- Tem certeza? – Maia perguntou.
- Sim. - Cassi respondeu pelo comunicador.
- Posso cuidar disso? – Maia perguntou com Sarin atrás dela.
- Melhor não. Você deve cuidar de si mesma. Sarin, use um pouco da poção pra ajudar Maia.
- Pode deixar que não me descuido da nossa bonequinha não. – Sarin abraçou Maia por trás.
- Eu queria fazer isso... – Maia fez beicinho.
- Você já está cuidando de algo mais importante, linda. Agora tenho que ir. Descanse, minha boneca perfeita.
Cassi desligou e sorriu. O crepúsculo matinal estava começando quando ela sondou e descobriu algo interessante e inesperado. Talvez eu devesse esperar ele sair. Cassi aguardou oculta na varanda do quarto, mas o que ela ouviu a fez agilizar seus planos. Tanto faz. Ele não tem importância mesmo.
~o ⭐ o~
Algumas horas depois, Aine e Scylla levaram duas sacerdotisas de confiança, dentre elas a aprendiz de Scylla, e duas Sentinelas fortes até o quarto e bateram na porta.
- Boa noite.... Majestade... Senhora. – Sarin abriu a porta, meio sonolenta. – Algum problema?
Aine e Scylla entraram, com seu pequeno séquito atrás, uma Sentinela guardando a porta fechada. – Minha filha. Onde ela está?
- Dormindo. Eu gostaria de explicar que... – Sarin começou.
- Que você e Cassi estão dormindo com minha filha. – Scylla olhou para ela. – Eu sei.
Metade de Tiger já percebeu. Onde Cassiopeia está?
- Visitando algumas amigas. Ela pediu dispensa por alguns dias para isso. – Sarin pensou em como dar o alerta a Maia sem que Scylla captasse.
- Maia! – Scylla chamou da sala, sem tirar os olhos atentos de Sarin.
- Mãe? – Maia apareceu na porta que levava ao quarto dentro dos aposentos dela. –
Algum problema?
Sarin piscou os dois olhos uma vez e os coçou com sono. Maia entendeu e se preparou. Ou quase. Scylla foi mais rápida. – Me diga, filha, como as sacerdotisas dos Aneis foram com você na viagem? – Scylla se virou para Maia enquanto Aine mantinha o olhar em Sarin, suas mãos soltando fumaça com o calor pronto para a ignição.
- Eu já disse. Elas foram legais, meio quietas, mas legais. Porque? – Maia disse, com o cuidado de lembrar daqueles momentos com elas.
- Porque, filha, eu fico me perguntando como cadáveres gélidos podem ser legais com alguém. – Scylla disse, friamente.
- Não entendi. – Maia disse.
- Nem eu. Ela foram muito simpáticas com Maia... – Sarin começou.
- Cale a boca antes que eu queime ela. – Aine avisou.
- Você entendeu sim. As sacerdotisas já estavam mortas a dias quando vocês passaram pelos templos. – Scylla disse.
- Oh! – Maia colocou a mão na boca, aparentemente chocada. – Não pode ser. Mas, nós estivemos com elas. Deuses... Será que foi algum grupo de assassinas que se fez passar por elas?
- PARE DE MENTIR, CARALHO! – Scylla deu um tapa na cara de Maia, quase a derrubando. – Você acha que sou idiota?
- Sai de perto dela! – Sarin gritou, mas Aine a derrubou de joelhos com um golpe na coluna.
- Mandei calar a boca. – Aine acendeu uma chama em sua mão, pronta para deixar sua raiva sair. – Não vou avisar de novo.
- Eu não entendo...
- Você tem memórias nítidas das mulheres que foram mortas, seus rostos, suas vozes, tudo. Você não poderia lembrar disso porque elas já estavam em estado de putrefação quando vocês chegaram lá. O que só pode significar uma coisa: suas memórias são forjadas.
