa densa negra que flutuou até uma sombra, observando silenciosamente ali, parada no escuro como fazia a tanto tempo.

É quase como uma voz ecoando na minha mente. .. Alart se lembrou com um mal-estar quando, naquela noite, deitado ao lado de Sunny, percebeu que não via seu filho a horas.

~o ⭐ o~

- Bom dia, Maia. – Sarin cumprimentou alegremente, já terminando de comer.

- Bom dia. – Maia disse com uma expressão nada boa, pegando a garrafa de água na mesa e tomando ela quase toda. – Quando saímos?

- Logo. Cassi está se despedindo da sacerdotisa-chefe e agradecendo a acolhida. Coma um pouco e vamos. – Sarin sorriu.

De repente, Maia sentiu uma enorme vontade de socar Sarin e arrancar aquele sorriso da cara dela.

Ela tão felizinha e você aí, cansada, estressada... Ela está zombando de você! Ela não liga para você! Nem percebeu que você saiu! Ninguém liga!

Maia balançou a cabeça, afastando o pensamento.

- Bom dia, Maia. – Cassi entrou e fez um sinal para Sarin se afastar um pouco, dando privacidade para as duas. – Tome.

- O que é isso? – Maia pegou o anel de madeira negra.

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- Um amuleto. Vai te ajudar a enfrentar seus sentimentos ruins no caminho. – Cassi sorriu e Maia teria chorado de emoção se não fosse uma Tiger.

- Obrigada, Cassi. Eu preciso muito de ajuda...

- E você tem. Basta me chamar e vou te ajudar em tudo. Confie em mim e nunca te deixarei sozinha.

- Eu confio. – E era verdade. Maia confiava em Cassi como nunca confiara em ninguém antes, afinal, a sacerdotisa foi a única pessoa que nunca a julgou, nunca lhe deu um sermão sobre ela ser errada, ser uma alma impura. – Minha mãe sempre me julgou... Sempre disse com aquele olhar dela que eu seria uma ha...

- Shhh. – Cassi colocou um dedo nos lábios de Maia a silenciando. – Não diga isso.

Você nunca deve dizer isso. É melhor irmos. Você verá como as coisas vão melhorar a partir daqui.

Sarin, ao longe, observou a cena e fez uma nota mental para pegar a garrafa das mãos de Maia o mais rápido possível para encher de novo.

~o ⭐ o~

O sol ainda não havia se erguido no horizonte, seus raios brilhando fraco dando um tom rosado ao céu. Uma névoa negra se materializou ao lado da cama de Lich revelando o próprio Lich com uma expressão cansada, preocupada e ao mesmo tempo satisfeita.

- Onde você esteve? – A voz de Alart fez Lich dar um pulo de susto com uma adaga sacada rapidamente.

- Pai. Que susto. – Ele guardou a arma, sua mente correndo em mil possibilidades.

Alart que estava encostado na porta trancada por dentro, o corpo ainda dando sinais de que se materializara a pouco tempo, deu alguns passos até ficar a um palmo de distância do filho. – Onde. Você. Esteve?

Lich olhou para o lado, incapaz de encarar o pai. Aquilo foi mais eloquente do que um dicionário.

- Por Kallisti, Lich! – Alart andou de um lado para o outro.

- Eu....tentei... – Lich sentou na cama, envergonhado.

- Você “tentou”? Pensei que tivéssemos conversado sobre isso. Achei que...

- O que? Que eu podia apenas desligar essa...coisa? Pai, não é tão fácil! Eu...eu não consigo evitar!

- Lich! Isso é errado em tantos níveis que nem consigo contar! É....um crime!

- Eu sei...

- Ah, você sabe! Claro que sabe. Se tem alguém que entende bem de justiça é você. O

que mais me preocupa é que nem assim você consegue parar!

- Pai, me desculpe...

- Lich, não é comigo que você tem que se desculpar. – Alart parou, tentou se controlar e disse mais calmo: - Vá dormir. Eu também preciso dormir porque passei a noite toda usando minha magia pra te procurar. E não me olhe assim. Eu não fui lá. Primeiro porque

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imaginei que você poderia estar fazendo....isso... e, honestamente, eu não queria ver.

Segundo porque é errado. Quando eu acordar e me acalmar, a gente conversa. – Alart se virou e abriu a porta.

- Pai... – Lich chamou e seu pai parou de costas para ele. – Sinto muito.

- Eu também sinto muito, Lich. – Ele respondeu com um tom de decepção bastante nítido em sua voz e saiu se perguntando onde ele tinha errado na educação de seu filho caçula.

~o ⭐ o~

Eu sei onde eu errei no meu projeto. Ele foi infectado com pequenos fragmentos quase imperceptíveis de fonte de vida Ácida. Eu descobri, mas já era tarde e não podia mais desfazer, extinguir aquela raça e criar outra. Eu já amava meus felinos. Mas o pior foi descobrir onde tinha ido parar toda a fonte Ácida que restava no universo...

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Capítulo 04

Meu assistente desapareceu por pouco tempo quando descobri sobre a infecção nos meus felinos. Eu o cacei, confesso, a raiva e meu instinto de vingança me dominava, afinal, ele havia infectado meus amados felinos, usado eles como cobaias. Isso eu nunca perdoaria.

Não demorei a encontra-lo, mas o encontrei dominado por sua arrogância... E

completamente preenchido por toda a enorme fonte Ácida do universo. ..

~o ⭐ o~

Lich jogou a pequena mochila de couro no ombro e caminhou silenciosamente como sempre para pátio onde Scylla o esperava para dar uma carona no portal aberto por ela.

Porque eu tenho que abrir mão do que me dá prazer? Ele pensou.

- Pronto? – Scylla perguntou e seu semblante logo mudou. – Aconteceu alguma coisa?

Você parece tenso.

- Nada que não possa ser facilmente resolvido. – Lich disse misteriosamente. – Vamos?

- Sim. Vamos. – Scylla abriu um portal e deixou Lich passar primeiro. Ambos aterrissaram no jardim reformado da mansão dele no litoral onde anos antes Sunny tinha crescido.

O lugar estava quase irreconhecível agora. Desde que sua mãe lhe dera a propriedade e o título de Duque que lhe trazia também a responsabilidade de governar a região, ele fez inúmeras reformas. Começando por caçar, julgar e punir impiedosamente qualquer pessoa envolvida em crimes, punindo com mais rigor ainda quando se tratava de nobres corruptos ou aliados a crimes hediondos. Por isso, Lich era chamado pelo povo da região de “Duque-Juiz”. Mas, futuramente, ele planejava criar sua família naquela mansão e queria ser sempre visitado por sua mãe, por isso ele vinha fazendo reformas por toda a propriedade, chegando a vender muitos objetos pessoais e magias necromantes, sua especialidade, para pagar os gastos. A região onde agora era o jardim, antes era a sala principal onde sua avó tinha sido morta por seu avô. A sala e a entrada principal agora ficavam do lado oposto da propriedade, voltada para uma estrada menor, ramificada da principal. As cozinhas enormes foram divididas em duas partes: uma para servir a mansão e outra maior para servir o orfanato. Essa era outra mudança. Lich transformou o enorme jardim-bosque onde Ismir soltava suas vítimas para serem caçadas por esporte pelos seus aliados e mortos, e mandou construir um orfanato em forma de castelo, com quatro torres, dois prédios de três andares cada, um jardim médio na frente, um playground nos fundos, área de lavanderia e um templo de Kallisti construído por Calíope, a maior apoiadora desse projeto.

Ao redor do orfanato havia um muro de tijolos com plantas e flores o cercando por dentro e por fora, cuidadas por todas as crianças.

Quando o orfanato completou um ano de existência, Aine organizou uma festa no local e foi a única vez que Sunny voltou ali depois de passar a propriedade para seu filho, embora ela nem tivesse entrado na casa, indo direto para o orfanato. Naquele ano, Maia

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desenhou roupas que serviriam como farda para as crianças e Gaia as costurou. Ane era responsável por criar e fiscalizar o plano de estudos das diferentes faixas etárias. Sven, Alart e Hieron tinham se ocupado em investigar e encontrar todas as vítimas de Ismir que pudessem ter sobrevivido e seus possíveis descendentes para empregar no orfanato ou, caso fossem crianças, os beneficiar com o local. Assim, quando foi aberto, o orfanato já tinha 24 crianças e um quadro de funcionários completo. Scylla e Lesath tinham elaborado táticas de treino e luta para as crianças se manterem em forma, enquanto Lucius criou o logotipo da instituição: um sol dourado com os raios acima formando um coração e as letras OS no meio, as iniciais de Orfanato Sun, em homenagem a mãe dos trigêmeos.

- As crianças parecem mais eufóricas hoje. – Scylla comentou, ouvindo os gritinhos das crianças mesmo a essa distância.

- É uma festa de aniversário. – Lich comentou. – A reitora comentou sobre isso a duas semanas.

- Você vai lá? – Scylla perguntou.

- Mais tarde. Aine mandou um presente para a aniversariante. – Ele apontou para a mochila.

- Calíope já chegou. – Scylla olhou para a Sentinela parada na entrada em prontidão. –

Vou deixar você conversar com ela em paz.

Scylla fez um sinal de bênção e Lich abaixou a cabeça. Quando ela se foi, ele caminhou até sua mansão com o mordomo vindo ao seu encontro e passando uma lista de novidades, necessidades e atualizações sobre tudo. Lich ouviu atentamente, dando instruções de tempos em tempos e dispensando o Tiger para seus serviços assim que entrou na casa.

- Lich, meu rapaz. – Calíope levantou com dificuldade e Lich não pôde deixar de ver o que via a algum tempo.

- Majestade. – Lich a ajudou a se sentar de novo. – Não deveria ficar se esforçando assim.

- Não seja bobo, garoto. – Calíope puxou a mão dele, fazendo-o se sentar na mesa de centro de madeira na frente dela. – Você não parece bem.

- A senhora devia descansar.

- E você não devia mudar de assunto. Pensei que me considerasse sua amiga.

- E considero. – Lich disse rápido, olhando pra ela e lutando para não desviar o olhar com o que via.

- Lich... Não conta para seus irmãos, mas você sempre foi meu favorito. – Ela disse como se revelasse um segredo, embora todo mundo soubesse da ligação entre eles. – Às vezes não acredito que esse leonino enorme é o mesmo garotinho morto que peguei no colo depois de ajudar sua mãe em mais dois partos antes, franzino que só voltou a viver 3

minutos depois quando usei minha magia para te trazer de volta...

- E jamais agradecerei o suficiente.

- Mas você agradeceu. Você se tornou um felino bom, justo, um exemplo para todos, bonitão, mas, acima de tudo, meu amigo.

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Lich se emocionou e se incomodou ao mesmo tempo porque ele sabia o que essas palavras significavam. – Eu...

- Eu sei. – Calíope sorriu e acariciou o rosto do rapaz. – Eu sempre soube, meu menino.

Lich olhou para ela com tanta dor que Calíope quase podia sentir a perturbação dele.

- Lich, você é bom.

- Não sou... A senhora sabe que não sou... – Lich admitiu, seu peito doendo.

- Sim, você é. Você tem um defeito preocupante, sim. Mas também tem milhares de virtudes. Não deixe essa coisa sombria te corroer por dentro, destruir o que você tem de bom. E, acima de tudo, não se isole, filho. A solidão é o combustível para o mal.

Lich abriu a boca, mas Calíope logo mudou de assunto.

- Quero ver esse projeto novo. – Ela sorriu.

Lich entendeu e respeitou. Afinal, ele era muito bom nisso. Justamente por isso, ele tomou uma decisão e contactou Scylla para ajuda-lo.

~o ⭐ o~

- Você acha que é uma boa ideia? – Aine quase gritou no comunicador, cuja imagem estava estranhamente fora de foco e distorcida.

- Sim. É mais rápido. – Maia respondeu, sua voz soando distante.

Naquela área e com a tempestade magnética no local, era muito difícil conseguir mandar qualquer tipo de mensagem pelo comunicador, mesmo assim ela tentou algumas vezes até conseguir falar com alguém. Para seu desgosto, apenas o de Aine que estava em um templo completou o contato.

- Só queria falar com alguém para avisar que vamos precisar mudar o caminho ou ficaremos ilhadas nessa tempestade. – Maia informou só porque Sarin a convencera de falar com alguém pra avisar.

- Não acho uma boa idéia... – Aine respondeu, torcendo para Scylla chegar logo.

- É só um atalho, Aine! – Maia foi bastante agressiva, o que fez Aine estranhar porque ela podia ser meio maldosa às vezes, mas nunca fora agressiva assim.

- Eu sei, Maia, mas se atalho fosse bom ele seria o caminho principal. – Aine disse e sentiu aquele arrepio típico de magia por perto antes de vez o portal se abrindo a alguns metros.

- FALOU A PERFEITINHA! – Maia explodiu. – Avise aí e procure algo útil pra fazer!

- Maia! – Aine tentou manter o contato, mas sua amiga desligou o comunicador.

- O que houve? – Scylla perguntou, terminando de passar pelo portal.

- Maia. Ela e as acompanhantes vão precisar pegar um atalho por causa da tempestade magnética. – Aine respondeu, tentando contactar a amiga de novo, mas sem sucesso.

- Entendo.

- Ela não devia fazer isso. – Aine disse.

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- Não mesmo. – Scylla disse calmamente. – Mas uma tempestade magnética é uma emergência naquela região e, se Sarin e Cassi decidiram isso, é porque não havia opção melhor.

Aine tentou se acalmar, embora não gostasse da ideia. Scylla abriu o portal de novo, levando a princesa Tiger, rezando para que aquele incômodo com a notícia fosse apenas seu lado maternal protetor preocupado com a filha longe de suas mãos.

~o ⭐ o~

Gaia esticou os braços sobre a cabeça, alongando e sentindo seu pescoço estalar.

Lucius olhou para ela boquiaberto.

- Uau! – Lucius disse. – Você precisa descansar um pouco?

- Não. Tudo bem. – Gaia respondeu e voltou seu olhar para os papeis com projetos de construção e design interior.

Lucius admirou o foco da jovem Tiger que ele nunca fora próximo, apenas conhecia por ser amiga de sua melhor amiga e por ser filha de Scylla. Ele se levantou, sentindo a própria tensão, passou por ela que nem o notou tamanho era seu foco, chamou um guarda na porta, deu instruções e aguardou. Logo o guarda voltou com uma bandeja com chá calmante quente, duas canecas de barro cozido e pintato, dois pratos pequenos com fatias generosas de bolo muito doce do jeito que ele adorava e alguns biscoitos salgados. Lucius levou a bandeja até a mesa, puxando os papeis bruscamente e os jogando em outra mesa de qualquer jeito.

- Ei! – Gaia disse chocada e meio brava.

Ele simplesmente colocou a bandeja na mesa e se sentou do outro lado. – Coma.

- Não quero. – Ela queria, mas não ia dar esse gostinho a ele.

- Eu sou seu superior aqui, afinal sou o Rei Interino, e você me deve obediência. – Luc adorava mandar, não era novidade. – Então coma. Não quero que você desmaie. Tia Scylla é assustadora demais quando quer, não vou enfrentar ela e dizer que a filha dela morreu de fome na minha frente.

- Exagerado! Mandão! – Gaia nunca fora amiga dos tri e nem queria. Luc era mandão e brigava por qualquer coisa. Lich lhe dava arrepios com aquele jeito sinistro dele. Les era um idiota namorador que só ficou pior depois que a noiva dele o traiu e Aine descobriu. Ou seja, todos eles era tudo que ela não era e não gostava nas pessoas. A única namoradora em série que ela se dava bem era Aine, mas também todo mundo amava Aine.

- Sim. E sim. Agora coma. – Luc disse com firmeza e Gaia comeu porque ela detestava brigar. – Boa menina. – Ele não perdia a chance de se sentir no comando.

BABABCA! Gaia pensou. Luc abriu um sorriso ao captar o pensamento dela e perceber que ela não notara que pensou aquilo quase gritando e esquecendo que ele era um telepata.

~o ⭐ o~

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- É melhor avisar. – Sarin disse. – Se temos que seguir outro caminho, é sempre bom avisar a alguém.

- Mas nós temos liberdade para mudar o roteiro se necessário! – Maia gritou.

- Sim, temos. Mas é uma questão de segurança. – Sarin respondeu, tentando acalmar a jovem.

Maia olhou para Cassi, mas, vendo que não teria apoio naquela discussão, deu um rosnado irritado, pegou o comunicador e tentou contactar sua irmã. Nada. Os trovões ecoaram ao longe enquanto ela tentou inúmeras vezes falar com qualquer um. Nada.

Aquela área onde ficavam os templos dos Aneis e das Luas era conhecida por ter pouco acesso a comunicadores, apenas os portais nos templos funcionando bem. A história dizia que, a muitos séculos, os magos criaram um tipo de bloqueio a contatos externos para evitar distrações das sacerdotisas rigorosas dali e de viajantes em busca de purificação que pudessem usar a tecnologia Tiger como forma de saciar seus vícios que tentavam curar ali.

No caminho ainda era possível usar os comunicadores às vezes, mas a tempestade magnética estava tornando isso quase impossível. Sem mais opções, Maia tentou a pessoa que ela menos queria falar. Para seu desgosto, Aine atendeu, fazendo seu ódio gratuito praticamente ferver em suas veias, a corroer por uma vontade louca de arrebentar a amiga na porrada, usar suas garras para desfigurar o rostinho perfeito dela...

Quando Maia desligou furiosa, a seus piores sentimentos ainda mais poderosos do que estavam nos últimos dias, ela jogou o comunicador longe e andou na frente, literalmente espumando de raiva, seguida pelas duas felinas silenciosas mais atrás.

~o ⭐ o~

Aine chegou em casa e deu um beijo no rosto da mãe e da avó. Ela olhou as duas felinas, tentando entender a urgência de Lich, mas não vendo nada demais.

- Pensei que você só voltaria daqui a três semanas. – Calíope comentou.

- Eu só queria dar um beijo nas duas delícias da minha vida. – Aine sentou no chão e colocou a cabeça no colo da avó, ronronando de prazer ao receber um cafuné.