Então eu pensei: como isso seria possível se minha filha não tem meia gota de magia? Ela teria que ter contato com quem se infiltrou entre essas mulheres e as matou. Mesmo assim, sem magia, não teria como fazer isso. – Scylla disse. – Até você cometer um erro imbecil.
- Eu nunca erro! – Maia gritou.
- Olha ela aí. Finalmente você está voltando, ein. – Scylla debochou. – Sabe o que Lucius acabou de me dizer quando falei com ele pra sondar sobre vocês? Você enviou mensagens telepáticas pra ele.
- Engraçado, tia. – Aine disse em tom de deboche e raiva. – Maia nunca foi telepata.
Afinal ela não tem magia.
- Que curioso, não é, Aine? – Scylla disse sem nunca tirar o olhar furioso de cima de Maia. – Então como, de repente, minha caçula volta de uma viagem misteriosa, com amantes tão apegadas, convivendo com mortas, com memórias delas vivas, e com poderes telepáticos.
- Eu não te devo explicações! – Maia enfrentou Scylla.
- Ah sim, pirralha. Você me deve sim. Sabe que ser pode dar poderes, apenas migalhas porque ele é invejoso demais para dar qualquer coisa? Sabe que ser mataria todas aquelas pobres mulheres? Erínio, aquele ser maligno que eu pessoalmente combato seus enviados!
– Scylla pegou o pescoço de Maia e a empurrou até que ela estivesse forçadamente de joelhos.
Sarin deu um passo em direção à Scylla, rosnando, mas Aine foi mais rápida e a derrubou com uma queimadura de terceiro grau no joelho esquerdo. – Quietinha, animal desgraçado!
Por causa da dor, a aura ácida de Sarin começou a se revelar, mostrando asas de harpia brotando de suas costas.
- Como suspeitei. Sarin é uma harpia muito bem disfarçada. – Scylla disse, sem precisar olhar para trás. – O que significa que Erínio tem planejado a décadas e se fortalecido silenciosamente. Suspeito que desde a época do louco Tigrésius. O que me deixa curiosa é que você, Maia, não se tornou uma harpia.
- Eu sou importante! Sou preciosa! Nunca seria transformada porque eu vou ser esposa dele quando ele derrubar Kallisti e for a divindade mais poderosa do universo! Aí você vai ter que se ajoelhar pra mim! – Maia gritou, tentando se levantar, mas a força de Scylla sobre sua cabeça a manteve ajoelhada.
- Deprimente. Cassiopeia. Ela é uma de vocês? – Scylla perguntou apenas para confirmar suas suspeitas.
- Você está morta, velha! – Sarin rosnou.
- Maia, Luc nunca abusou de você, não é? – Aine perguntou.
- Claro que não. Eu não sou fraca como aquela estrupício da Sunny que se deixava ser usada! Mas eu tenho o filho dele aqui. Bastou uma poçãozinha ilusória leve e ele me comeu feliz. – Maia riu.
- Sua.... – A raiva e a decepção de Scylla eram nítidas.
- Cassi matou aquelas piranhas inúteis e comemos partes delas na viagem. Estava uma delícia. – Sarin disse, como uma a podre que era.
- Só lamento não ter ajudado. Eu ainda não tinha aberto meus olhos para o poder real. – Maia disse e com isso Scylla entendeu. Não tinha mais jeito pra sua filha. Pouco a pouco, mesmo sem ter sido devorada por Erínio, ela já tinha traços fortes de possessão que a transformaria em Harpia logo. No entanto, Maia estava grávida, o que era preocupante também.
- Eu te amei tanto... – Scylla deixou escapar. – Não entendo porque você cresceu a ponto de se tornar isso...
- Vai me curar da maldade do mundo, mamãe? – Maia zombou.
- Não. Você não tem mais cura. Você tomou sua decisão. Por isso, como Grã-sacerdotisa de Kallisti, decreto que você permaneça presa até dar a luz a essa criança que rezo para que não seja infectado pela magia ácida. Depois, - Scylla engoliu com dificuldade, mas se manteve firme no que era necessário – depois você deverá ser morta como a harpia que você optou ser. Quanto a Sarin... Bem, melhor terminar com isso agora. Aine, melhor encontrar Cassiopeia logo para darmos fim a ela também.