As três conversaram sobre tudo a tarde toda, Calíope aproveitando para fazer observações sobre a cerimônia de coroação da neta.

- Ai, vovó! – Aine reclamou. – Eu já cuido de muita coisa do governo, pra que falar em coroação agora? A senhora vai governar por muito tempo ainda.

- Pelo menos 4 anos. – Ane lembrou. – Você prometeu.

- Sim, amor, eu sei. – Calíope respondeu. – Mas gosto de imaginar como vai ser a coroação da minha menininha linda da vovó.

Aine aceitou mais cafuné, manhosa como sempre. – Tá bom, vozinha. Até lá, vou ajudar no governo como sempre, para a senhora ter tempo de dar uns amasso na mãe.

- Epaine! – Ane ficou envergonhada.

- O que? – Aine riu com a cara mais inocente do mundo.

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- Hahahahaha! – Calíope adorava ver Aine deixar Ane envergonhada assim. Era fofo.

Aquela foi uma tarde deliciosa que fez Calíope se sentir grata pela família que tinha.

~o ⭐ o~

Gaia recostou na poltrona enquanto Lucius avaliava as mudanças que ela sugeriu nos projetos. Esgotada, ela cochilou e ele notou, mas deixou a garota em paz, afinal ela vinha trabalhando muito e merecia um cochilo. De repente ela deu um pulo do sofá, seus pelos eriçados e ofegante.

- O que? – Lucius perguntou confuso e surpreso.

- Você ouviu algo? – Gaia perguntou, confusa e tentando entender o que a assustara.

- Não. Só você roncando como um monstro. – Ele não perdeu a chance de irritar ela, mas ficou preocupado quando não deu certo. – O que foi? Está se sentindo mal?

- Não... Eu... Eu não lembro, mas sinto que devia.

- Você só teve um pesadelo ou algo parecido. Precisa descansar, está trabalhando demais.

- Eu não tenho pesadelos... Mas tem razão. Preciso descansar. – Sem esperar por uma resposta, Gaia saiu decidida a tomar um banho relaxante, comer algo e dormir.

Lucius largou os papeis sobre a mesa e foi procurar sua mãe.

Naquele mesmo momento, longe dali, Scylla ouviu um sussurro muito distante a chamando e quase se cortou com a faca que usava para preparar alguns bifes e mandar para Maia no templo principal dos Aneis e das Luas em que ela ficaria.

~o ⭐ o~

Maia e Cassi seguiam atrás de Sarin que verificava o terreno cautelosamente antes de pisar, dando um caminho seguro para as outras. A chuva caia torrencialmente agora, o vento frio era impiedoso e os raios atingiam o topo das árvores ao redor da estrada antiga.

Mas nada daquilo servia para acalmar o ódio que corroía Maia a horas, aumentando sem trégua. Sem perceber, ela foi ficando para trás até que não podia mais ver as duas mulheres. Isso a deixou tão raivosa e irracional que Maia parecia ter sido totalmente dominada pelos sentimentos ruins, rosnando e babando como um animal selvagem e louco.

- UAAAARRRRR!

Naquele momento Maia tinha tanta inveja de tudo que chegou a invejar um caracol no chão por ter uma casca que o protegia parcialmente da chuva. Sem piedade ela pisou no pobre animal várias vezes até sobrar apenas uma massa destruída do corpo do anima com lama e pedras.

As sombras das árvores se moveram sozinhas indo em direção a ela no meio, formas negras se ergueram delas, assumindo a forma de felinos alados, com corpos feridos por queimaduras ácidas, caudas afiadas como navalhas, dentes enormes e sujos com sangue seco e corroídos pela acidez.

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Harpias! O fragmento de racionalidade de Maia reconheceu aqueles espíritos malignos, seres que antes tinham sido pessoas, mas que, corroídos pela inveja principalmente, o sentimento amaldiçoado por Kallisti, tinham sido dominados pelo líder delas e, depois de devoradas por ele, eram vomitadas naquela forma para atormentar o mundo e atrair mais vítimas que pudessem se tornar também alimento para ele. Porém, o fragmento de racionalidade enfraqueceu ainda mais e Maia, dominada pelo sentimento maldito, invejou até mesmo as Harpias que a atacavam. Assim, ela deu uma mordida em u desses espíritos, sentindo a acidez venenosa combinando com o sentimento que parecia corroer seu interior, os pelos sobre seus lábios queimando com o veneno.

As sombras já haviam cercado seu corpo em uma massa densa, dolorosa e pesada, embora nada disso fizesse ela tentar se soltar. Na verdade ela estava tentando pegar tudo aquilo para ela como se ela tivesse direito a ter tudo que outros tinham e ela não, mesmo algo perturbador. Aquele fragmento de racionalidade voltou e ela tentou em vão se libertar das Harpias que a arranhavam, mordiam, cuspiam ácido queimando todas as suas roupas e unhas.

Porque está resistindo? Eu só estou te dando tudo o que você tem direito. Aquela voz meio zombeteira e familiar ecoou em sua mente de novo.

Mãe... Maia pensou.

Ela te jogou fora. Abandonou você para morrer aqui. A voz disse. Eu não. Eu estou te dando o poder que você quer e merece. Aceite. Ou quer que eu dê a outra pessoa?

- MEU! É TUDO MEU! – Maia gritou, tomada pela inveja enquanto sua mente gritava seu último pensamento coerente: GAIAA!

~o ⭐ o~

Três semanas depois, Lich se levantou sabendo o que acontecera naquela noite antes que qualquer mensagem do Reino Tiger chegasse. Ele pulou da cama, se vestiu o mais rápido que pôde, se transformou um uma névoa negra e entrou no quarto de cada um de seus irmãos.

- Puta merda! – Lucius se assustou, ainda abrindo os olhos e já encontrando a névoa negra disforme que era seu irmão.

- RÁPIDO! Me encontre na porta do quarto dela. - Lich disse e sumiu nas sombras indo para o próximo quarto e repetindo a mensagem para Lesath que acabava de terminar seu banho.

Quando seus irmãos chegaram na porta do quarto, encontraram Lich parado de pé, braços cruzados sobre o peito, encostado na parede do corredor em frente a porta com uma expressão preocupada.

- Você tem que parar de fazer isso, mano. – Lesath disse. – Um dia a gente vai infartar de susto.

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- Qual a emergência? Duvido que chegar de manhã assim do nada convença Aine a repetir nossa festinha em grupo. – Luc disse, de péssimo humor.

Lich mantinha o olhar focado na porta do quarto, aguardando. De repente o som de objetos quebrando e crepitar violento ecoou. – Calma, Aine! – A voz de Gaia soou e Lich abriu a porta sem dificuldade já que não estava trancada.

- Chame minha mãe. – Lich disse apenas para Gaia sair, já que ela não deixaria a amiga sozinha naquele momento apenas se fosse algo realmente necessário. Gaia correu em busca de Sunny que já estava de pé terminando uma poção calmante depois de ter sido avisada pelo filho que quase a pegou transando com o marido.

Aine estava lançando rajadas e mais rajadas violentas de fogo em tudo. Vidros de perfume explodiram, espelhos tinham sido destruídos, as cortinas estavam chamuscadas e molhadas porque Gaia obviamente tinha conseguido apagar o fogo com as jarras de suco ou água que havia na mesa de cabeceira... Les e Luc correram para apagar o fogo do tapete, nas camas e no banheiro que brilhava com o incêndio lá dentro.

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – Aine berrava feito louca, com lágrimas nos olhos, dando ainda mais potência a magia de fogo.

- Como diabos ela ficou tão poderosa? – Lesath perguntou e seu olhar cruzou com o de Luc a poucos passos, o entendimento os atingindo.

- Não... – Luc murmurou, sentindo a dor de sua amiga.

Lich tinha se aproximado cautelosamente de Aine e a imobilizou por trás, suas palmas das mãos queimando no processo. Mas ele não ligava. Tudo que ele queria era acalmar Aine. Ele quase podia jurar que sentia a dor dela naquele momento.

- ME LARGA!

- Shh... – Ele a segurou com força enquanto ela se debatia e chorava.

Gradualmente, a raiva foi substituída pela dor e eles escorregaram até o chão, com Aine escondendo suas lágrimas e gritos de raiva na camisa dele, não vendo as lágrimas dos trigêmeos pela dor dela. Lich a segurou assim por uma hora enquanto os irmãos apagavam as chamas com Alart que apareceu rapidamente. Sunny chegou com Gaia pouco atrás e levou a poção até a jovem.

- Beba, querida. Vai te ajudar. – Sunny disse com tanta gentileza, tanto carinho que Aine obedeceu meio no automático.

Lich ergueu Aine no colo, nua pois sua fúria chegou a queimar suas próprias roupas.

Gaia pegara um robe emprestado de Sunny e cobriu Aine prevendo isso. Lich saiu do quarto praticamente destruído pelas chamas, fumegando, a levou para outro quarto e colocou sobre a cama, segurando sua mão e não saindo do lado dela em nenhum momento. Alguns minutos depois, Luc e Les entraram com uma bandeja de comida, sentaram do lado de Aine e ali permaneceram o resto do dia.

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Naquele dia os dois reinos estavam silenciosos, tristes, o próprio tempo nublado como se refletisse a tristeza de todos. Em silêncio, vários felinos de todas as espécies chegaram na frente do palácio Tiger para lamentar.

Naquela manhã, com um grito estridente e assustado, Ane acordara de mãos dadas com Calíope, como sempre. Mas Calíope não estava mais ali a horas. Durante a madrugada, em paz, seu coração parara de bater e Rainha Tiger morrera.

~o ⭐ o~

Meu coração morreu em partes também quando encontrei Erínio. Meu assistente, quem por muito tempo eu considerara meu amigo, não apenas infectou meu projeto, meus amados felinos, com fragmento de algo tão perigoso, mas também usou toda a fonte Ácida para se tornar uma divindade, alguém mais poderoso do que eu. Porém, em sua arrogância, ele não percebeu que nunca daria certo. E não deu. Ele se tornou um demônio, um espírito maligno, dominador, que precisa se alimentar das almas que dão atenção ao sentimento ruim e cedem ao seu domínio. Mas, acima de tudo, a fonte Ácida corroeu toda e qualquer coisa boa que restava nele.

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Capítulo 05

Eu cacei aquele traidor, invejoso por todo o universo. Ele não era tão poderoso para me enfrentar, mas sempre foi traiçoeiro. Depois de várias armações que terminaram em sistemas estelares inteiros sendo destruídos com nossos conflitos, Erínio finalmente entendeu que seu poder não era ilimitado e não era natural, exigindo seu preço...

~o ⭐ o~

Aine acordou com Luc e Les dormindo sentados em duas poltronas enquanto um par de olhos amarelo-azulados a encaravam de um canto escuro.

- Um dia você vai matar alguém de susto. – Ela comentou, sentando na cama e sentindo uma dor de cabeça irritante.

- Como se sente? – Lich perguntou, saindo da escuridão e a ajudando a sentar.

- Como um monte de esterco. – Aine respondeu, sem seu habitual sorriso, os olhos inchados. Aine não sabia e Lich não pretendia contar, mas ela chorara durante o sono por horas.

- Aine... Você pode voltar a dormir. Ainda é madrugada..

- SAI DA MINHA FRENTE, LICH! – Aine gritou, assustando os irmãos que dormiam e até mesmo Lich que nunca a vira gritar com ninguém, muito menos assim, sem motivo.

- Aine, o que houve? – Les perguntou.

Lich olhou para ele em um pedido silencioso para o irmão ficar quieto. – Vamos. Aine precisa se arrumar.

Ela olhou para ele meio culpada por perder a paciência com seu amigo, mas irritada demais com tudo para se desculpar. Lich entendendo o momento, apenas guiou os irmãos para fora. Já na porta ele se virou e disse: - Vou com você. – E saiu sem dar chance para ela questionar qualquer coisa.

Assim, vinte minutos depois, Lich usou o portal do jardim e passou com Aine para o palácio Tiger. Na manhã seguinte, seus irmãos contaram o ocorrido para seus pais e Gaia.

Como Sunny era uma grande amiga de Calíope, partiu para o reino vizinho com os gêmeos primeiro enquanto Alart e Gaia organizavam toda a agenda real, permitindo que o reino ficasse nas mãos dos conselheiros até o retorno da família real leonina.

Em Tiger, Ane estava calma por causa de poções dadas por Scylla, praticamente mais dopada do que calma, enquanto Aine parecia um poço de raiva e grosseria com todo mundo. Lich andava um pouco atrás dela, silencioso e se desculpando com todos em nome dela. Mas todo mundo entendia que Aine estava no seu limite e explodindo com todos em uma forma de extravasar a dor de tantas perdas em tão pouco tempo. No entanto, ainda era perigoso. Afinal, graças ao feitiço de Calíope implantado na tatugem da moça anos antes, assim que ela morreu, o poder Tiger passou para sua neta, aumentando seu já

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natural dom com o fogo. E o fogo é caprichoso e dominador. Ou você o controla, ou ele assume o controle de você. Enquanto Scylla mantinha sua atenção no velório e na cerimônia de morte de Calíope, Lich mantinha seu foco em Aine, tentando evitar um descontrole que literalmente incendiaria o reino.

- Não seria melhor dar uma poção de calma pra ela? – Les perguntou ao irmão mais novo, observando Aine discutindo com um pobre guarda por qualquer coisa sem sentido.

- Scylla tentou. – Lich respondeu.

- E....?

- E ela jogou a poção pela janela com tanta raiva que não sei com ela não entrou em combustão espontânea. – Lich disse, começando a sentir os efeitos de dois dias sem dormir.

- Eu vou falar com ela. – Les decidiu.

- Deixe-a.

- Como assim? Maninho, ela precisa se acalmar.

- Não. Ela precisa extravasar. – Lich respondeu e se virou a tempo de ver Luc chegando com cara de poucos amigos.

- Ficou doido, irmão? – Luc perguntou.

- Vocês não entenderam, não é? Aine reagiu assim justamente porque ela nunca extravasa, nunca desabafa, nunca deixa ninguém a apoiar de verdade.

- Mas é perigoso, mano. – Luc disse o óbvio.

- Sim, é. Mas uma emoção não some simplesmente. Ela acumula e se transforma, muitas vezes em coisa pior.

- Mas e se ela sair do controle? – Les perguntou.

- Les, ela já saiu do controle. – Lich disse. – Vamos apenas ficar de olho e nos preparar para conter caso ela piore.

O sepultamento de Calíope seguiria uma antiga tradição como ela desejara várias vezes. Seu corpo seria levado em um cortejo pela capital em um cristal de contenção, depois o cristal seria aberto, colocado em uma balsa no rio próximo e incendiado com o poder Tiger que não deixaria nenhum vestígio físico dela. O cristal estava aberto na praça central a alguns metros na frente do palácio. A família real, nobres e amigos próximos estavam de pé com velas aromáticas nas mãos, exceto Ane que não tinha condições de segurar nada e de Aine que seguraria apenas o cetro de sua avó como um símbolo do futuro da família ainda de pé. Sunny colocou um braço ao redor da cintura de Ane a impedindo de cair com a fraqueza que sentia. Lich permanecia ao lado de Aine o tempo todo, Les estava a alguns passos atento a qualquer possível descontrole maior da amiga e Luc, como próximo Rei Leonino, estava ao lado do pai um pouco mais afastado, porém com atento aos pensamentos praticamente gritados de Aine.

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Scylla recitava os rituais, bloqueando os pensamentos conturbados de Aine, mantendo sua atenção ao trabalho. Quando uma frase no ritual desencadeou o caos...

- ...Quando a morte traz a paz... – Scylla dizia.

- PAZ? Que paz? Paz pra quem?! – Aine gritou e os mais atentos já podiam sentir um cheiro de calor no ar, como se o ar estivesse prestes a pegar fogo. E estava.

- Aine... – Sunny tentou acalmar a moça, mas ela nem mesmo ouvia.

- Minha mãe parece em paz pra você? – Aine esticou o braço apontando sua mãe. Lich se preparou para a dor. – Eu pareço em paz pra você? Alguém que sequer gostasse do meu avô um pouquinho sentiu alguma paz nesses meses sem ele?

Scylla evitou fazer qualquer movimento brusco, já vendo as chamas emanando dos olhos de Aine e de seu corpo como uma onda de calor sobre o asfalto quente.

- Aine, você precisa relaxar. – Gaia disse.

- Você relaxou? Seu pai morreu e ai? Você está em paz? Porque eu não estou! – Aine sentia apenas uma vontade insana de machucar todo mundo para fazer todos sentirem aquela avalanche de dor, de perda que parecia explodir em seu peito ao mesmo tempo.

- Aine, filha... – Ane olhou para a menina, mas, ao ver a dor nos olhos da mãe, o efeito foi o de um palito de fósforo caindo aceso em um oceano de combustível.

- ISSO É A PAZ QUE VOCÊS QUEREM? VOCÊS SÃO...SÃO... NÃO É JUSTO! – Aine não percebeu, mas a raiva pelas suas perdas, a raiva por nunca ter tido a chance de conviver com o pai que tanto a incomodava, os sentimentos que ela fingia não ter, a fizeram perder o controle. Seu corpo assumiu uma forma de fogo tempestuoso e um tornado de fogo surgiu de sua mão, pouco a frente.

Lich. Scylla disse mentalmente.

Lich se transformou em uma névoa negra densa e cercou o corpo de Aine, abafando o fogo que vinha dela o suficiente para Scylla conseguir se aproximar.

- AINE! – Ane gritava em pânico. – FILHA! ACORDA!

Aine, se acalma! Luc tentou acalmá-la mentalmente, mas quase caiu no chão com o impacto da violência dos pensamentos da amiga que o atingiram. Les o segurou antes que ela atingisse o chão e rapidamente verificou se seu irmão tinha se ferido. As pessoas ao redor correram para se proteger, guiadas pelos guardas para longe. Alart puxou Sunny em um abraço, se jogando atrás de um banco de pedra da praça, com seu corpo em forma de névoa negra protegendo a esposa.

Lich sentiu a dor das inúmeras queimaduras e sabia que estaria bastante ferido quando se materializasse novamente, mas naquele momento ele não ligava. Ele só queria acalmar a amiga. Felizmente, Scylla conseguiu chegar perto, o calor do tornado de fogo às suas costas, o calor vindo de Aine à sua frente, porém mais contido por Lich.