- HAHAHAHAHAHAHA! – Sarin e Maia riram assustadoramente.
- Você acha que pode matar ela? – Sarin riu.
- Caso não tenha notado, ser impuro nojento, eu sou a líder das filhas de Kallisti. Esse é o meu trabalho. – Scylla olhou para ela e disse.
- Mamãezinha tola. Você não entendeu, não é? E ainda se acha tão esperta. – Maia disse, seu corpo emanando uma energia tensa. – Você não pode matar um deus, sua estúpida!
Maia cuspiu em Scylla que soltou a mão que a mantinha no chão e pulou para trás.
Ainda bem, porque, quando a saliva de Maia atingiu o chão, ela corroeu o piso como ácido.
- Impossível. – Scylla murmurou. – Maia... O que você fez?
- O mestre lhe deu goles de sua própria magia. HAHAHAHAHA! Vocês vão morreeeeeer! – Sarin se virou e chutou a perna de Aine que, em um reflexo, lançou uma labareda que logo incendiou o corpo de Sarin, alimentando pela natureza de Kallisti no poder Tiger que atacava intuitivamente qualquer resquício de magia ácida. –
HAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHAHA! – A gargalhada assustadora de Sarin só parou quando ela morreu.
Scylla se virou ao sentir um vento gélido e tóxico, mas Maia tinha sumido junto com uma névoa venenosa.
- Verifiquem Gaia. Agora. – Aine ordenou e as Sentinelas, de olhos arregalados, saíram.
O colar de Scylla com o emblema de Kallisti brilhou em uma luz vermelha. Logo o corpo de Sarin brilhou na mesma luz. Quando ela se apagou, no lugar de Sarin, havia apenas cinzas. – Menos uma.
- Me diz que eu entendi errado. – Aine disse.
- Não. Cassiopeia é o pior pesadelo de qualquer likastiano. De alguma forma, durante todos esses anos, ele se fortaleceu a ponto de assumir uma forma física capaz de enganar a todos. – Scylla disse e se virou para Aine. – Prepare-se, Rainha Tiger. Vamos caçar Cassiopeia, o Erínio encarnado.
- Que Kallisti nos ajude. – Aine rezou.
~o ⭐ o~
- NÃO! – Sunny acordou suando nos primeiros raios da manhã depois de um sonho assustador.
- Vem aqui, amor. – Alart tentou puxar ela, mas, desta vez, Sunny não deitou. –
Querida, foi só mais um pesadelo. Ele não pode mais te machucar.
Pesadelos com lembranças terríveis do passado não eram novidade pra ela. A novidade era aquele pesadelo. Não. Não foi um pesadelo. Sunny entendeu e não conseguiu controlar o choro, jogando as cobertas para o lado e levantando aos prantos para se vestir.
Alart se levantou preocupado, tentando segurar ela, mas Sunny estava incontrolável.
~o ⭐ o~
- Vou logo cedo. Assim encontro ela na saída para os cânticos matinais do templo. –
Les amarrou a bota, sentado na cama.
Ane o abraçou por trás. – Tenha cuidado, Les. Não sabemos quantos aliados e qual o tamanho do poder que Erínio já tem. Nem... – Ane engoliu em seco, tentando não pensar nisso. – Nem em Aine podemos confiar ainda.
- Eu sei, amor. Mas Scylla vai saber o que fazer depois que eu falar com ela.
- Traz ela na hora do almoço. É a hora que ela tira para descansar normalmente e não vai atrair suspeitas. – Ane disse.
- Certo. Tenha cuidado, minha futura esposa. – Les disse com um sorriso e a beijou.
- Les... Já falamos sobre isso. – Ane riu.
Les ia responder, mas o ar pareceu denso de repente, seu peito ardeu. Ele puxou Ane, tentando sair com ela dali, mas ela já estava caindo de olhos arregalados, sem ar. Les tentou com todas as forças lutar contra aquilo que parecia corroer seus pulmões. Sua mão alcançou a pequena bolsa com uma poção de cura genérica que ele carregava o tempo todo. Mas uma risada cruel ecoou em sua mente segundos antes dele apagar.
HAHAHAHAHAHAHA! MORRAM, PRINCIPEZINHO INÚTIL E RAINHA VAGABUNDA!
Aine.. . Foi o último pensamento de Ane.
Cassi entrou pela varanda, respirando fundo, com um sorriso no rosto, aquele ar venenoso. Com um aceno distraído, a fumaça desapareceu. Os corpos de Ane e Les estava abraçados na cama, com olhos e bocas arregalados. Cassi cutucou os dois com nojo e com inveja da ligação deles.
- Adiantou alguma coisa serem tão apaixonadinhos? Aí! Morreram do mesmo jeito.
Mortais inúteis. – Cassi ia tacar foco no lugar, debochando do principal poder felino ligado a Kallisti, para dar fim ao casal, mas um sinal de Maia a atraiu. Diga, bonitinha. Saudades de mim?
Descobriram a gente e mataram a tosca da Sarin. Maia informou.
Já está no nosso lugar? Cassi perguntou.
Sim. Você sabe que sempre faço tudo perfeitamente, querido. Maia disse orgulhosa.
Estou chegando. Cassi disse. – Parece que vocês vão servir pelo menos pra deixar meu recado pra esse bando de merdinha. É bom saberem que eu dei um jeito em vocês, dupla de inúteis.
~o ⭐ o~
- Luc? – Lich chamou no comunicador.
- Oi, maninho. Já ia te chamar. – Luc respondeu, totalmente alerta.
- Você está bem?
- Eu ia te perguntar isso. Merda. – Luc lembrou do irmão.
- Les. – Lich comentou o que Luc também pensara. Se eles dois tinham sentido aquela falta de ar, aquela angústia repentina, e não era com nenhum deles, só podia ser com o trigêmeo do meio. Eles não sabiam como, mas tinham certeza de que algo tinha acontecido com seu irmão.
Quando os irmãos se encontraram no corredor, puderam ouvir as vozes de seus pais nas proximidades. Eles se entreolharam e seguiram o som. Sunny estava saindo do palácio, envolta apenas em um roupão sobre a camisola, visivelmente angustiada, e Alart preocupado atrás tentando entender porque ela não falava coisa com coisa. Quando o olhar de Sunny e os dos filhos se encontraram foi como um soco na cara. Ela, uma Tiger, membro do povo que nunca chora, caiu no chão aos prantos. Naquele momento ela teve certeza. Seu sonho não fora mesmo um sonho. Les estava morto.
~o ⭐ o~
A inteligência é um dos talentos mais admiráveis e valorosos em qualquer universo.
Mas, às vezes, ela vem acompanhada da dor. Afinal, abrir os olhos e ver o que não queremos ver é sempre doloroso, porém necessário.
Capítulo 11
Como é difícil educar. Criar é fácil. Qualquer um com inteligência e as diretrizes certas consegue criar. Mas educar? Ah, isso e um desafio que mortais, imortais, mães, divindades...todos temos em comum.
~o ⭐ o~
- Mãe, isso é impossível. – Gaia se levantou irritada, algo que era incomum na sempre tranquila jovem. – Não sei o que aconteceu, mas a Ma nunca seria uma...uma...
- Uma harpia? Não, filha. É pior. Ela é uma seguidora de Erínio, alguém que, de livre e espontânea vontade, aceitou o poder daquela coisa para ter suas ambições atendidas. –
Scylla disse firmemente.
- Não! É da Maia que a gente está falando, mãe! Minha irmãzinha caçula, doce, meio temperamental às vezes, mas um doce! Ela me deu essa joia linda sem nada que a obrigasse a gastar comigo! – Gaia mostrou o anel lindo em seu dedo. - Ela até me defendeu com o Luc! Que abusou dela!