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Abra. Scylla enviou a mensagem e Lich abriu um pequeno espaço para que os lábios de AIne ficassem visíveis. Scylla queimou a mão enquanto jogava na garganta de Aine, que se debatia feito louca, uma poção de sono feita por Sunny horas antes e muito mais potente do que a que ela usara no quarto para acalmar Aine. Quase imediatamente Aine sentiu sua mente ficar mais lenta como se ela nadasse em um rio enevoado. Seu corpo voltou ao normal em segundos e o tornado de fogo sumiu como se fosse desligado. Lich se materializou com inúmeras queimaduras de terceiro grau por toda a parte frontal de seu corpo, mas, inacreditavelmente, de pé e firme. Aine caiu ofegando no chão e Scylla agachou com dificuldade à sua frente.

- Respire. Devagar. – Scylla disse e estendeu a mão, recebendo uma jarra enorme de água gelada de sua filha. Ela entregou para Aine que bebeu direto da jarra vorazmente, derramando uma grande quantidade em seu corpo.

Les já estava ao lado de Lich usando sua magia de cura no irmão para aliviar as queimaduras. Lich, por outro lado, apesar daquilo claramente doer horrores, nem mesmo esboçou uma careta, apenas ficando lá, de pé, atento à Aine sem ao menos piscar. Alart ajudou a esposa a levantar, verificou como ela estava e correu até Ane para ajuda-la a subir onde Aine estava, embora seu olhar de tempos em tempos focasse em Lich.

- Meu bebê, amor, fala comigo. – Ane nem tentou segurar as lágrimas, segurando o rosto da filha.

- Eu...desculpa, mãe... – Aine se sentia esgotada, mas leve.

- Tudo bem, amor. Acabou. Pronto. – Ane abraçou a filha cujo corpo ainda estava um pouco quente.

- Lich. – Alart chamou em um tom baixo, mas firme.

Lich piscou como se saísse de um sonho. – Tudo bem.

Aine olhou para Lich e sentiu uma culpa terrível pelo estado dele.

- Tudo bem. – Lich repetiu para ela, com um olhar tentando tranquilizá-la.

- Eu cuido dele e depois de algum descanso esse chatão vai estar como novo, linda. –

Les piscou para ela, querendo aliviar um pouco as coisas.

Aine se levantou, apoiada em Alart e Luc e congelou no lugar. Seus olhos se encheram de lágrimas e quase, por pouco mesmo, ela não as derramou. O medo nos rostos de seu povo, ainda meio escondidos por todo lado era pior do que um punhal no peito. Ela nunca tinha recebido nada além de olhares de carinho e adoração de seu povo. Aquilo doía tanto que ela tomou a decisão que nortearia toda sua vida dali em diante. Mas o que mais doeu mesmo foi ver o que seu tornad de fogo tinha atingido esse tempo todo. O cristal aberto onde sua avó estava tinha se transformado em cinzas. Quase. Na verdade, nem tinha mais sinal dele, no lugar apenas havia uma cratera de uns 4 metros de diâmetro no solo queimado onde nada cresceria por anos.

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Isso foi demais. Aine desmaiou com o impacto da cena e foi levada ao palácio no colo de Luc enquanto a multidão se afastava em silêncio do caminho e depois ia para suas casas.

~o ⭐ o~

Alguns dias depois, Aine estava tendo dificuldades para controlar seu dom. Mesmo com os anos de teoria mágica e prática de autocontrole, agora ela sentia que podia explodir a qualquer momento. Lich era um bom ouvinte, Les a acalmava com seu espírito brincalhão e sua mãe... Bem, ela tentava parecer forte, mas era evidente o quanto ela tinha ficado abalada com a morte de Calíope.

Luc, Gaia e Alart tinham voltado ao reino leonino para suas responsabilidades. Apenas Sunny ficara para apoiar Ane e Aine se sentia grata por isso. Ela mesma não achava que seria de grande ajuda para ninguém agora. A vergonha do que fizera com o corpo de sua avó, a memória do medo em seus súditos, eram fortes demais ainda. Mesmo com todos sendo compreensivos, ela ainda não tivera coragem de aparecer em público na rua. Ela ainda tinha uma semana para evitar todos. Depois as reuniões com o conselho, os nobres, comerciantes, enfim, todo o trabalho de governo seria retomado.

- Você não vem comer? – Lich perguntou.

Esse era outro problema. Lich estava se recuperando muito bem com a magia de Les, mas ainda tinha muitos buracos em seu pêlo onde as queimaduras tinham sido mais intensas, muitas ainda em carne viva. Aine não conseguia olhar nos olhos dele, mesmo depois de Lich dizer que ela não precisava se sentir culpada.

- Não estou com fome. – Ela respondeu sem olhar para ele. – Vou nadar.

- Aine. Pare.

- Parar o que?

Lich apenas a abraçou por trás, ignorando a dor na pele sensível. – Pare de agir como se tivesse feito de propósito, princesa.

- Mas você...

- Eu perdoo você. Porque você não se perdoa também?

Aine sentiu os batimentos cardíacos calmos dele e tentou respirar no mesmo ritmo, acalmando aquela sensação de culpa, a raiva de si mesma, para evitar outro episódio de descontrole. Contra suas expectativas, o truque realmente funcionou.

- Minha avó nunca terá a chance de perdoar. – Ela deu um selinho nos lábios dele e correu para o lago natural nos fundos do palácio.

Lich pensou por um segundo e teve uma ideia. Andando para poupar energia mágica, ele cumprimentou as Sentinelas no corredor e bateu na porta dos aposentos de Ane. Como esperado, Sunny atendeu.

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- Bebê. Precisando de alguma coisa? – Sunny falou baixo para não acordar Ane, embora o quarto ficasse a dois cômodos de distância dentro daquela área. Ela sinalizou para ele entrar e ele passou, dando um beijo no rosto da mãe.

- Na verdade, sim. Mas a senhora não vai gostar.

Sunny se sentou. – Então fale de uma vez. Sabe que não gosto de rodeios, bebê.

Lich contou seu plano resumidamente.

- Concordo. – Sunny disse.

- E vai ser melhor porque é preciso para... Espera. A senhora aceita? – Lich perguntou, confuso.

- Sim, caçulinha da mamãe. – Sunny apertou as bochechas de Lich, que sempre achara muito fofas, rindo da confusão dele.

- Mãe.. Eu não sou mais um bebê, sabia? – Lich sempre ficava sem graça com esses mimos da mãe. – Mas... Pensei...

- Pensou que eu iria seguir as regras cegamente. – Sunny completou. – Lich, meu bebezinho, eu realmente gosto de seguir regras, mas exceções existem. Se seu plano funcionar, podemos evitar uma catástrofe igual ou maior do que aquela no velório.

Os dois passaram a elaborar os detalhes do plano e aproveitaram que Scylla estava longe, resolvendo algo sobre um ataque de Harpia em algum lugar. Eles tinham certeza que ela apoiaria a ideia, mas era um tabu, quase um crime, e quanto menos ela soubesse, menos a afetaria.

Aine passou para ver sua mãe naquela noite, mas Ane estava dormindo sob efeito de poções, algo que tinha se tornado comum ultimamente a qualquer hora. Pelo menos ela estava tranquila no sono. A moça beijou a testa da mãe, a cobriu e foi para seu quarto. Para sua surpresa, Sunny e Lich a aguardavam na sala de espera de seus aposentos.

- Aconteceu alguma coisa? Luc e Les estão bem? – Ela perguntou, já temendo que mais alguém que ela amava tivesse morrido.

- Aqueles dois? Ah querida, eles estão ótimos. Les deve estar pregando alguma brincadeira idiota em alguém e Luc irritando Gaia enquanto trabalham. – Sunny brincou, mal sabendo o quão certa ela estava.

- Viemos te ajudar. – Lich disse.

- Lich vai invocar Cali pra falar com você e vou facilitar pra acontecer em sonho.

Sunny, sempre direta. Aine sorriu internamente. – Eu agradeço... Mas não posso aceitar. Invocar os mortos apenas para satisfazer um desejo, sem um processo, nenhum tipo de aprovação, é um erro grave. Podem tirar todos os seus direitos de mago... Não posso arriscar prejudicar vocês.

- Não estamos pedindo. – Sunny e Lich disseram ao mesmo tempo, trocaram um olhar meio surpresos e sorriram.

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- Mas é que...

- Aine, você quer se desculpar ou não? – Sunny foi direta como....Bem, como Sunny, ne.

- Sim.

- Caçulinha da mamãe, comece o ritual. – Sunny disse e Aine não pôde evitar um risinho com a cara que Lich fez, totalmente sem graça. – Deita aqui, querida, coloque a cabeça no meu colo.

Aine obedeceu e Lich entoou um cântico com um som sinistro, profundo, ao mesmo tempo relaxante. Dizia a lenda que os feitiços dos magos necromantes carregava o som da morte. Aine sentiu que isso chegava bem perto da verdade.

Seus olhos se abriram em uma paisagem repleta de flores multicoloridas, um céu azul sem nuvens e uma brisa fresca e perfumada.

- Lindo, não é?

Aine se virou de lado e viu sua avó, parecendo muito mais jovem, quase da sua idade, com um chapéu largo, um avental de jardineiro e um regador na mão, sorrindo, leve como se não existisse nenhum problema em sua mente.

- Vovó... – Aine sussurrou, emocionada.

- Minha lindinha... Você não devia fazer isso. É perigoso mexer com os mortos.

- Eu precisava te ver. Pedir...

- Perdão. Eu sei, amor. – Calíope sorriu, serena. – Aine, você acha mesmo que os mortos se importam com o que acontece com seus corpos?

- Mas...

- Querida... Velórios são para os vivos, para acalmar seus corações, não para os mortos. Quanto ao que aconteceu, pare de se culpar, amor.

- Eu não fiz por maldade... – Aine chorou.

- Eu sei. Seu povo também sabe. – A voz de sua avó então mudou, como se mais alguém falasse junto com ela, usando os lábios dela. Uma voz mais fina e doce, mas também mais poderosa, dizendo: - Mas cuidado, Aine. O poder do fogo não é para fracos.

Ou você o controla ou será controlada.

Aine sentiu como se não apenas seus pelos se arrepiassem, mas também sua alma.

- Adeus, minha linda. Diga a sua mãe que eu a amo e sempre amarei. – A voz normal de Calíope disse antes dela desaparecer.

- Cuide-se, pois o seu exigirá mais de seu poder do que você imagina, Epaine. – Aquela voz mistériosa disse, parecendo soar de todo lugar ao mesmo tempo. – Vá. Saia do meu reino e só volte quando eu a chamar!

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Como se uma mão invisível a empurrasse para longe, Aine sentiu seu corpo sendo lançado a uma velocidade inominável, gritando, caindo, caindo, caindo, sem parar pelo que pareceram décadas, séculos.

Confesso: peguei um pouco pesado sim. Mas você me entende, não é? Odeio quando entram em meus reinos sem pedir licença.

De repente, Aine sentiu como se aterrissasse em seu corpo, ofegante, esgotada. Ao mesmo tempo, Lich caía no chão como se tivesse sido jogado em um abismo quase infinito, por séculos sem descanso. Os dois abriram os olhos e sorriram um para o outro, em paz, enquanto Sunny dava-lhes poção e comida para relaxarem. Os dois comeram em silêncio, sentados no divã, encostados um no outro, com uma colcha sobre seus ombros, como quando eram crianças.

~o ⭐ o~

Duas semanas mais tarde, Scylla olhava pela milionésima vez os relatórios que tinha recebido a cada dois dias a semanas. Quando sua aprendiz anunciou a aguardada visita, a sacerdotisa guardou os relatórios.

- Me desculpe por não ter vindo antes.

- Tudo bem. As coisas foram caóticas, mas não havia nada que você pudesse fazer.

Você tem novidades?

- Sim. As coisas estão indo tão bem que eu trouxe um presente.

Scylla ergueu uma sobrancelha, curiosa e quase cedeu à tentação de ler a mente da jovem Tiger. – Do que se trata?

A jovem sacerdotisa se levantou e abriu a porta com um sorriso doce.

Scylla levantou da cadeira quase saltando sobre a mesa de felicidade, se contendo apenas por força de vontade, quando a jovem entrou.

- Oi, mamãe. – Maia disse com um sorriso adorável, leve, doce.

- Maia. – Scylla disse, quase sem voz e contornou a mesa para abraçar a filha. –

Querida que saudade!

- Você não vai acreditar no quanto fui bem nos treinamentos, mãe.

- Sim, eu vi os relatórios, minha linda. Você foi incrível e em tão pouco tempo. – Scylla disse, mas, cautelosa como sempre, por puro instinto sondou a mente da filha. – Como se sente?

- Feliz. E curada. – Maia respondeu. – Agora vou praticar tudo que aprendi para nunca mais cair nessas armadilhas da inveja.

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Scylla não se sentia feliz assim a muito tempo. A mente de Maia estava tão tranquila, tão leve como a de um bebê. Até o olhar de Maia parecia diferente.

– Foi árduo, mais difícil do que esperávamos, mas o resultado tão poderoso, fruto de uma força de vontade tão forte... – Cassi comentou, o orgulho evidente em sua voz. - Bem, vou deixar que veja por si mesma com o tempo.

- Obrigada pelo excelente trabalho, Cassi. Quando Sarin voltou contando da tempestade e o susto que vocês levaram ao se perder uma da outra, fiquei preocupada, mas a Sacerdotisa do Templo dos Aneis e das Luas enviou relatórios excelentes sobre seu trabalho também. – Scylla disse. – Fiquei orgulhosa por comprovar que os templos de Kallisti possuem jovens tão promissoras e atenciosas como você.

- Fiz apenas meu trabalho, senhora. Além do mais, confesso que sua filha se tornou uma grande amiga para mim. – Cassi disse e seu olhar cruzou com o de Maia. Querida...

Scylla captou o pensamento de Cassi sem querer, mas nem precisava. Pelo olhar que as duas trocaram, ficou bastante evidente que não era só amizade entre elas.

- É bom ter você de voltar, minha filha querida.

- É bom estar de volta, mamãe. – Maia abraçou Scylla e olhou para Cassi que sorriu docemente de volta.

~o ⭐ o~

Nada no universo é de graça. Esta é uma máxima que funciona em todos os universos.

A vida cobra o preço da morte. O poder cobra o preço da responsabilidade. A tecnologia cobra o preço da guerra. Erínio percebeu isso tarde demais quando entendeu que seu poder exigia energia, exigia que ele comesse, a prática dos mortais. Então ele se alimenta da única coisa capaz de sustenta-lo por algum tempo: almas altamente infectadas pela fonte Ácida.

Almas que cederam a sentimentos ruins, começando pela inveja.

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Capítulo 06

Não sei se você já percebeu ou se ainda está numa fase da vida onde temos mais ilusões e tudo é mais simples... Mas na vida real dificilmente algo ou alguém é o que parece.

Seja por segredos, por autopreservação ou simplesmente caráter duvidoso, todos somos diferentes do que a primeira vista mostramos.

~o ⭐ o~

Aine foi coroada em uma cerimônia simples que deixaria sua avó horrorizada. Mas ela queria focar no trabalho e polpar sua mãe de grandes eventos. Ane raramente saía do quarto, embora não estivesse mais constantemente dopada de remédios. Scylla passava para ver a prima sempre que podia, mas quem mais a visitava, se tornando quase uma sombra extra de Ane, era Maia. O altruísmo de Maia suspreendia positivamente sua mãe.

Não que a jovem fosse má antes, apenas era mais focada em sua vida e sua beleza do que em qualquer outra pessoa. Ainda ocupada ajudando no reino leonino, Gaia só vira a irmã pelos contatos do comunicador, mas se falavam todos os dias, cada vez mais unidas.

- E como estão as coisas com você, Ga? – Maia perguntou, enquanto fazia um penteado na frente do espelho, o comunicador sobre a penteadeira, com a tela do visor mostrando apenas parcialmente a jovem.

- Nada de novo. As construções para o pessoal desabrigado nos desabamentos estão no início. Tem até um rapaz que foi aprendiz do tio Hieron e hoje é um gênio da construção aqui.

- Acho que sei quem é. Papai sempre elogiava o trabalho dele. E os tri? Estão te irritando muito?

- Eu não vejo muito Les e Lich. Ainda bem porque não tenho que encarar o metido a gostoso e o assustador. Mas Lucius infelizmente vejo todo dia porque meu trabalho é ajudando esse cara. Ele faz questão de ser desagradável o tempo todo.

- Seja compreensiva, Ga. Ele deve estar sobrecarregado agora que vai assumir o trono.

– Maia aconselhou.

- Eu sei, mas isso não dá a ele o direito de ser um imbecil. – Gaia sorriu porque geralmente era ela quem pedia calma para Maia, não o contrário.

- Fale com tia Sunny. Ela vai colocar ele em seu devido lugar.

- Não é para tanto. Ele sempre foi imbecil, não é novidade. Eu aguento. Pelo menos é eficiente. E Aine? Quase não tenho falado com ela.

- Ela está bem. Lidando com eficiência em seu trabalho, apesar de estar uma bagunça.

Essas transições são assim mesmo. – Maia terminou seu penteado e pegou o comunicador para ficar de frente pra tela e ver o rosto de sua irmã.

- Uau! Ficou lindo, Ma. – Gaia sempre achou Maia linda.

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- Obrigada. Você está maravilhosa, irmã.

A resposta de Maia ainda surpreendia Gaia porque a irmã nunca foi do tipo que devolve um elogio com outro. Geralmente ela se inflava cada vez mais. Gaia não sabia o motivo da viagem de purificação da irmã, mas a mudança em Maia era notória. – Você não me disse ainda com quem é seu encontro. – Para total choque de Gaia, sua irmã pareceu tímida, algo que ela nunca tinha sido.

- Eu... só vou conversar com uma amiga.

- Amiga? Maia, você só usa esses brincos quando quer ter sorte em um encontro. Não mente pra sua mana.

- É sério. Só vou conversar com a Cassi.

- A sacerdotisa que foi sua guia na viagem? OH GRANDE KALLISTI! Vocês estão...