- É minha filha, Gaia, caso você não se lembre. Uma criança planejada com muito amor e carinho tanto por mim quanto por Hieron.
Gaia cruzou os braços ainda irritada.
- Espera um minuto. Maia te deu... – Scylla pareceu finalmente entender. – Deixa eu ver isso.
- É só um anel... – Gaia ainda estava de mau humor.
- Agora, Gaia! – Scylla disse mais firme e a filha entregou o anel. Bastou uma olhada rápida no interior da pedra para confirmar suas suspeitas. – Por Kallisti... Como não percebi isso?
- O que?
- Estava aqui tentando entender como Maia conseguiu replicar tão bem sua forma e sua voz para iludir Luc.
- Ela não iludiu ninguém! Ele que me traiu e ainda abusou...
- Gaia, eu sei que você ama sua irmã, mas eu tenho um limite de quanta tolice posso aturar. Esta pedra é artificial, feita para reter e moldar a magia de alguém de forma a causar visões com o que a pessoa atingida mais deseja. Precisa de um poder considerável e, pelo resquício venenoso na magia, posso apostar que é de Sarin.
- Mas...mas... – Gaia sabia que Scylla nunca mentiria sobre magias. Ela era muito ética nesse assunto. Esconder ela até poderia, mas mentir não. – Mãe...Maia é minha irmãzinha...Ela sempre foi...
- Invejosa, Gaia. Porque acha que a enviei para a purificação? – Scylla disse tentando ser mais compreensiva.
- Mas... – Gaia sentou no chão, incapaz de dar nem mesmo um passo. – Não pode ser... Mãe ela...ela ama a gente. Não é?
- Agora, minha lindinha, acho que esse amor morreu faz mais tempo do que gosto de admitir. – Scylla sentou no chão, ao lado dela, com dificuldade por causa da perna com problemas musculares antigos. – Sinto muito, querida. Eu devia ter feito algo antes, ter sido mais rigorosa, ter educado ela melhor.
- Pára, mãe. Eu tive a mesma educação e estou aqui, bem longe desse maldito. Não é sua culpa. A senhora sempre deu o melhor de si pra gente, nos educou e nos amou igualmente. – Gaia disse e a ficha finalmente caiu. – Então... Luc...?
- Ele é inocente filha. A única culpa dele foi te desejar demais. Aquele rapaz com problemas de nervosinho te adora. Até estranhei o ataque dele à sua irmã por causa disso, mas a ilusão na mente dele explicava tanto. Tenho que me desculpar com o rapaz.
- Mãe? A senhora? Se desculpar? – Gaia brincou.
- Gaia, quando a gente erra e entende isso, o mínimo que devemos fazer é nos desculpar.
- E o bebê da Maia? É do Luc mesmo?
- Possivelmente, sim. Mas só posso ter certeza fazendo os testes quando a encontrarmos. – Scylla deu um tapinha no joelho de Gaia e disse: - Agora chega de papo. Vá atrás do seu namorado, filha.
- Mas... Ele não vai me querer...
- Gaia, ele teria que ser louco ou idiota para não querer você. Filha eu sei que você é mais parecida com minha mãe nessa coisa de timidez. Mas há momentos na vida que a gente precisa jogar a timidez para o lado e correr atrás do que a gente quer. – Scylla disse e se calou para atender seu comunicador. – Sim? – Ela ouviu e desligou, se levantando em seguida com ajuda de Gaia. – É querida, parece que vamos ver seu amado mais cedo do que você pensa.
- O que foi, mãe? Luc está bem?
- Sim, mas... Eu preciso contar uma coisa ruim, amorzinho.
~o ⭐ o~
Quando Scylla chegou com Aine e Gaia na frente da casa de Ane haviam vários felinos curiosos nas proximidades, soldados, magos, a guarda do Rei e, ao longe, mais na entrada da casa, estavam os gêmeos e seus pais. Não havia murmúrios, sussurros, conversas, nem mesmo os pássaros cantavam como se toda a natureza estivesse de luto. Porém, triste e assustador, havia apenas gritos desesperados e raivosos de Sunny que percorria metros e metros na região.
- MEU FIIILHO! MEU MENINO! NÃÃÃÃÃÃ! PORQUE O MEU BEBÊ!? PORQUE??? ANE, MINHA AMIGA..... – Sunny chorava a ponto de soluçar. – EU VOU MATAR QUEM FEZ ISSO!
QUEM FOI? ME SOLTA! EU QUERO IR ATRÁS DE QUEM FEZ ISSO! MEU FILHINHO!!
Alart apenas segurava a esposa em um abraço forte para que ela não corresse de novo para o quarto onde estavam os corpos e visse as expressões assustadoras no rosto do casal. Os gêmeos conversavam baixo com os magos que investigavam um pouco mais distante. Scylla se aproximou e o mago leonino silenciosamente a levou até a cena do crime. Aine abraçou os gêmeos de uma só vez e depois foi até Sunny tentando acalmá-la.
Gaia ficou perto dos gêmeos, sem saber o que fazer com as mãos e, sem perceber, começou a roer as unhas até que uma mão masculina tirou delicadamente a mão dela da boca.
- Você devia parar com isso. Vai acabar se machucando. – Luc disse com um olhar triste. Para surpresa dele, ela o abraçou forte.
- Eu sinto muito. Por tudo.
Lich se afastou silenciosamente.
- Eu também. Eu...eu gostaria de não ter feito aquela atrocidade para poder ter você do meu lado agora...
- Você não fez. – Gaia se afastou um pouco e o olhou nos olhos. – Você é inocente.
- Gaia, eu...
- Luc, eu lamento pelo seu irmão. E pela minha. Ela...ela...eu nem sei como contar.
Mas o que importa agora é que você é inocente e...e...
- E...?
- E...eu... – Gaia abaixou a cabeça, a voz quase sumindo.
Luc levantou seu queixo com um teto, forçando ela a olhar para ele. – Diga o que você quer, Gaia.
- Você. Eu..Eu quero ficar com você. Mas...se você não quiser...
Luc encostou sua testa na dela, ainda não entendendo nada, mas aliviado. – Eu amo você, menina boba. Só se eu fosse um idiota para não querer a mulher que amo.
Alart ao lado de Lich e Sunny, não entendeu nada, mas seu filho mais novo tocou em seu ombro e, daquele jeito silencioso, o fez entender que as coisas com Gaia e Luc tinham se resolvido.
Pelo menos uma coisa para aliviar a mente do meu amor. Alart pensou.
Quando Scylla entrou no quarto, seu coração se apertou. Ela desconfiava do interesse de Les em Ane a algum tempo. Não era surpresa. Mas ver os dois com aquele semblante de terror, obviamente intoxicados, com resquícios da magia ácida no ar e os documentos que ela enviou para Ane analisar jogados no chão, não precisava ser nenhum gênio para entender o que tinha acontecido. Pela hora da morte que o mago leonino lhe deu ficou
claro que Cassi tinha sido contactada por Maia pouco depois dela sumir auxiliada pela magia final de Sarin. Cassi, sabendo que tinha sido descoberta, não se deu ao trabalho de esconder seu crime ou os documentos. Ela informou aos magos leoninos sobre o perigo e partiu para o palácio leonino com a família do rapaz, enquanto os corpos eram levados para os cuidados necessários dos magos.
Mais tarde, depois de dar uma das poções calmantes da própria Sunny para ela tomar, Scylla reuniu todos no gabinete real.
Alart, visivelmente abatido, estava sentado atrás de sua mesa de trabalho com a esposa protetoramente em seu colo, de lado; Aine estava de pé perto da porta com Lich sentado visivelmente cansado na cadeira mais próxima dela; Luc e Gaia estavam sentados lado a lado, de mãos dadas, no pequeno sofá com uma mesa de centro no meio e a cadeira alta de Scylla do outro lado.