- Shh... Fala baixo, Ga. – Maia ouviu uma batida suave na porta e se apressou em se despedir da irmã. – Tenho que ir. Beijos, mana.

Ela desligou sem esperar uma resposta, levantou e abriu a porta.

- Pronta pra ir? – Cassi perguntou com um sorriso gentil.

- Sim. – Maia respondeu e, antes que percebesse, foi puxada pela cintura e Cassi a beijou fazendo ela ficar sem fôlego.

Cada vez mais linda. Cassi enviou o pensamento para Maia enquanto a beijava, deixando ela ainda mais orgulhosa de sua beleza.

~o ⭐ o~

- Você poderia fazer isso direito, pra variar. – Luc disse em tom de deboche.

Gaia sempre foi paciente, sensata, ela se considerava uma pessoa calma. Mas sua paciência estava cada vez mais curta.

- Se você especificar direito, ajuda bastante. – Gaia respondeu no impulso e virou o rosto incomodada.

Luc deu um sorriso satisfeito por finalmente fazer ela perder a paciência naquele dia.

Irritar a calma Gaia até ela ser agressiva, mesmo que um pouco, tinha se tornado um jogo divertido para ele.

Nove horas. Legal. Meu novo recorde. Ele pensou. Sentindo-se empolgado, ele decidiu tentar mais um pouco. Ela não perdia a paciência duas vezes em um dia a ponto de responder em voz alta, mas não custava tentar. – Responder a seu rei assim não é elegante.

Pensei que seus pais a tivessem educado melhor.

- Meus pais me educaram para ser uma lady e é o que sou. Você não é meu rei, minha rainha é Aine. Caso não tenha percebido, eu sou uma cidadã Tiger. Você que deveria aprender a ter um pouco de educação, seu bocó brigão! – Gaia estava tão eriçada que parecia ter o dobro de seu tamanho, seus olhos furiosos.

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Luc levou alguns segundos, boquiaberto, mal acreditando em sua boa sorte. Até que ele fez o que nenhum ser vivo sensato faz na frente de uma mulher irritada. –

AHAHAHAHAHHAHAHAHHAHAHA! BOCÓ BRIGÃO! AHAHAHAHAHAHAHAHA!

- O que... – Gaia ficou tão surpresa que seus pelos abaixaram, sua confusão logo sendo tomada pela vergonha que sempre a atingia quando ela presenciava uma briga, além de um tremor que era visível à distância e chacoalhava seu corpo. – Não...não tem graça....Idiota.

- AHAHAHAHAHAH! Não...espera, espera... – Luc se contorcia em meio ao riso incontrolável. – HAHAHAHAHAHAHAHA!

- Eu... – Gaia se virou desconfortável e com uma vontade louca de socar a cara do rei interino. – Vou embora.

Luc não queria que ela saísse, mas não conseguia controlar a crise de riso. Assim, Gaia foi para seu novo quarto, perto da ala onde ficavam os aposentos dos trigêmeos, fechou a porta e, sem surpresa nenhuma, sentiu a onda de raiva sendo substituída pela intensa vergonha. Ela sabia. Não conseguiria voltar a encarar Luc que com certeza agora estava contando para todo mundo o quanto ela era infantil, boba e nada profissional. Depois de algumas horas, ela se levantou e começou a arrumar suas coisas. Com tudo embalado, como se fosse convocada pelos pensamentos de Gaia, Sunny bateu na porta chamando a jovem para tomar chá como fazia com frequência.

- Que carinha é essa, Gaia? – Sunny perguntou. Apesar da moça estar perfeitamente normal para qualquer um que a visse, ela sabia que tinha algo errado por pura intuição.

- Não é nada.

Sunny entrou sem ser convidada mesmo porque ela nunca foi boa com sutilezas de qualquer forma, e parou ao ver a mala pequena de Gaia no canto ao lado do sofá. – Você vai embora?

- É melhor.

- Mas, minha linda, você parecia gostar tanto do seu trabalho aqui.

- É, mas eu não sou muito eficiente nisso mesmo...

- Bobagem. Luc e Alart sempre falam como você é excelente com essas coisas de organização e decorações. O que aconteceu, Gaia?

- Nada. Eu só quero ir mesmo. Minha mãe...

- É adulta e sabe se cuidar muito bem. – Sunny interrompeu, imaginando inúmeras possibilidades do que poderia ter acontecido. Mas, não importava o quanto ela tentasse fazer a menina falar, no fim, ela não teve outra opção a não ser dar seu apoio á decisão da filha de Scylla que ela mais amava.

Com ajuda de Sunny, Gaia encontrou Alart, agradeceu pelo trabalho e a recepção ali, e se despediu. Ela voltaria para casa naquela noite, triste por deixar o trabalho que ela adorava fazer, mas sem coragem de enfrentar o que considerava um grave erro. Não vou

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dar a esse imbecil a chance de rir de mim por ter perdido a calma. Ele que vá lamber um penico! A última frase foi pensada como um grito tão alto que Luc ouviu do outro lado do palácio e sorriu largamente, o acalmando em meio a outra discussão com Les.

Seus irmãos olharam para ele sem entender nada, afinal Luc nunca abandonava uma briga.

Mais tarde, Luc e Lich chegaram juntos para o jantar, seus pais e seu irmão já esperando na mesa.

- E se você usar mais peças de... – Luc parou de falar, seu olhar passando rápido na mesa.

- Algum problema? – Lich perguntou, apenas testando sua teoria.

- Não. – Luc sentou em seu lugar habitual, em uma das cabeceiras da mesa. Seu pai na outra com Sunny do lado direito, Les e Lich do lado direito e esquero de Luc, duas cadeiras vazias entre depois dos irmãos.

Cinco... Lich começou a contar mentalmente, tomando cuidado para Luc não ouvir seus pensamentos.

Les abriu a boca para perguntar, mas Lich prevendo isso deu uma pisada sutiul por baixo da mesa. Com um simples olhar, Les entendeu que era pra ele ficar calado, embora não soubesse o motivo.

- Filho, precisa de ajuda na Corte amanhã? – Alart perguntou.

Quatro... Lich não era do tipo que sorria, mas ele sentiu que se soubesse como sorrir, teria feito isso agora com sua suspeita criando ainda mais força.

- Luc. – Alart chamou de novo, mas o filho mais velho parecia em outro mundo, seu olhar irritado.

Três. .. Dois... Um...

- Onde está a menininha? – Luc perguntou com seu péssimo humor característico.

- Se está se referindo à Gaia, que não é uma menininha faz tempo, - Sunny disse calmamente enquanto seu olhar cruzava com o de Lich que, embora não estivesse sorrindo, parecia que seu olhar estava, de alguma forma - ela foi embora.

- COMO É QUE É! – Luc levantou abruptamente, assustando a todo na mesa, menos Lich que estava calmo como sempre. Sua cadeira caiu com um baque violento no chão. –

COMO? PARA ONDE? – Ele disse, dando socos na mesa sem perceber, os talheres e pratos pulando na mesa.

- Garoto, se acalme. O que deu em você? – Alart perguntou, irritado, porém, acima de tudo, confuso. Luc era irritadiço desde bebê, não era novidade. Mas ele respeitava demais seus pais e nunca fizera nada parecido.

- Tiger. – Lich respondeu simplesmente.

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- QUE?! O QUE TEM ESSA PORRA A VER? – Luc bradou com aquela fúria que fazia as pessoas abaixarem a cabeça e o obedecer sem da nenhum pio.

Tranquilo e sem esboçar nenhuma reação, Lich esclareceu: - Gaia. Você perguntou para onde ela foi. Obviamente, para Tiger. Algo contra, irmão?

O tom de deboche sutil de Lich acendeu o alerta na mente impura de Les que abriu um sorriso gigante. – Merda... Errr... Desculpa mãe e pai.

Luc olhou para ele e todos pensaram que ele começaria uma briga como sempre, mas ele apenas se virou furioso e caminhou para a saída.

- Ei, rapaz! Onde pensa que vai? – Alart deu um passo para dar uma lição no filho, mas Sunny segurou seu pulso.

- Tiger. – Luc disse sem olhar para trás e saiu pisando duro como se o chão tivesse alguma culpa por sua raiva.

- O que deu nesse garoto? Eu vou...

- Calma, querido. Desconfio que sei o que deu nele. – Sunny disse e olhou para o caçula. – Lich.

- Sim, minha mãe? – Lich começou a colocar comida em seu prato, sem esboçar nenhuma emoção, o que às vezes era bem irritante.

- Fale.

Lich parou o que estava fezendo, arrumou perfeitamente os talheres a lado do prato, sem a menor pressa, e olhou para ela com aqueles olhos tão profundos que até Sunny às vezes se arrepiava. – Se refere ao surto do nosso próximo rei?

- Desembucha, menino! – Sunny se perguntou pela milésima vez de quem o filho tinha herdado aquela calma quase sobrenatural.

Lich voltou seu olhar para o prato e pegou os talheres. – Ele está apaixonado por ela.

- Gaia? – Les sorriu.

- Não. Por Kallisti. – Lich disse sério com seu deboche usual, enchendo uma taça com suco gelado. – É claro que é por Gaia, Les.

- Meu filho não veio me pedir conselhos, nada, mesmo sabendo como gosto dela... –

Sunny lamentou, sentindo-se a pior mãe do universo porque ela sempre desejou e fez de tudo para que seus filhos a procurassem para conversar sobre tudo. Claro que uma paixão estava no topo dessa lista.

Alart percebeu e agachou ao lado da cadeira dela, abraçando-a. – Amor..

- Não leve tão a sério, mãe. – Lich disse, agachando do outro lado da cadeira da mãe e lhe dando a taça. – Ele não percebeu ainda.

- Viu, amor. Nosso filho só é lerdo nessas coisas. Não é nada contra você. – Alart acariciou o rosto dela.

- Eu vou zoar muito o Luc! – Les disse.

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- Não vai não. – Sunny disse. – Deixa seu irmão em paz, Les.

- Eles se entendem, mãe. Não se estressa com eles. – Lich fez um carinho no rosto da mãe, levantou e voltou ao seu lugar.

- Como você sabia disso? – Les perguntou.

- Porque eu observo mais e falo menos. – Lich olhou sobre a borda da taça para o irmão que mostrou a língua pra ele, entendendo a indireta.

- Você acha que ele vai confiar em mim ou em você pra conversar? – Sunny sussurrou.

- Amor, nossos filhos nos adoram. – Alart respondeu.

- Mas... Eu quero que eles saibam que sou amiga deles, que eles podem confiar em nós. Não quero ser igual...

- Você não é nada igual àquele monstro, Sun. Você é excelente e nossos filhos confiam em você mais do que em qualquer outro. – Alart garantiu, temendo mais uma crise de insegurança materna dela que resultou em uma doença a anos atrás.

Alart beijou a mão dela e depois seus lábios, desejando poder transmitir a verdade em suas palavras.

- Eca! – Les brincou. – Adults beijando.

- Você é adulto, irmão. – Lich comentou.

- Mas eles são adultos-pais. Não deviam exibir essas coisas na nossa frente. Vai despurificar nossas mentes. – Les adorava uma zoeira.

- Você com certeza sabe mais dessas coisas do que eu e sua mãe, garanhão. – Alart riu da cara falsa de nojo de seu filho.

~o ⭐ o~

- Sarin, vamos. – Cassi chamou, fazendo Sarin quebrar o beijo.

Maia suspirou e deixou Sarin se afastar, voltando seu olhar para Cassi a poucos passos.

– Amanhã?

- Claro, querida. – Cassi esticou o braço e acariciou o rosto de Maia. – Não deixe de se hidratar. – Com um último beijo nos lábios de Maia, Cassi e Sarin foram embora.

- Ma!

A voz de Gaia soou alguns minutos depois na entrada do quarto.

- Gaia? O que aconteceu?

- Voltei pra casa. Só isso.

- Mas...

- Gaia, meu amor! – Scylla surgiu de um portal na porta do quarto, incapaz de se conter e esperar para ver a filha.

- Oi, mamãe. – Gaia a abraçou.

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Scylla e Maia sondaram, mas Gaia deu respostas evasivas, sem coragem de contar o que acontecera. Depois de algumas horas, Gaia começou a se sentir idiota por ter partido por tão pouco, mas não voltaria, com vergonha de qualquer forma.

Bom que não preciso mais falar com ele, afinal. Gaia pensou e Maia ouviu o pensamento da irmã, se mantendo indiferente por fora, porém mais atenta.

Com toda a sutileza possível, Maia sondou a mente de Gaia e entendeu quem era

“ele”. Não a surpreendeu. Ela e Gaia nunca foram próximas dos tri e sua irmã estava tendo problemas com Luc ultimamente. Mesmo assim, Maia guardou essa informação em seu íntimo.

Mais tarde, Aine estava na mesa de jantar sozinha quando um de seus atendentes se aproximou e sussurrou em seu ouvido uma informação.

- Traga-o até mim. – Ela disse e se voltou para outro servo que cuidava da mesa. –

Coloque mais um lugar, por favor.

Pouco depois Luc entrou e sua expressão furiosa a fez pensar que ele tinha brigado com Les de novo. – Luc! – Aine o abraçou e sorriu. – Senta aqui e janta comigo?

Luc se sentou mesmo sem vontade porque não dava para negar nada para Aine quando ela sorria docemente daquele jeito. Ele, no entanto, não aceitou nada, incapaz de comer ou beber nada, irritado.

- Brigou com o Les de novo? – Aine perguntou.

- Sua amiga, aquela irresponsável.

- Não sei do que está falando, Luc.

- Gaia! Ela me deixou sem ninguém para ajudar no trabalho e veio embora sem dar nenhuma satisfação!

- Espera um pouco aí. – Aine tomou um gole de sua bebida. – Gaia nunca foi irresponsável na vida e você sabe disso. Posso apostar que ela avisou a alguém que estava voltando. Se ela não falou com você, é porque você fez algo que a magoou.

- Aine, ela...

- Luc, eu te amo, mas você precisa dar um tempo. Não vou te deixar falar com ela assim. Você tem a mania de falar coisas sem pensar quando está com raiva e não vou contribuir com isso. Respire, beba algo e depois vamos conversar com Gaia.

Luc sentiu que ia explodir. No fundo ele sabia que Aine tinha razão, mas saber disso só o deixou mais irritado. Ele aceitou o conselho da amiga com muita dificuldade e, com a pausa, se acalmou mais até conseguindo comer algo.

- Amon, isso é meio ilógico. – Gaia riu alto com as bobagens que o rapaz falava.

Scylla observou eles de longe enquanto virava um espeto de carne assada na brasa que Maia cuidava perto dela. Scylla abençoou mentalmente o rapaz por tirar aquele olhar triste dos olhos de Gaia desde que a moça voltara.

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- Que bom que ela está mais feliz. – Maia comentou, de costas para a mãe, acrescentando outras carnes na brasa. – Gaia parecia tão triste..

Scylla sentiu uma alegria quase eufórica por ver o quanto Maia tinha mudado. A Maia de antes nunca iria se sujar com fumaça para preparar comida para ninguém. – Sim. Ele é um bom rapaz.

- É sim. E beija muito bem.

Scylla arregalou os olhos. – Maia...

- O que? – Maia virou para a mãe com olhos divertidos. – A gente trocou uns beijinhos em uma festa a muitos anos. Nada demais.

- Eu gostaria de ter um genro como ele.

- Quem sabe, mãe. Espero que sim. Ga merece um rapaz legal e louco por ela. – Maia viu Aine chegando pelo outro extremo do quintal, mais perto de sua irmã. Scylla seguiu o olhar de Maia e estranhou a presença de Luc.

- Você é...linda...e... – Amon ficou nervoso, mas decidiu que não ia mais esperar. Ele aproximou seu rosto do dela lentamente, pronto para beijá-la.

Gaia fechou os olhos e se aproximou devagar dele.

BAM!

O casal quase pulou de susto com o baque. Luc pisou tão forte com um pé que sua perna chegou a tremer por dentro, em um tipo de choque, mas nada perto da dor que ele sentia no peito, como se tivesse sido traído. Aine olhou para ele sem entender nada.

- Lucius? – O choque de Gaia era visível.

- Como se atreve? – Luc praticamente rosnou.

- Hã? – Gaia não entendeu nada. Porque ele estaria tão nervoso só por ela ter ido embora?

- Você não tem verg....

- Ei! Vê lá como fala com ela. – Amon tomou a frente de Gaia.

- Sai. Da. Minha. Frente. – Luc colocou a mão no cabo da espada, seus pelos eriçados.

- Parem com isso. – Scylla se aproximou.

- Luc. Pare. Se acalme ou vamos embora. – Aine disse, mas, pela primeira vez, a voz dela não o ajudou em nada.

- Eu vou levar ela de volta. Ela tem responsabilidades! – Luc olhou para Gaia que tentava sair de trás de Amon.

- Minha irmã vai se ela quiser. – Maia disse. – Você não manda nela.

- Vamos, Gaia. Agora. – Luc só queria tirar ela de perto de Amon, embora ele não fizesse ideia do porque.

- Você é surdo? Ela não vai com você. – Amon disse.

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- Luc! – Aine estava pronta para dar um soco no amigo pra ver se ele deixava de lado o modo idiota.

- Gaia. – Ele olhou diretamente pra ela e sua raiva pareceu se acalmar um pouco, substituída apenas por uma dor que ele não sabia explicar. Não vou viver sem você por perto, amor.

- Luc, vá para casa. Depois vocês conversam. – Scylla disse quando captou o pensamento que ele mesmo nem tinha percebido.

- Vamos conversar. – Gaia disse com autoridade, surpreendendo a todos. – Mas se bancar o idiota, vou enfiar esse espeto no seu olho.

Luc sorriu com a impaciência dela, apesar de ainda se sentir terrível e confuso.

Interessante. Maia pensou.

~o ⭐ o~

Aine foi deitar depois que Luc foi embora com a promessa de Gaia que voltaria para o reino leonino no dia seguinte e dele sobre algo relacionado ao jeito que e ele a tratava.

Nenhum dos dois deu mais explicações e Aine começou a se perguntar se Luc gostava de Gaia depois do óbvio ciúme dela com Amon.

No meio da madrugada ela acordou com a sensação de ser observada. Era uma sensação comum a anos e nunca tinha ninguém, então ela apenas virava para o outro lado e dormia se sentindo segura e protegida de qualquer coisa no universo. Mas naquela noite ela sentiu saudade de conversar com seus amigos, então usou seu comunicador para chamar o único deles que estaria acordado a essa hora. Mas Lich não atendeu. Ela se levantou, foi até o banheiro e voltou para a cama onde seu comunicador brilhava com a cor definida para Lich.

- Oi. Pensei que você estava dormindo. – Aine disse.

- Não. Estava exercitando minha magia. – Ele respondeu e não deixava de ser verdade.

– Aconteceu alguma coisa?

- Não. Só aqueles momentos da madrugada. Ah, bem, mais cedo Luc esteve aqui. Ele surtou com Gaia. Acho que ele estava com ciúme.

- Ela vai voltar? – Lich desconversou, não querendo entregar os sentimentos do irmão que ainda nem os tinha percebido.

- Sim. Amanhã. – Aine respondeu e passou a contar várias coisas sem importância, relaxando em sua cama.

Lich tirou o manto que usava na rua, trocou de roupa e guardou uma peça íntima bem dobrada em uma caixa feita com ossos Tiger, cheia de roupas íntimas, algumas de anos atrás e a trancou de novo com sua magia, passando a mão com uma carícia sobre a tampa,

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sentindo-se finalmente tranquilo e satisfeito. Eles conversaram por mais alguns minutos, até ela se despedir para ir dormir.

~o ⭐ o~

Jamais devemos esquecer da máxima: aqueles que mais conhecemos são os que mais podem nos surpreender. Quando você lembrar disso, vai aprender a ver os sinais de que alguém esconde algo que você precisa saber.

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Capítulo 07

Me diga. O que você deseja deixar como legado quando você se for? Pelo que você quer ser lembrado? Nunca pensou nisso? Pois deveria. Grande parte dos vilões não existiriam se tivessem se preocupado com isso desde o início de suas vidas ao invés de pensar apenas nos ganhos que poderiam obter em sua curta existência.

~o ⭐ o~

Os magos responsáveis por abrir e fechar os portais costumam receber mensagens de seus colegas sobre quem quer atravessar e se a viagem é permitida. Quando o mago responsável pelo portal norte do palácio leonino recebeu a mensagem solicitando a viagem, ele não estranhou a visitante. Embora não fosse comum ela ir até ali, ela tinha uma parente próxima para isso. A única coisa estranha foi não ter usado um portal aberto por sua mãe, a única com permissão para abrir e fechar portais sem tanta burocracia.

- Obrigada, senhor.

- Bem vinda, jovem lady.

Caminhando a passos firmes, ela seguiu até o local indicado e facilmente o encontrou na piscina longa e funda, nadando como se tivesse nascido dentro da água. Ela cruzou os braços e ficou de pé a alguns passos. Quando ele ergueu a cabeça no extremo oposto da borda da piscina, ficou surpreso ao vê-la com um vestido longo, florido, leve e um decote profundo.

- Maia? – Luc comentou surpreso.

- Precisamos conversar. – Maia disse simplesmente e ele, como se fosse em um reflexo, nadou até ela e saiu da piscina.

A água escorreu por seu corpo enquanto ele se virou e pegou uma grande toalha para se secar. – Sua irmã está...

- Sei onde ela está. – Maia cortou, atraindo sua atenção. – Vamos conversar primeiro.

- Certo. – A curiosidade de Luc foi atiçada e quase não conseguiu evitar olhar a parte à mostra dos seios dela no decote. – O que você quer?

- Para começar, que pare de olhar meus peitos. – Maia disse e só então ele percebeu que não tinha evitado tão bem assim. – Depois, pare de infernizar a vida da minha irmã.

- Gaia é bem grandinha, não acha?

- Não interessa. Se você bancar o idiota com ela, não darei a mínima pra quem você é.

Vou chutar suas bolas com tanta força que até seus ancestrais vão sentir a dor.

- Em minha defesa...

- Não dou a mínima pra sua defesa. – Maia lançou um olhar assassino. – O recado está dado.

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Maia jogou os cabelos sobre os ombros, se virou e saiu, deixando Luc ali surpreso, confuso, intrigado e olhando a bunda de Maia sem nem perceber.

~o ⭐ o~

- Mãe, tem certeza disso? – Aine perguntou.

- Sim, bebê. – Ane respondeu, fechando uma mala que tinha mais livros do que roupas. – Eu não consigo olhar para as paredes, os tapetes, esta cama, os talheres.... Tudo me lembra Cali e... Não consigo. Eu sei que devia ser forte, mas eu sou apenas uma leonina, filha.

- E seu povo é tão forte quanto o meu, mãe. Mas te entendo. Cada canto do palácio, da cidade, do reino todo me lembra a vovó. Mas eu fui treinada a vida toda para viver depois que a vovó fosse para o outro lado da vida. E até pra mim é difícil. – Aine suspirou. –

Se é o que a senhora precisa pra viver em paz, eu apoio, mãe.

Ane abraçou a filha, sabendo o quanto seria difícil se afastar dela.

- Prometa que vai se comunicar comigo todos os dias... E que vai arrumar logo um namorado.

- Mãe... – Aine revirou os olhos e sorriu.

- Não me julgue. Eu quero carregar meu neto no colo, Aine. Ou vai esperar eu morrer para só depois ter um pequeno Tiger?

- Exagerada. – Aine riu e deu um beijo no rosto da mãe.

Mais tarde, Scylla abriu um portal e levou Ane para a casa que Hieron construíra no terreno onde antes ele, Ane e Ciara tinham vivido. Agora, seu novo lar e onde planejava viver o resto de sua vida.

~o ⭐ o~

- Ma?

- Oi, irmã. – Maia abraçou a irmã por trás, deu tirou uma caixinha do bolso, pegou a mão de Gaia e colocou um lindo anel de pedra cinza claro, com pontinhos azuis brilhantes que pareciam pequenas estrelas no interior, no dedo dela.

Gaia olhou para sua mão fascinada com o solitário simples, elegante e lindo, exatamente como ela gostava. – É....lindo!

- Achei a sua cara e não resisti.

- Ma, você não precisava gastar comigo...

- Se eu não mimar minha irmã mais velha, quem vai? – Maia sorriu e Gaia virou de frente para dar um abraço apertado nela.

- Devia ter me avisado que estava vindo. Eu teria planejado algo pra gente fazer hoje.

- Não precisa, já estou voltando.

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- Mas, já?

- Sim. Só vim te entregar isso. Não aguentei esperar. – Maia conversou por alguns minutos com a irmã e foi embora, deixando sua irmã emocionada com o gesto incomum, pois Maia só dava presentes em datas festivas, mesmo assim, coisas que tinham mais a ver com ela do que com quem era presenteado.

- Lindo anel. – Luc disse, sem mesmo levantar a cabeça para olhá-la quando ela entrou em seu escritório, focado em seus papeis.

- Como você viu? – Gaia perguntou, confusa já que estava com as mãos ocupadas e o anel não estava a vista.

- Vi sua irmã te entregando. – Ele respondeu simplesmente.

- Mas...Não tinha ninguém nem perto.

- Eu estava na janela no segundo andar. – Luc disse e colocou seu selo, aprovando outra parte do projeto enquanto Gaia pegava duas xícaras de chá quente.

- Estava me observando? – Ela perguntou meio brincando....meio curiosa.

Luc, percebendo que tinha falado demais, gaguejou: - Eu...Na erdad...de... É...Bem..

Você tomou uma decisão sobre as cores das paredes do abrigo comunitário?

Gaia ficou estática por um minuto, tentando entender o que estava acontecendo, mas decidiu pensar nisso depois. Ela entregou uma xícara para ele, o surpreendendo pelo gesto gentil já que ele tinha sido um idiota com ela. – Sim.

Luc pegou a xícara, olhou sem ver seu conteúdo e pousou o objeto na mesa sem beber. – Me perdoe.

Gaia que bebia seu chá, já focada no trabalho, sentiu o líquido dar um nó na garganta e começou a tossir engasgada. Luc se assustou, deu a volta na mesa correndo, agachou ao lado de sua cadeira e tentou ajuda-la. Gaia se acalmou, sem ar e com lágrimas nos cantos dos olhos.

- Você...você está bem? – Luc soou desesperado.

- Você...acabou de...pedir perdão?

- Isso é tão surpreendente assim? – Ele perguntou e, para sua surpresa, não estava irritado como sempre estava com tudo.

- É. Você sempre foi orgulhoso demais pra pedir desculpa por qualquer coisa. Mas perdão? Isso vindo de você parece tão....impossível.

- Eu... – Luc passou a mão na nuca, nervoso, as palmas de suas mãos suando. – Sei que você não merecia minha atitude deplorável... Eu não queria magoar você... Eu nem estava bravo com você.

- Então com o que você estava bravo? – Gaia perguntou.

- Eu... – A resposta o atingiu como um soco em sua mente.

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Gaia ficou preocupada pela expressão dele, parecendo meio perturbado. Ela colocou uma mão em seu rosto, querendo tranquilizá-lo. – Está tudo bem, Luc. Desde que você cumpra nosso acordo de ser profissional, por mim está tudo bem. Fique calmo.

A gentileza dela, a paciência com ele que não era o ser vivo mais fácil de lidar no mundo, era tocante. Sem pensar muito no que fazia, seguindo um impulso, ele cobriu a mão dela em seu rosto com a mão dele, se aproximou e a beijou. No início Gaia estava surpresa demais para reagir, mas logo, sem pensar, ela retribuiu.

Parece tão....certo. Luc pensou antes de relutantemente se afastar ouvindo a voz nada sutil.

- E eu comprei aquela arma de ataque marinh... Oh, Gaia, não sabia que você estava aqui. – Les disse com seu olhar brincalhão, deixando bem claro que ele vira o que aconteceu e atrapalhou de propósito só para encher o saco de seu irmão.

- Les. – Luc disse em tom de aviso.

- O que, irmão querido? – Les piscou como uma virgem apaixonada, fazendo Gaia esconder um risinho com a mão.

- O que você quer? – Luc perguntou de mau humor.

- Gaia. – Les disse com um ar triunfante quando Luc ficou visivelmente irritado. – Gaia, milady gentil. Você poderia me ajudar a organizar o design do quartel?

- Você que organize! – Luc disse sem pensar.

- HAHAHAHAHA! – Les saiu rindo, desviando habilmente de uma estatueta de bronze que Luc jogou nele.

- Idiota. – Luc murmurou.

Mais tarde, Luc sentou no mirante que mais gostava no palácio. Ele não dissera ou chamara ninguém, mas sabia que logo quem ele precisava apareceria.

- Posso? – Lich sinalizou com uma mão enevoada, se materializando ao lado do irmão, pedindo para se sentar com ele.

- PUTA MERDA! – Luc gritou e deu um pulinho no sofá de dois lugares.

- Vou entender isso como um sim. – Lich, agora plenamente materializado, tirou o manto com caveiras de felinos nos ombros e símbolos necromantes estampados no tecido.

Mesmo cansado, durante o jantar ele sentiu que Luc precisava conversar e, sem conseguir adiar, foi praticar um ritual necromante e voltou o mais rápido que pôde para encontra-lo.

Luc ficou em silêncio por um tempo, organizando o caos em sua mente, mas a paz estranha em seu coração. – Eu preciso de um conselho.

- Les estava aqui a noite toda. – Lich disse, mesmo que soubesse que seus irmãos sempre o procuravam para pedir conselhos.

- Nem vou comentar. – Luc deu um empurrão de leve no ombro do outro e riu. Lich não riu. Nunca ria. Mas, de alguma forma, ele, seu irmão, Aine, seus pais e Calíope sempre

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sabiam quando ele ria por dentro, na mente, ou fosse lá onde fosse que ele ria. – Não ria. –

Lich ergueu uma sobrancelha pra ele. – Ok, comentário idiota.

- Diga de uma vez.

- Acho que...eu...eu estou...meio que...talvez...acho...

- Lucius. Você vai terminar alguma frase?

- Acho que estou apaixonado.

- Gaia já sabe? – Lich esticou as pernas e colocou os pés sobre a mesa de centro.

- Eu não disse, mas nós... Espera. Como você sabe que é Gaia? Como sabe que estou...

– Luc se sentiu um idiota porque se tinha alguém que sabia o que os irmãos sentiam ou precisavam esse alguém era o caçula. – Você já sabia.

- Sim.

- A quanto tempo?

- Desde o aniversário de Maia a mais de um ano.

- O que?! – Luc pensou sobre isso e realmente ele vinha se sentindo diferente sobre Gaia, mas achava só que ela era mais irritante. – Eu só pensei que ela estava me irritando mais...

- Você sempre briga com quem ama. – Lich disse simplesemente.

- Eu não!

- Irmão, você não sabe lidar com sentimentos calmos, por isso você reage brigando, sendo possessivo, ciumento. Lembra quando você deu um soco naquele garoto da nobreza Tiger que queria ser meu amigo?

- Mas você não dava a mínima pra ele.

- Eu não dou a mínima para praticamente ninguém. Esse não é o ponto. Você não briga comigo porque sabe que não reajo brigando como Les. Nem com a Aine porque ela é adorável demais. Com nossos pais você sempre foi meio rebelde. É seu jeito de amar. Você ou cria conflitos bobos ou é ciumento.

- Ela vai rir de mim se eu contar que gosto dela.

Luc nunca foi inseguro e vê-lo assim deixou Lich incomodado. – Ela riu quando você a beijou?

- Não, mas....Como você sabe que eu beijei ela?

- Você entrou praticamente saltitando na sala de jantar e com um sorriso besta na cara. Deduzi e você acabou de confirmar. – Lich deu de ombros.

- Irmãozinho, eu te adoro, mas às vezes você é assustador. – Luc riu alto. – Não, ela não riu. Mas eu não sei... Ela me deixa inseguro... Como vou saber se a amo mesmo ou se só estou maluco?

- Fácil. Observe a si mesmo.

- Como assim?

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- Você treme por dentro quando a vê?

- Sim.

- Suas mãos suam sem motivo, você se sente eufórico e em paz ao mesmo tempo, seu coração parece pular na garganta, você quer vê-la sorrir o tempo todo porque isso te deixa em êxtase, tudo te lembra ela até mesmo as coisas mais improváveis, - Lich tinha um olhar distante como se não lembrasse mais que Luc estava do lado - toda hora você pensa nela como uma obsessão, seu coração bate mais rápido ao pensar nela, o ambiente parece ficar mais iluminado quando ela entra...

- Sim.

- Então você a ama.

- Lich, eu sei que você é o conselheiro dos tri, mas... Pode procurar a gente quando quiser se abrir, mano.

- Eu sei. – Lich olhou para ele sem entender porque o irmão estava dizendo aquilo.

- Então... Quem é ela? Ou ele? – Luc perguntou.

- Não entendi.

- Irmão, eu posso ser explosivo, mas não sou burro. – Luc se xingou mentalmente por não ter percebido antes, mas a forma como Lich falou sobre os “sintomas” do amor não era apenas teórico. Seu irmão estava apaixonado por alguém e não era algo novo.

- Um dia, Luc. Um dia. – Lich se levantou e saiu andando, cansado demais para sair com sua magia enevoada.

~o ⭐ o~

- Todas mortas?! – Aine se remexeu no trono.

- Infelizmente, sim. – Scylla disse.

- Eu não entendo... Como ninguém percebeu? – O conselheiro, um homem jovem, pouco mais velho do que Aine, perguntou.

- Harpias? – Aine perguntou.

- Possivelmente. – Scylla respondeu.

- Quando foi a última vez que tivemos notícias delas? – O conselheiro perguntou.

- Pouco antes da viagem de Maia. – Scylla disse.

- Então, Maia foi uma das últimas pessoas que viram as sacerdotisas dos templos dos Aneis e das Luas vivas?

- Possivelmente, ela, Cassiopeia e Sarin foram as últimas. Não haviam viajantes depois, exceto os que as encontraram hoje cedo. – Scylla esclareceu.

- Precisamos interroga-las, majestade. – O conselheiro disse.

- Sim. – Aine se voltou para Scylla. – Desculpe, mas é necessário...

- Eu sei. Vou convoca-las logo cedo.

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- Algo mais? – Aine perguntou, vendo o incômodo na face de Scylla.

- O tempo.

- O que? – Aine não entendeu.

- O tempo não bate. Não sei o que significa, mas, não bate. Assim como as marcas e formas de ataque não batem com as características das harpias. – Scylla disse.

- Vamos manter isso entre nós por enquanto. – Aine dispensou os outros, ficando sozinha com Scylla. – Maia vai nos ajudar com suas impressões sobre o que viu.

- Sim. – Scylla respondeu, sua mente já trabalhando nos inúmeros possíveis cenários futuros.

~o ⭐ o~

Maia estava deitada com os olhos fechados. De repente, ela os abriu e um sorriso doce se formou em seu rosto. Você está aí? Ela enviou a mensagem telepática.

Sempre. Cassi respondeu. Funcionando?

Sim. Com perfeição.

Assim como sua beleza, querida. Cassi disse, satisfeita.

Quando posso ir?

Em breve, linda. Enquanto isso, se prepare e cuide-se. Precisamos de você em plena forma.

Maia levantou ao ouvir uma batida na porta. – Entre.

- Oi, querida. – Scylla abraçou a filha.

- Oi, mãe.

- Janta comigo hoje?

- Claro. – Maia se levantou, arrumou o vestido e seguiu a mãe.

Amanhã eu conto. Não quero estragar esse sorriso doce no rostinho dela. Scylla pensou e deixou de lado o problema para não fazer Maia sofrer pela morte das sacerdotisas que ela com certeza tinha se aproximado na viagem.

~o ⭐ o~

E a questão que deixo hoje é: pelo que você quer ser lembrado? Pense nisso e veja como sua vida vai ganhar um sentido novo, uma função maior em sua forma de agir e pensar.

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Capítulo 08

Lutar contra alguém que já foi tão querido é sempre doloroso. Especialmente quando percebemos que nunca tivemos a mesma importância para essa pessoa que demos a ela.

Mas, quando existem coisas ameaçadas por nossos antigos “amigos”, a dor é rapidamente substituída pela raiva...

~o ⭐ o~

No dia anterior, Luc fora até Scylla, tremendo como uma criança sem pelos no frio das montanhas. Lich que estava em Tiger no momento, foi para a reunião dando apoio moral ao irmão que, embora visivelmente aliviado, tinha garantido que não precisava, sempre orgulhoso. Scylla se sentou em sua sala de visitas no templo, atrás de sua mesa, com Luc sentado na cadeira à frente, Lich um pouco atrás dele. Luc sentou ereto, ombros para trás, orgulhoso, mas o tremor era visível.

- Eu queria...eu quero... Eu quero...ér...

- Dizer. – Lich disse calmo atrás do irmão que parecia ter esquecido até como respirar.

Scylla se mantinha tranquila, mas com um olhar firme e duro, internamente se divertindo com a situação.

- Dizer...isso...quero dizer.

Scylla colocou os cotovelos na mesa, cruzando as mãos e as apoiando sobre o queixo, observando com cara de poucos amigos.

- Dizer que... – Luc coçou a nuca. – Eu gosto da sua...sua....é ela...sua...

- Filha. – Lich disse.

- Filha, isso... Sua filha. Pronto. Eu disse.

- Gosta? – Scylla perguntou com a mesma expressão irritada.

- Eu...acho...que...eu. Não. Eu sei que amo. Amo sua filha. – Luc disse.

- Você está me dizendo que ama Maia? – Scylla perguntou divertida, só para deixar ele mais nervoso.

- Não! Nunca! – Luc disse e logo se corrigiu. – Não que Maia não seja linda. Não me entenda mal. Eu só não...não é...

- Ela. – Lich disse no mesmo tom calmo e deu um olhar significativo para Scylla, entendendo o que ela fazia.

- Ela. Isso. Não é ela. É Gaia. Eu amo sua filha Gaia. – Luc sentiu até seus pés suarem.

Scylla, de pura maldade, levou quase um minuto encarando Luc com uma expressão digna de vilão assassino, mas Luc sustentou o olhar dela, decidido.

- Respire, garoto. – Scylla disse, relaxando a expressão enquanto encostava na cadeira e Lich balançava a cabeça.

Luc soltou o ar que nem percebia que estava segurando. – Então... A senhora aprova?

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- Se eu disser que não você vai desistir? – Scylla perguntou.

Que maldade, tia. Lich pensou.

- Nunca. – Luc disse sem pensar duas vezes. – Não se ofenda, tia. Mas não posso desistir dela, nem mesmo a seu pedido.

- Não me ofendi. Só tem uma coisa que não entendo.

- Pergunte, tia. – Luc disse, se preparando para um longo interrogatório maternal.

- Porque você demorou tanto para entender o óbvio? – Scylla sorriu.

- Ein? O que? A senhora sabia?

- Luc, meu garotinho explosivo, eu sou a maior telepata viva neste mundo, lembra?

Luc finalmente percebeu que seu irmão não parecia nada surpreso. – Você sabia.

- Claro. – Lich disse simplesmente.

- E porque não me contou? – Luc perguntou.

- Porque você não perguntou. – Lich disse calmo como sempre e se virou para Scylla. –

E sobre o que eu falei, tia?

- Claro, claro. – Scylla abriu a gaveta e tirou uma caixa pequena. – Gaia adora aquela torta horrível de cabeças de peixe. Use este tempero. Eu que fiz a um tempo. Uma receitinha secreta. Ela vai adorar.

- Obrigado... – Luc conseguiu dizer, então estendeu a mão para ela.

Scylla a apertou com uma força que ele nunca imaginara que aquela senhora tivesse. -

Luc, por enquanto você tem minha bênção, mas olhe errado, respire errado em direção à minha filhinha e vou usar minha adaga pra cortar essa coisa que você tanto gosta no meio das suas pernas. – Scylla disse e, apesar do sorriso, seu olhar deu tanto arrepio em Luc quanto o olhar de seu irmão mais novo.

No dia seguinte, Luc pediu ajuda de seus irmãos para fazer “tudo do jeito certo”, de acordo com ele mesmo. Lich sabia que Gaia morria de medo dele. Tudo bem. Muita gente morria de medo dele. Então deixou um recado avisando que ela não devia passar perto dos jardins naquele dia, pois estaria fazendo um ritual necromante arriscado. Gaia nem perguntou nada, nem desconfiou, supondo que ele havia mandado o mesmo aviso para todos. Les saiu com o irmão mais velho para escolher um presente, ajudar na decoração, enquanto Lich cuidava no menu e fiscalizava as cozinheiras para que nada desse errado, seguindo todas as coisas que ele investigara sobre os gostos dela. O que não precisou de muito porque, surpreendentemente, Luc sabia muito sobre Gaia só de observar ela durante anos.

Como ele não percebeu antes o que sentia? Lich se perguntava o tempo todo.

Assim, um dos mirantes preferidos de Luc foi todo decorado com vasos de flores amarelas e azuis, uma mesa grande com alimentos leves, queijos-de-peixe, vinho, cubinhos de carne semicrua temperada, doces e uma torta recheada com cabeças de peixe, usando

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aquele tempero de Scylla. No centro do mirante, havia uma mesa pequena, com duas cadeiras estofadas, flores no centro, velas rosas, e todo o mirante com iluminação baixa, com velas em enfeites pequenos e redondos flutuando com magia decorativa.

Quando Gaia chegou, havia um lindo vestido azul sobre a cama, com um bilhete pedindo que ela o usasse e comparecesse no mirante no centro do jardim. Sem entender nada, chateada porque, depois do beijo, Luc desaparecera por dois dias, nem mesmo indo no escritório do palácio, deixando o trabalho todo para ela e Alart. Ela tomou banho, colocou o vestido, o anel que Maia lhe dera e prendeu o cabelo num coque alto, meio desleixado, simples, mas com um charme inegável. Pensando em pedir para alguém avisar à Sunny, que ela achava ter enviado o vestido, que não poderiam se reunir ali por causa da mensagem de Lich, ela abriu a porta e soltou um grito de susto.

- Lich. – Gaia colocou a mão no peito, quase tendo um troço.

- Vamos. – Ele disse simplesmente.

- Eu...eu não vou lá. Vou avisar, pode ficar tranquilo.

- Vamos. Agora. – Lich disse com aquela autoridade na voz que fazia todos lhe obedecerem automaticamente.

- Ta..ta...bom... – Gaia aceitou, tremendo visivelmente.

Lich caminhou ao lado dela. – Relaxe, garota. Não mordo.

Gaia ficou sem graça, mais ne, e começou a roer as unhas, um hábito horrível e persistente. Quando ela finalmente decidiu o que responder, ela ficou muda, com seus olhos sendo atraídos para o lindo mirante decorado e Luc vindo em sua direção, lindo como sempre.

- Entregue. – Lich comentou antes de se virar e sair.

Luc levou Gaia para o mirante, segurando delicadamente sua mão. O nervoso dele diante de Scylla nem se comparava ao seu grau de nervosismo ali. Eles jantaram, conversaram sobre coisas aleatórias, Gaia riu muito com as histórias de Luc, o que a surpreendeu porque ele nunca pareceu ser do tipo engraçado. Ele não era. Mas com ela parecia mais fácil, natural, ser bem humorado. Depois de horas de um jantar tranquilo, ele pegou sua mão.

- Eu, sabe, a gente... – Luc respirou, contou até três e recomeçou. – Isso não está certo.

Confusa, Gaia viu ele se levantar de sua cadeira, ajoelhar ao lado da dela, virá-la de frente pra ele, segurar sua mão e dizer numa voz trêmula. – Gaia eu gos...Não. Eu amo. É

isso. Amo você. E...bem...eu não sou o mais doce, mais gentil, mais fofo, mais calmo dos felinos, e eu tenho um gênio terrível... Eu não to facilitando ne? – Ele disse e ela escondeu um risinho com a outra mão. – Mas, você poderia me dar uma chance? Sabe....a gente poderia...

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Gaia engoliu a vergonha que sentia, tentando lembrar do que sua mãe faria, e, com uma grande dose de coragem, segurou o rosto dele com uma mão e o beijou. – Sim.

Aquela única palavra tirou um peso dos ombros de Luc e ele a beijou como se o mundo estivesse acabando. Quando finalmente quebrou o beijo, ele colocou um colar de ágatas de um azul anil no pescoço dela. – É lindo... – Ela suspirou. – Mas você não precisa me dar joias...

- Preciso. Gosto de ver você usar coisas que eu lhe dei. – Ele disse com orgulho e ela revirou os olhos.

- A gente só....você sabe...pode deixar isso entre nós por enquanto. – Gaia perguntou, precisando se acostumar com a atenção que aquilo iria trazer para cima dela.

- Bem, tirando meus pais, meus irmãos, Aine e sua mãe...

- ESSE POVO TODO SABE?

- Sim, amor, sabe. Minha mãe quase ficou sem falar comigo porque eu contei primeiro pra sua mãe e meus irmãos. – Luc riu e repentinamente se sentiu inseguro. –

Mas...então...posso te chamar de minha namorada ne?

- CLARO, NE, IDIOTA! – Les gritou de trás da moita onde se escondera esse tempo todo, arrastando Lich para mais uma armação dele.

- LESAT, SEU...SEU...SAI DAQUI, SUA BESTA! – Luc jogou um cubinho de carne no irmão que saiu correndo e gargalhando. – SEU DOENTE!

Lich saiu tranquilamente, limpando os pedacinhos de folhas na roupa. Do nada ele se virou para Gaia ainda sentada, sorrindo enquanto Luc, próximo da grade de mármore jogando coisas em Les e gritando com ele. Gaia quase gritou quando Lich voltou aqueles olhos assustadores dele pra ela. – Desculpe. Alguém tinha que controlar Les. Com licença. –

Lich se transformou em uma névoa negra e voltou para dentro do palácio.

~o ⭐ o~

- E ela contou tudo? – Sarin perguntou, massageando as costas de Maia.

- Uhum. Tudo. Gaia nunca foi do tipo que guarda segredo da gente.

- Lucius contou pra sua mãe sobre sua visita. – Cassi disse, observando as duas, sentada um pouco mais distante.

- Fofoqueiro. – Maia comentou.

- Foi meio sem querer. Ela falou sobre arrancar a genitália dele se ele não se comportasse direito com sua irmã e ele lembrou da sua visitinha. Claro, ela captou o pensamento e tirou a história a limpo. – Cassi disse.

- Isso explica o comportamento carinhoso dela comigo esses dias. – Maia comentou, sentou na cama e deu um beijo apaixonado em Sarin. – Obrigada. Podemos começar logo com isso? – Maia perguntou para Cassi.

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- Só mais um pouco de paciência, querida. – Cassi se levantou e segurou o queixo dela, antes de lhe dar um beijo.

~o ⭐ o~

- Obrigada por me deixar ver suas memórias. – Scylla comentou.

- Sabe que eu não te nego nada, tia. – Les disse, sempre feliz por fazer parte dos planos de Scylla.

- Foi lindo. Fico feliz por ela.

- Ela já te contou o que aconteceu?

- Não. Eu estive ocupada nas investigações do caso das sacerdotisas. Quando finalmente pude descansar hoje, era muito tarde e ela já estava dormindo. Mas acho que contou pra Maia.

- Como Maia está?

- Triste com a morte das sacerdotisas. Ela já as considerava amigas, irmãs até. A relação dentro dos templos se torna muito próxima em pouco tempo. Mas Cassiopeia e Sarin têm feito um ótimo trabalho a consolando.

- Ela ainda não conversou com a senhora sobre elas?

- Não e não quero perguntar. Já é difícil para minhas filhas terem crescido com uma telepata forte em casa, com suas privacidades sempre em risco...

- Você nunca invadiria a privacidade delas, tia.

- Eu sei, mas, mesmo assim... – Scylla suspirou. – Vá, garoto. Você já fez muito por hoje. – Scylla abriu um portal, deu um beijo na testa de Les e o enviou pelo portal até o lugar para onde ele costumava ir misteriosamente. Scylla desconfiava do motivo, mas não queria ser intrometida. Se ele precisasse, ele sabia que podia contar com ela.

~o ⭐ o~

Por algumas semanas, nada mudou. Até que, em uma noite, Gaia finalmente cedeu bateu na porta de Luc. Ele abriu e a olhou surpreso. Ela nunca aceitara mais do que uns amassos e sempre longe dos outros por sua timidez. Mas, quando ele pensou em perguntar algo, ela o beijou e então sua outra cabeça, aquela de baixo, assumiu o controle de seus pensamentos.

Luc fechou a porta decidido a tornar aquela a noite mais maravilhosa de suas vidas.

Lich ouviu os sons bem característicos enquanto passava do lado de fora do porta do irmão.

Por um lado ele ficou feliz pelo casal, por outro ele quis dar um soco em Luc porque, ouvir aquilo fez seu controle já fraco sobre sua compulsão quebrar de vez.

- Eu preciso ir... – Ele sussurrou ao mesmo tempo que tentava se controlar para não decepcionar seu pai de novo. Só uma vez...só mais uma vez. Lich só voltou para casa depois

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que o sol tinha nascido, se sentindo culpado e revigorado, energizado, pronto para qualquer coisa.

~o ⭐ o~

- Todas mortas do mesmo jeito. – Scylla disse. – Não tenho dúvidas de que foram harpias. Mas, de acordo com os depoimentos das meninas e o que vimos, não entendo como elas atacaram assim. Harpias não são fortes desse jeito. Não o suficiente para acabar com todas as sacerdotisas de todos os templos dos Aneis sem chamar atenção de ninguém, sem que nenhuma escapasse. Não faz sentido.

- As memórias de Maia, Cassiopeia e Sarin não mostraram nada incomum. – Aine deu um laço na fita que fechava seu decote. – Quais as opções aqui?

- Difícil dizer. Os arquivos não mencionam nenhum caso parecido. Nada que posso nos guiar. Vou ter que analisar os arquivos mais antigos, da época do pré-reino.

- Tão longe no tempo? Os arquivos são muito velhos... Eles vão resistir a mãos os folheando?

- São arquivos mantidos por magia. Não é garantia de manter totalmente a salvo, mas ajuda e é nossa melhor opção. Pensei em pedir a sua mãe para analisa-los. Ela sempre foi boa com isso e confio nela.

- Boa ideia. A mamãe vai adorar ter algo para ocupar a mente.

Mais tarde a notícia de uma pessoa morta no litoral chegou aos ouvidos de Aine ao mesmo tempo em que Scylla e sua assistente entrava com expressões tensas.

- O que houve? – Aine perguntou preocupada.

O mensageiro que havia levado a notícia para Aine, saiu discretamente para dar privacidade às mulheres.

- Outro ataque de harpia. – Scylla disse, sem rodeios.

- Deixa eu advinha... – Aine disse. - No litoral?

- Sim... – Scylla olhou para o mensageiro que já estava na porta. – Entendo. Uma de nossas sacerdotisas sentiu uma mudança na magia de detecção esta madrugada, mas foi tão sutil que ela só percebeu analisadando duas vezes as informações antes de sair para descansar.

- Tem mais alguma coisa, não é?

- Sim. A morta é uma candidata ao sacerdócio. Faria o teste na semana que vem para avaliar sua magia. – Scylla esclareceu.

- Que Kallisti me perdoe, mas eu estava torcendo para ser apenas o ataque de algum homem nojento. – Aine disse e esclareceu. – O mensageiro disse que a moça estava sem as peças íntimas de suas roupas, com marcas de garras por todo corpo, principalmente no rosto.

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- Sem as peças íntimas? – A aprendiz de Scylla soou confusa.

- É estranho mesmo. – Aine comentou.

Mas Scylla, percebendo a confusão da menina, percebeu que tinha algo a mais. – Fale.

- Vai parecer bobagem, mas, uma sacerdotisa leonina que estudou comigo a uns anos uma vez falou de peças íntimas sumindo dos varais. Não sei...só lembrei disso.

- Peças de roupa sumindo é normal. – Aine disse e Scylla estranhou, mas decidiu investigar isso depois. – Vamos nos ater aos fatos. Scylla, procure minha mãe ainda hoje e siga com seu plano. Vou enviar investigadores até o litoral e avisar ao Lich sobre o ocorrido, afinal, ele é o Duque de lá. Não quero que essa história se espalhe. Não vamos causar pânico no povo, mas se mantenham alertas.

- Não se preocupe, Aine. As sacerdotisas já foram avisadas. Qualquer mínimo sinal de anomalia, mesmo que distante, será avaliado e marcado como alerta máximo. – Scylla garantiu.

O que Scylla não sabia é que não adiantaria muito esse alerta. Logo ela descobriria que estava lidando com algo muito esperto, mas, principalmente, traiçoeiro.

~o ⭐ o~

Les pousou os pés na floresta e caminhou alguns metros, virando ruas desertas até uma casa cercada por muros de cerca viva, com o coração acelerado. Ele passou a mão pelo cabelo, se certificando que estava bem arrumado e chamou. O portão de madeira foi aberto e ele entrou, seu estômago roncando com o aroma delicioso de comida. Depois de jantar na varanda do quarto e conversar por algum tempo, ele guiou a mulher para a cama com brincadeiras bobas, mascarando um pouco suas intenções.

Ele a colocou sentada entre suas pernas, no meio da cama, ficando atrás dela e a abraçando.

- Você precisa relaxar. – Les beijou seus ombros e passou a massageá-los, enquanto beijava sua nuca.

- Eu acho que melhor você ir embora. – Ela tentou resistir pela milionésima vez nos últimos meses.

- Pare de fugir de mim.

- Não é certo, rapaz.

- Porque não? Eu gosto de você, você gosta de mim...

- Eu nunca disse isso.

- Ai! – Ele riu. – Magoou meu coração indefeso.

Ela deu um tapinha na mão dele, rindo.

- Dramático. Sério.... Eu nem devia deixar você vir aqui.

- Mas deixou. – Les continuou.

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- Nem sei porque.

- Eu sei. Você me quer, precisa de carinho, eu quero te dar carinho....e umas coisinhas a mais... – Ele sorriu.

A mulher, temendo fazer besteira, levantou rápido, decidida a ir até a porta e mandar ele sair, mas seu pulso foi segurado e, num impulso rápido, ele puxou para a cama e deitou em cima dela, roçando seus lábios nos dela.

- Eu amo você. Você sabe disso a anos. Eu respeitei seu casamento, nunca tentei nada, nunca nem dei um olhar por anos. Fingi que não te queria por anos. Você está sozinha, sei que você me deseja, eu te desejo e te amo... Quanto tempo mais vou ter que esperar?

- Não...devemos...

- Você quer. Não quer? – Ele perguntou, sabendo a resposta.

- Mas... – Ela tentou enumerar todas as razões pelas quais não deveria ceder, mas a proximidade dele e sua própria necessidade não estava ajudando em nada.

- Quer ou não?

Ela deixou ele beijá-la e percebeu que não conseguiria mais resistir aos meses de insistência nem por um minuto.

- Só uma vez. – Ela disse, mesmo sabendo que não seria só aquela vez.

Ele sorriu com aquele jeito naturalmente sedutor, mas, diferente de todas as outras vezes que ele sorrira assim pra uma mulher, desta vez seus olhos tinham um brilho que não deixava a menor dúvida do quanto ele a amava.

- Uma de muitas vezes, Ane. – Les disse e beijou a mulher que ocupava seus sonhos a um bom tempo.

~o ⭐ o~

Talvez você não entenda ainda o motivo do que estou dizendo, mas o que é importante é que você não se esqueça disso: a raiva é um ótimo combustível de batalha e uma péssima conselheira de guerra.

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Capítulo 09

Não existe em nenhuma espécie vivente um ser mais perigoso e poderoso do que uma fêmea rancorosa. Essa é uma das leis da natureza mais constantes em qualquer universo. O

erro das espécies é ignorá-la até que seja tarde.

~o ⭐ o~

Meses depois, Gaia e Luc já estavam namorando publicamente e Aine enviara um presente para o casal, já que a meses não tinha tempo para nada, focada em cuidar do reino e nas investigações do massacre das sacerdotisas. Nenhum corpo apareceu novamente nesse tempo, mas Scylla conseguira capturar uma harpia e tortura-la até a morte, obtendo quase nada de informações. Apenas a data exata da morte das sacerdotisas nos templos: 6 meses 5 dias e 21 horas. Era a décima quarta vez que Scylla analisava suas anotações sobre a investigação, mas nada de novo lhe surgia.

Estou deixando passar algo... Eu sinto isso. Scylla massageou as têmporas, com uma dor de cabeça irritante. – Lich. – Ela disse, sentindo antes de ver ele surgindo de uma sombra perto da porta aberta.

- Comer. – Lich disse e colocou na frente dela um prato com carne crua temperada e alguns queijos recheados com carne moída frita em óleo de árvore e legumes.

- Nova receita? – Scylla perguntou, forçando-se a comer algo.

- Sim. Menos o tempero da carne.

- É o que você fez para aquele almoço ano passado.

- Sim. Bom?

- Uma delícia. Mas não é surpresa. Você tem talento pra essas coisas. Enquanto eu mal cozinho o básico e às vezes ninguém consegue comer.

- Novidades? Sobre o caso.

- Nada.

- Hum. – Lich murmurou e acrescentou. – Tenho que ir.

- Mas já? – Scylla perguntou.

- Preciso ir em casa. – Sem mais nenhuma palavra, Lich foi embora.

- Ue... Mas ele acabou de chegar... – Scylla disse para si mesma, a suspeita coçando em sua mente, embora ela ainda não soubesse do que exatamente.

~o ⭐ o~

Alart esperou nada paciente seu filho voltar, mas Lich não voltou naquela noite. – Isso está fora de controle. – Ele resmungou. Agora nem mesmo existiam mais sacerdotisas dos Aneis pra ele poder enviar seu filho em uma purificação. Ele tinha que pensar em algo ou alguém para ajudar. Mas quem?

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Na manhã seguinte, Sunny deu um beijo na testa de Alart que roncava, esgotado pela noite em claro, se soltou do abraço apertado dele com dificuldade e se arrumou para começar seu dia. Naquela manhã, apenas Gaia sentou na mesa com ela, já que Lich estava fora do reino, Les e Luc estavam viajando e só chegariam de tarde. Era bom Gaia estar ali, Sunny odiava comer sozinha, sempre se sentindo triste com as lembranças teimosas e ruins de sua juventude que insistiam em a perseguir. Lich chegou em silêncio e tomou o comando da cozinha, preparando um almoço surpresa para a mãe. Como todos os felinos da casa, Lich adorava mimar Sunny e Gaia estava indo pelo mesmo caminho. Com todos à mesa para almoçar, Alart tentava disfarçar o olhar irritado com Lich. Les foi o último a entrar, ainda com os pelos úmidos do banho.

- Mamãe lindíssima! – Les deu um beijo estalado na bochecha da mãe e a abraçou apertado. – Como o velho conquistou uma bonitona como a senhora? Ele nem é tão bonitão...

- Les! – Sunny riu.

- Tenho meu charme. – Alart respondeu sério, mas com um olhar carinhoso pra cena.

- Tem mesmo. – Sunny sorriu de forma bem sugestiva.

- ECA! – Os trigêmeos disseram ao mesmo tempo, causando o riso de Gaia, Sunny e Alart.

- Podemos conversar mais tarde? – Les aproveitou o barulho dos outros rindo e perguntou no ouvido da mãe. Mal sabia ele que, mesmo sem olhar diretamente pra ela, Alart nunca perdia nenhum movimento que tivesse relação à esposa.

- Claro, bebê. – Sunny murmurou.

- Essas carnes que você tem preparado têm um gosto diferente que não consigo explicar. – Alart comentou com Lich que apenas deu uma explicação evasiva.

Les se sentou em seu lugar e focou em perturbar a paz de Luc, seu maior passatempo.

Alart ergueu uma sobrancelha para Sunny, mas ela apenas acenou com a cabeça e eles se entenderam com apenas esses gestos. Les só teve tempo para descansar já tarde da noite e entrou em casa ensopado, sua farda militar pingando, uma chuva torrencial caindo lá fora.

Sunny estava sentada na sala, enrolada no manto de Alart, tomando um chá quente, com mais uma xícara e a chaleira na mesa ao seu lado.

- Tira isso, bebê. Vai ficar resfriado. – Sunny disse, já aguardando o filho chegar, apesar do sono e da cara de felino abandonado que Alart fez por ir deitar sozinho enquanto ela esperava o filho.

- Mamãe. A senhora não devia estar dormindo? – Les tirou o casaco longo molhado e pendurou perto da lareira, pegando o roupão dele que sua mãe tinha deixado na poltrona ao seu lado. Ele lhe deu um beijo na testa antes de vestir o roupão e se sentar ao lado dela.

– Está tarde, bonitona.

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Sunny encheu a xícara com chá e lhe entregou. – Beba e diga o que você queria falar comigo.

- Mãe... Isso podia esperar.

- Meus filhos nunca podem esperar. Vocês são a coisa mais importante na minha vida.

Vocês e seu pai.

- Mãe, te amo, mas não sei por onde começar.

- Seja direto. Vai facilitar, acredite.

Les deu um sorriso de lado e Sunny se perguntou como seu filho do meio podia ser tão parecido com Done às vezes.

- Eu...sabe...tem anos que amo uma pessoa.

- Quem mais sabe disso? – Sunny perguntou, não conseguindo evitar de sentir uma pontinha de ciúmes por não ser a primeira a saber disso.

- Tirando a mulher em questão, ninguém. A senhora é a primeira pessoa pra quem eu conto. – Les disse.

Sunny quase chorou de emoção ao ouvir isso. Saber que seu filho procurou ela antes de todos significava muito para ela. – Ela gosta de você?

- Sim. Não sei se ela me ama. Meio que ela passou por um momento difícil recentemente e ainda está se curando.

- No caso, você se jogou em cima dela como essa tal cura, não é?

- Mãe!

- Lesath, eu te conheço garoto. Te amo, mas você é do tipo aproveitador que não deixa passar uma oportunidade de agir.

- E é por isso que todas me amam. – Les sorriu.

Sunny balançou a cabeça e sorriu. – Eu nunca perguntaria isso para seus irmãos porque eles são um pouco mais...err...cautelosos nisso. Mas ela é uma boa pessoa?

- Mããããe! Está insinuando que eu pego qualquer uma?

- Você pega qualquer uma. A questão aqui é se você se ama qualquer uma.

- KKKKK! Relaxe, mãe, ela é ótima. Inteligente, engraçada, nobre, gentil, doce e não me quer apenas pelo meu lindo corpo sexy. Ela sempre me ouviu, me entende, ri das minhas bobagens...

Sunny via aquele brilho nos olhos todos os dias ao acordar com seu marido do lado.

Les estava mesmo apaixonado. – Você a ama. O que a torna a minha melhor amiga ou a pessoa que mais vou odiar no mundo, dependendo de como ela se comporte com você.

- Bem... Meio que... Haha. A senhora vai achar engraçado. – Les tremeu por dentro e não conseguiu mais olhar nos olhos dela, o que acendeu o alerta na mente de Sunny.

- Diz de uma vez. Sabe que detesto rodeios.

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- Bem. – Les começou, tomou um gole grande do chá. Porém, como estava muito quente, ele engasgou e começou a tossir. Sunny levantou, agachou na frente dele e tentou ajudar a parar a tosse.

- Use seu dom de cura. Foco. – Sunny instruiu.

Les fez isso e, assim que ela acalmou um pouco, ainda ofegante ele soltou: - Ane. É a Ane.

Sunny rapidamente ficou de pé como se tivesse levado um choque. – Ane? Minha prima? A Ane...Essa Ane? Mãe da Rainha Aine?

- Sim. Essa Ane.

- Ane? – Sunny perguntou, não conseguindo controlar o choque.

- Sim.

- A Ane que me ajudou a trocar suas fraldas?

- Sim, mãe. – Les revirou os olhos, incomodado. – Essa Ane.

Sunny sentou quase desabando. – Por Kallisti.... Ane?

- Mãe.

- Certo, certo. Desculpa, filho. É que você me pegou de surpresa.

- Eu...mãe eu realmente a amo.

- Não precisa dizer. Está estampado nos seus olhos. Só que vocês são parentes. Não tão próximos, mas são. Eu não tenho nada contra, se for isso que ela também quer. Mas entenda que Ane é mãe da sua melhor amiga. Tem muito em jogo, filho. Se vocês tiverem problemas...

- Aine vai arrancar minha cabeça. Eu sei. Mas eu quero me casar com ela. Só precisa ela querer também.

- Ane acabou de enterrar a esposa a poucos meses. Não acredito que ela vá pensar em se casar em breve.

- Eu posso esperar. Esperei por ela desde muito jovem, mãe. Sou paciente.... E

gostoso. – Les sorriu.

- Ai, garoto. – Sunny riu. – Olha, filho, eu vou sempre apoiar o que você decidir. Mas não quero que você sofra. Se, em algum momento, eu perceber que você não está valorizando a si mesmo, que ela não quer nada sério, eu vou interferir. Estamos entendidos?

- Claro, minha linda maravilhosa. – Les deu um beijo na mão dela. – Mas, será que, por enquanto, podemos manter isso em segredo? Eu só quero contar pro velho e pro Lich porque ne, aquele sinistro do meu maninho é ótimo pra dar conselhos.

- Certo. E Luc?

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- Não sei. Acho que não vou contar pra ele não. – Les disse, mas mãe e filho se olharam por meio segundo e ambos sabiam que ele acabaria contando. Os trigêmeos sempre contavam tudo um pro outro.

Menos Lich. Sunny pensou com uma pontada de preocupação. Ai, caçulinha, o que vamos fazer com você.

- Vai me contar? – Alart perguntou, abraçando Sunny apertado na cama.

- Nosso filhote vai falar com você amanhã. Só peço que seja compreensivo.

- Sempre sou. Depois de Lich acho que sou até demais.

- Notou que Luc parece estressado nas últimas semanas?

- Sim. Ele tem disfarçado e Gaia parece estar ajudando, mas definitivamente tem algo incomodando ele. Eu perguntei, mas ele deu a pressão de comandar o reino como desculpa. – Alart beijou a nuca de Sunny.

- É mentira.

- Claro que é. Mas, - Alart a virou de barriga para cima e ficou sobre ela – que tal falarmos sobre nossos filhos amanhã? Hoje quero exercitar a prática de fazer filhotes com minha linda esposa.

~o ⭐ o~

- Tudo isso é loucura! – Luc disse irritado.

- Loucura é o que você fez. E se eu contar pra todo mundo, nem seu povo vai te apoiar.

Aposto que seu pai é capaz de tirar você do trono!

- Você me enganou!

- Eu? E como eu faria isso? Eu nem tenho magia. Você que abusou de mim, me obrigou a ir pra cama com você e agora quer jogar a culpa de tudo em mim!

- Ninguém vai acreditar! Basta olhar suas memórias...

- Exatamente. Basta olhar minhas memórias e verão os abusos! Só não fiz isso ainda porque não quero que minha mãe tenha que ver algo assim de novo! – Maia começou a chorar.

- Para com isso, sua louca! Eu...eu vi sua irmã! Eu chamei o nome dela várias vezes!

- Você me chamou de Gaia, sim, mas eu gritei, me debati, chorei, e nada fez você parar! E ainda me drogou pra me levar pro seu quarto todas as vezes! Agora você vai ter que casar comigo!

- Eu NUNCA me casaria com você! – Luc ergueu a mão para dar um tapa nela, mas parou a meio caminho.

- VAI, BATE! Não seria a primeira vez que você me agride!

- Não me teste, Maia! Eu adoraria matar você agora.

- Claro, afinal você mataria dois de uma vez só não é?!

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- Dois? – Luc sentiu as pernas gelarem. – Por Kallisti... Não. Não é possível. Não... Você está grávida?

- Claro que estou! Meses me fazendo de escrava sexual...o que você achou que iria acontecer, seu doente, maníaco!

Luc, assim como seus irmãos, cresceram valorizando demais a relação entre pais e filhos. Sua mãe, desde que eles tinham idade suficiente pra entender, contou tudo o que ela viveu e sempre deixou claro a importância deles serem unidos e de valorizarem seus filhos acima de tudo. Naquele momento, ele sabia que ela estava certa. Seu pai seria capaz de destrona-lo por abusar dela e abandonar seu filho. Ela tinha as memórias para provar...

- Gaia... – Luc murmurou, sabendo que sua relação com ela acabaria de qualquer forma agora.

- Você vai falar a verdade pra ela ou eu falo. Minha irmã não merece viver com um estuprador! Eu vou dizer pra ela cada detalhe, tudo o que você fez comigo!

- Cala a boca, Maia! – Luc deu um tapa na cara dela e se arrependeu no mesmo segundo, ajudando ela a se levantar. Maia chorava tanto que ele quase sentiu pena e, meio que num impulso, ele a beijou apaixonadamente enquanto ela tentava em vão se soltar.

- Luc? – Gaia parou na porta do quarto dele, de camisola, finalmente tendo coragem para dormir com ele pela primeira vez. O que agora, obviamente, não aconteceria.

Maia finalmente se soltou e correu para os braços da irmã, chorando de um jeito que Gaia nunca tinha visto ninguém chorar. Cconfuso e devastado, Luc sentiu o ódio no olhar de Gaia.

Era o fim.

~o ⭐ o~

Scylla sentou à frene de Aine com todos os documentos e provas das investigações, prontas para começar a analisar tudo juntas. Mas logo uma das Sentinelas impediu o trabalho, chamando Scylla com urgência. Aine, preocupada, seguiu com a sacerdotisa para entender o que estava acontecendo e encontraram Gaia segurando Maia em um abraço apertado, esta última chorando compulsivamente.

- Shhh... Calma, mana. – Gaia tentava acalmar a irmã, mas parecia inútil.

Scylla sondou por alto a mente da caçula, mas parecia um turbilhão onde tudo que ela conseguia captar era muita dor, violência e ressentimento. Respeitando a privacidade da filha, ela parou a sondagem aguardando que a moça se acalmasse e falasse já que Gaia se recusava a dizer o que tinha acontecido.

- Tia... Não é melhor chamar as duas? – Aine perguntou.

- Sim. Claro. – Scylla chamou uma sacerdotisa e deu ordens para trazerem Cassi e Sarin até ali.

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- Vocês sabem o que aconteceu? – Aine perguntou assim que as duas entraram.

- Acho que faço uma ideia. – Cassi disse e se virou para Scylla. – Ela vai contar. Não cabe a mim dizer quando ela nos pediu segredo.

- Podemos ficar a sós com ela? – Sarin perguntou.

- Não vou deixar minha irmã sozinha! – Gaia gritou.

- Filha, deixa elas. – Scylla chamou, sabendo que Maia precisava das duas naquele momento e parecia ainda mais nervosa quando olhava pra Gaia.

Aine também tinha notado o olhar. – O que acha?

- Conheço esse olhar. Já vi muitas vezes em Alart quando olha pra Sunny. – Scylla disse baixinho. – Culpa. Seja lá o que houve, tem a ver com Gaia.

~o ⭐ o~

A névoa negra passou sutilmente pelas sombras do palácio Tiger, como se procurasse algo. A porta do escritório de Aine estava fechada e selada contra invasores, mas pertiria a passagem de pessoas de confiança. Assim, a névoa passou sem problemas, sondou os papéis da investigação e saiu.

~o ⭐ o~

Lich encontrou o irmão devastado e bêbado. Depois de ouvir toda a história, ele colocou uma mão sobre seu ombro e disse: - Vamos. Les tem mil poções para curar essa bebedeira.

- Mas eu não quero.

- Luc, bêbado não vamos resolver nada. Agora levanta.

Mesmo sem querer, Luc levantou. – Les vai me achar um idiota... Eu tinha que ser um exemplo... Eu sou o mais velho..

- Você não vai ser menos nosso irmão, independente do que aconteça. Eu sei que a admiração do Les é importante pra você.

- Nem ligo. – Luc disse orgulhosamente, quase tropeçando eu seu próprio pé.

- Sei. Vamos cuidar disso e falar com nossos pais.

- Eu preciso mesmo? – Luc soou desesperado.

- Você sabe que sim.

- Lich...eu não..

- Uma coisa por vez, irmão. Vamos cuidar de você, contar pros nossos pais e depois vou sondar isso.

- Você vai comigo? Pra contar pro pai e pra mãe? Ela vai me odiar...

- Não vai. Sabe que eu e o Les nunca deixaríamos você sozinho.

- Eu te amo, maninho. – Luc abraçou e distribuiu beijos no rosto de seu irmão.

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Lich virou a cara pra evitar o odor forte de bebida. – Luc, já entendi...

- Você é o meu melhor mano caçula, mano.

- Eu sou seu único irmão caçula, cara. Sério. Você bêbado é tão dramático quanto nosso pai quando bebe demais.

~o ⭐ o~

Vou dizer apenas uma coisa: cuidado com aqueles em quem você confia.

L i k a s t í a 0 4 | 77

Capítulo 10

Às vezes interferir é preciso, embora eu prefira deixar meus bebês felinos se virando com seus problemas. Outras vezes, apesar de necessário, não preciso interferir. A inteligência deles faz isso muito bem.

~o ⭐ o~

Aine ficou congelada por alguns segundos depois de ouvir o que tinha acontecido entre Luc e Maia. No entanto, seu temperamento Tiger logo assumiu com aquela raiva típica de seu povo.

- Ele...porque? Ele sempre foi tempestuoso, mas isso? – Scylla não sabia se sentia mais raiva, decepcção ou tristeza, afinal ela viu os trigêmeos crescerem e nunca esperou isso deles.

- Me diz que tem alguma chance disso ter sido um mal entendido... – A água no copo de Aine fervia em suas mãos.

- Não. A sacerdotisa que mandei para ver suas memórias não deixou dúvidas. Os abusos aconteceram. Ele usou uma droga para facilitar o controle sobre a mente dela, atraí-la pelo portal até o palácio e...

- Chega. Eu não consigo nem ouvir isso. – Aine disse. – Tem noção do problema que isso será? Eles são meus amigos, todos eles, mas além disso Luc é o Rei interino dos leoninos. Abusar de alguém já é deplorável, mas ainda por cima da cunhada... Eu...

AAARHG! QUE RAIVA! – Aine incendiou a mesa ao seu lado, precisando descontar em alguma coisa.

- Maia não quer nem me deixar chegar perto. – Scylla lamentou, sentando, derrotada na cadeira. – Ela nem me deixou avaliar as memórias dela.

- Claro que não. Maia nunca deixaria a senhora ter outra memória de abusos na cabeça. – Aine disse. – Marquei uma reunião com os reis leoninos e o filho deles amanhã.

Pela reação do tio Alart, ele já deve saber do que se trata. Quero que descanse e esteja presente amanhã também.

- Tenha calma, Aine. – Scylla disse. – O caso é grave. Se deixar seu temperamento Tiger tomar conta... Bem, isso facilmente pode se transformar numa guerra.

- Eu sei e acredite, a vontade de começar uma guerra agora é quase insuportável. Mas vou tentar pelo menos por alguns minutos...

~o ⭐ o~

- Luc... – Sunny levantou num pulo, pronta para, pela primeira vez na vida, dar um soco no filho. – VOCÊ FEZ O QUE?!

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- Amor... Calma. – Alart tentou conter o temperamento Tiger da esposa, embora ele mesmo estivesse pronto para dar uma surra no primogênito. – Você... Lucius, explique-se. E

rápido.

Luc olhou para os irmãos atrás dele, respirou fundo e contou tudo de que se lembrava.

– Eu juro. Não sei como ou o que aconteceu. Só posso pensar que estou louco, porque, mesmo com eu lembrando de ter Gaia comigo todas as vezes e ter sido super carinhoso com ela, a memória de Maia é incontestável.

- LOUCO?! Você tem alguma noção do que isso faz com uma felina? Claro que tem. Eu nunca escondi de vocês, não é? – Sunny se levantou e começou a caminhar de um lado pro outro, incapaz de ficar parada com o turbilhão de emoções e memórias.

- Eu sempre fui claro com você sobre o que fui obrigado a fazer com sua mãe e o quanto isso me assombra até hoje. Sempre achei que meu exemplo seria o suficiente para te impedir de sequer pensar nisso. – Os olhos de Alart brilhavam com flashes brancos, seu poder reagindo às emoções violentas. – Pelo visto me enganei.

- Pai, eu sei que Luc errou, mas isso pode ser algum tipo de engano. – Les disse, embora quase não conseguisse esconder a decepção em sua voz.

- Que tipo de “engano” faz um felino honrado abusar de alguém? Porque sempre achei que tinha criado três felinos honrados. Ou me enganei? – Alart bateu com um punho na mesa, assustando Les e Luc.

- Pai, o que Les quer dizer, e eu concordo, é que essa confusão entre as memórias do meu irmão e de Maia não é normal. Algo aqui está errado. – Lich disse, calmo.

- Lich, eu sempre admirei seu senso de justiça, filho, mas... – Sunny começou, mas pareceu pensar por um segundo. – Lucius.

- Sim, mãe? – Luc disse cabisbaixo.

- OLHA PRA MIM, LUCIUS! – Sunny gritou, perdendo a paciência por um momento. –

Melhor. Lich tem razão. Essa confusão de lembranças não é comum. Você verificou a memória dela?

- Sim... – Luc disse, incomodado pelo que viu.

- Alguma chance de ser apenas algo que ela entendeu errado? – Alart perguntou.

- Não. – Luc disse. – Mas, mãe, eu posso mostrar o que me lembro. Eu sei que não vai mudar o fato, mas, eu...

- Pai. – Lich disse. – Eu tenho uma ideia.

- Diga, Lich.

- Com certeza Aine irá nos convocar. Bem, pelo menos Luc, o senhor e a mãe.

- Sim. – Les disse. – E vamos ter que pensar no que dizer ou isso vai se transformar em uma guerra facilmente.

L i k a s t í a 0 4 | 79

- Minha ideia, pai, é que a gente faça tia Scylla olhar as memórias de Luc. Ela é a maior telepata viva e tenho certeza que vai aceitar. – Lich disse.

- Sim. Embora isso não mude o fato da filha dela ter sido... Enfim. – Alart tentava se controlar porque bastava a fúria de Sunny ali. – Vai mostrar que Luc não planejou ou fez em algum tipo de loucura.

- Scylla é vingativa como qualquer Tiger que se preze, mas é justa também. Essa ideia é boa, filho, mas ainda não resolve o problema. – Sunny comentou, sem conseguir nem olhar para Luc, temendo fazer uma besteira.

- Luc, espero que saiba que você vai assumir esse filho. – Alart disse, pronto para dar uma surra no filho se ele sequer pensasse em negar isso.

- Claro, pai. Isso nem se discute. – Luc disse, decidido.

- Ótimo. – Alart disse e se levantou. – Mais uma coisa. Luc, até segunda ordem, você está fora dos assuntos do reino. Depois que falar com Scylla, decido o que fazer sobre você.

Agora saia da minha frente.

Luc sentiu uma pontada de tristeza. Ser rei era algo para o que ele foi preparado a vida toda e ele adorava aquele trabalho. Saber que seu pai poderia tirá-lo do trono era doloroso demais. Les saiu ao lado de Luc, gelado por dentro com a possibilidade de seu irmão ser tirado do trono definitivamente porque isso o colocaria na linha de sucessão. Algo que ele nunca quis. Ter tanta responsabilidade nas mãos o aterrorizava.

Será que posso abrir mão do comando? Assim Lich seria rei né? Ele é bom com essas coisas de governo... Les pensou e Luc não pode deixar de captar, dando a Les um olhar de apoio silencioso.

- Mãe, pai. – Lich chamou, agora sozinho com eles na sala.

- Fala, filho. – Alart sentou, visivelmente abalado.

- Tenham paciência. Vocês foram muito compreensivos comigo quando precisei. É

justo que sejam também com Luc.

- É diferente, Lich. – Sunny ainda estava furiosa. – Você veio nos procurar quando precisou de ajuda. E não tinha abusado de nenhuma mulher.

Lich pensou em falar, mas se calou. Ele deu um passo em direção a mãe que ainda andava de um lado para o outro. Ele segurou sua mão, deu um beijo na testa dela e saiu.

~o ⭐ o~

- Desculpe, senhorita. – Sarin disse, tampando a visão da porta. – Mas ela está dormindo.

- Eu... Entendo. – Gaia disse e entregou a bandeja para Sarin. – Entrega pra ela por favor?

- Claro.

L i k a s t í a 0 4 | 80

- Obrigada. – Gaia saiu, triste.

- Ela já foi? – Cassi perguntou.

- Sim.

- Cuide dela. Maia vai ficar sob seus cuidados até meu retorno. Se algo der errado, sabe o que fazer? – Cassi ordenou.

- Cuidarei dela, não se preocupe, mestre.

- Amanhã você estará aqui? – Maia perguntou.

- Provavelmente não a tempo da hora da reunião. – Cassi disse. – Tenha cuidado, linda.

- Eu terei. – Maia sorriu.

~o ⭐ o~

Aine sentou na cabeceira da mesa. – Decidi não convocar nenhum conselheiro em consideração a história de nossas famílias. Mas quero que saibam que essa é toda a consideração que terei. Sei que entendem.

Alart sustentou o olhar firme de Aine, embora estivesse envergonhado até a alma. –

Claro. Scylla, Maia, antes de qualquer coisa quero me desculpar pelo comportamento deplorável do meu filho e deixar claro que não deixarei você desamparada, Maia.

- É o mínimo que espero de você. – Scylla disse, firme.

- Lamento. Eu...eu devia ter contado antes...mas...eu me sinto tão envergonhada... –

Maia fungou ao lado da mãe.

- Você não deve sentir vergonha, Maia. Nunca. – Sunny, ao lado do marido, disse.

- Aine eu gostaria de sugerir uma coisa. Na verdade, foi ideia de Lich. – Alart contou a ideia do filho mais novo, enquanto Luc se manteve em silêncio do outro lado dele.

- Se Scylla não tiver nada contra, eu concordo. – Aine olhou para a sacerdotisa.

- Claro. A menos que Lucius não queira. – Scylla disse em uma provocação ao rapaz.

Luc ergueu a cabeça e desejou poder ter seus irmãos ali. Eles sempre foram sua força.

– Eu não só aceito como faço questão.

Scylla sinalizou para ele se aproximar e colocou uma mão na testa dele. Por um segundo Sunny temeu que seu filho sentisse dor porque ver a memória de alguém era tranquilo, mas também poderia machucar se o mago quisesse. Alart apertou a mão dela sobre a mesa, em um apoio silencioso, lembrando que, apesar de tudo, Scylla não o machucaria. Pelo menos, Alart esperava que não. Scylla viu que Luc não mentira. As memórias dele eram de várias noites em que Gaia batia em sua porta, já tarde, de camisola e tinham uma relação sexual consensual e doce. Em nenhuma delas Maia aparecia, gritava, se debatia... Sua mente realmente via algo completamente diferente do que Maia viveu com ele. No entanto, não era mentira. As memórias de Maia eram muito claras de acordo

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com a sacerdotisa de confiança que Scylla designou para esse trabalho. Além disso, Scylla tinha visto as memórias de Gaia na noite anterior, com permissão da moça, e ela nunca estivera nos braços do namorado dessa forma.

A reunião foi tensa e em muitos momentos só não terminou em briga e numa declaração de guerra pela amizade antiga entre as famílias. Por fim, Alart decidiu que Luc não seria mais seu herdeiro, a menos que se casasse com Maia, lhe dando o título de rainha. Além disso, ele teria que passar por um tratamento psicológico e mágico para entender o que tinha acontecido e resolver o problema. Maia aceitou ser esposa dele, desde que pudesse se separar em cinco anos se não desse certo e que não fosse obrigada a conviver com ele até que ele passasse pelo tratamento. Enquanto isso, Alart adiaria sua aposentadoria e assumiria plenamente as funções reais, além de preparar Les para ser rei caso Luc não cumprisse sua parte no acordo.

- Você não é obrigada a aceitar, Maia. – Aine disse na frente de todos.

- Eu sei. Mas, se é pra evitar uma guerra ou a vergonha pra tia Sunny que sempre foi muito boa pra minha irmã, eu aceito tentar. – Maia disse.

- Certo. Scylla? – Aine perguntou.

- Eu apoio a decisão de Maia. Também não quero envergonhar Alart e Sunny que não tem culpa da loucura do filho.

- Agradeço a compreensão generosa de vocês. – Sunny disse. – Maia eu garanto que você será como uma filha para mim e muito bem recebida em casa.

- Obrigada, tia. – Maia disse, emocionada.

- Maia. – Luc falou pela primeira vez em horas. – Eu aqui, na frente de nossos parentes e amigos, prometo que vou cuidar da minha cabeça pra que isso nunca mais aconteça. Você e meu filho serão tratados com todo respeito que lhes é devido. Juro que nunca vou tocar em você, a menos que esse seja seu desejo, e vou ser um marido digno da sua generosidade demonstrada aqui hoje. Se você disser que prefere não me ter por perto, respeitarei sua decisão e vou viver na casa que possuo na cidade, indo no palácio apenas para minhas obrigações.

- Eu não acho certo você sair do palácio. Até porque isso causaria muitas fofocas e poderiam descobrir o que aconteceu. Não quero isso. Eu me sentiria muito mal por sujar a reputação da sua família. – Maia disse, sem olhar diretamente para ele. – Mas, não quero ficar perto de você.

- Eu entendo. – Luc disse.

Depois de acertar mais alguns detalhes, Luc se aproximou de Scylla. – Quero que saiba, tia, que eu realmente sinto muito e estou me sentindo péssimo. Eu sei que isso não alivia as coisas, mas, quero que saiba disso. E... Eu...eu gostaria que a senhora entregasse isso para

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Gaia... Por favor. – Luc entregou uma carta para ela. Scylla até pensou em não aceitar, mandar o garoto se ferrar, mas Gaia tinha o direito de decidir se leria ou não.

- Fique longe dela. – Scylla disse em tom de aviso.

- Eu...eu a amo. – Luc segurou as lágrimas. – Mas sei que nunca mais poderei ficar perto dela e isso...dói. De qualquer forma, lamento. De verdade.

- Eu sei que sim. – Scylla disse e não precisava ser telepata pra ver a dor nos olhos dele. Bom. Ele merece sofrer muito.

- Vamos, Luc. – Alart chamou da porta.

Luc deu uma última olhada em Maia conversando um pouco mais distante com Aine, então disse para Scylla: - Não sei como ou porque Maia foi para a viagem de purificação, mas é bom ver a mudança nela. Pena que os templos não têm mais nenhuma sacerdotisa, porque a mudança da Maia de 6 meses e 10 dias atrás pra Maia de hoje é admirável.

Luc saiu sem notar o olhar tenso de Scylla sendo substituído por um de choque.

~o ⭐ o~

Era noite quando Les finalmente voltou para casa de Ane e quase se jogou nos braços dela.

– Preciso de ajuda. – Ane disse.

- O que foi, amor?

- Acho que Scylla está com problemas, mas não posso chamar ela aqui agora.

- Não entendi. Qual o problema? – Les perguntou.

Ane sentou e sinalizou para ele sentar ao seu lado. – Vai parecer loucura...

- Conta pro seu bonitão aqui. – Les sorriu.

Ane pegou alguns antigos arquivos históricos e sinalizou para um ponto tão antigo que a data nem mesmo era concreta. Les olhou, inicialmente não entendendo o que ela queria que ele visse. Mas então o padrão se firmou e ele sentiu as pernas tremerem.

- Isso... Por Kallisti. Isso é possível? Quer dizer...claro que é possível. É claro aqui, mas...

Por Kallisti!

- Eu sei. Entende agora porque preciso falar com Scylla urgentemente?

- Sim... Eu vou dar um jeito de trazer ela.

- Seja discreto. É sério, Les. Eu sei que você e seus irmãos são próximos, mas não pode contar isso pra ninguém. Nem mesmo Lich. Com as coisas tão adiantadas assim, não sabemos em quem podemos confiar.

- Claro, claro... Céus! Isso explica tanta coisa...

~o ⭐ o~

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Aine levantou para correr, incapaz de dormir com a raiva que ainda sentia. Suada e esgotada, ela voltou para o palácio e foi ao seu gabinete para trabalhar, tentando esgotar também a mente. Ao abrir a porta, tudo parecia uma zona.

- Scylla?

- Aine, você viu os arquivos das investigações que estavam sobre a mesa? – Scylla perguntou revirando um monte de papeis.

- Estava, como a senhora disse, sobre a mesa.

- Droga. – Scylla murmurou. – Alguém esteve aqui depois daquela hora que íamos analisar tudo?

- Não, deixei a sala com a magia de proteção para pessoas de... Aconteceu alguma coisa?

- Sumiu.

- O ARQUIVO SUMIU? – Aine entrou na sala preocupada.

- Não.

- Ai, tia Scylla! – Aine colocou a mão no peito, se acalmando. – Quer me matar de susto?

- Você não entendeu, querida. – Scylla passou a mão pelos cabelos bagunçados. – O

arquivo está aqui, mas uma parte importante sumiu.

- Isso não é possível. Alguém de confiança teria que ter entrado aqui e... Tia, que parte, exatamente?

- Uma que preciso ver pra confirmar uma coisa na minha cabeça. A parte que falava do tempo da morte das sacerdotisas. Se a porcaria da minha memória fosse a mesma de quando eu era mais jovem...

- 6 meses 5 dias e 21 horas. Atualizando pra hoje, 6 meses e 7 dias. – Aine esclareceu.

– Mas claro que precisamos saber como isso sumiu daqui.

Scylla sentou no chão com a cabeça entre as mãos.

- Tia. O que foi? – Aine correu para ela, preocupada. – Eu sei que é preocupante esse sumiço...

- Sim. É. E muito. Alguém de confiança está agindo contra nós. Mas... Por Kallisti...

Aine, acho que temos um problema muito sério nas mãos. – Scylla disse com uma tristeza que partiu o coração de Aine.

~o ⭐ o~