Sunny pensou em reclamar com o filho por estar de mãos dadas com a irmã de sua futura esposa, mas não tinha forças para nada. Sua garganta queimava e parecia arranhada, seu corpo parecia ter chumbo no lugar dos ossos, sua cabeça doía mais que o habitual e seus olhos ardiam e ela não tinha vontade de nada, apenas de matar quem matou cruelmente seu filho e sua amiga. Ela podia sentir a mão de Alart subindo e descendo por sua coluna, tentando lhe dar algum conforto, mas tudo o mais parecia tão distante.
- Eu sei quem matou seu filho e Ane. – Scylla disse, quebrando o silêncio.
Sunny logo ficou alerta. – Quem foi? Fala. Eu vou...
- Ficar calma. – Scylla disse.
- Tia, escute primeiro. – Aine disse.
- Sunny quem matou Les não é uma pessoa normal.
- Claro que não! Todo mundo amava meu filho! E matar daquele jeito...
- Sem falar que Les era muito forte por causa da vida do exército. – Alart disse, se perguntando se teria sido um militar ou alguém que fazia trabalhos braçais e também era mago. Porque a magia envolvida era inconfundível. Poderia ser as harpias também, afinal tinha magia ácida residual, mas Les nunca foi invejoso, Ane muito menos.
- Matar alguém daquele jeito só pode ser coisa de um louco. – Luc disse.
- É pior. – Scylla comentou. – Foi a Cassiopeia.
- Quem? – Sunny buscou na memória e finalmente se lembrou da jovem que ela mal vira duas vezes. – A sacerdotisa?
- Não me lembro dela... – Alart disse.
- Não é a moça que serviu de guia pra Maia na viagem? – Luc perguntou.
- Sim. – Gaia disse, quase baixo demais para alguém ouvir.
- Isso não faz sentido. – Sunny disse. – Com alguém tão pequena e com uma magia tão básica faria isso? E porque?
Lich juntou as peças em sua mente, mas a conclusão parecia irreal demais. Isso até seu olhar cruzar com o de Aine. – Céus.... Não uma harpia comum, não é?
- Não. – Aine respondeu tristemente.
Scylla então contou tudo o que tinham descoberto e o que aconteceu horas antes.
- Mas... Scylla, porque matar os dois que nem mesmo estavam em Tiger? – Alart perguntou.
- Desconfio que Cassiopeia sabia que Ane estava prestes a descobrir algo importante nos documentos que mandei, então veio aqui para roubar eles, destruir alguma parte ou só dar um fim nela caso ela já tivesse entendido tudo.
- E Les estava junto. – Luc completou.
- Ele ia pedir ajuda de Scylla em algo para contar uma coisa que Ane tinha descoberto.
– Lich disse. – Mas não sei detalhes.
- Sério? – Gaia perguntou.
- Sim. Ele me mandou um comunicado ontem de noite falando sobre o quanto estava preocupado com o que descobriram e pedindo para eu não contar nada pra ninguém por enquanto. – Lich comentou. – Aparentemente, nem eu devia saber disso, mas... Bem vocês sabem como somos.
- Sempre contam tudo um para o outro, mesmo que para um só por um tempo. –
Sunny disse.
- O que vamos fazer? As harpias já não são fáceis de lidar. Nem mesmo para as sacerdotisas de Kallisti que possuem justamente esse trabalho. Erínio então... E tão fortalecido. – Alart perguntou.
- As sacerdotisas de Kallisti do mundo todo estão em alerta máximo e agora os magos leoninos também. – Scylla disse. – Aine convocou o conselho Tiger para uma reunião emergencial, mudando alguns planos de governo para focar os recursos e magias em um possível confronto. Mas temos uma arma secreta na qual Erínio não tinha pensado e que vem tentando atrapalhar.
- Que arma? – Sunny perguntou.
- Você.
- Eu?
- Sim, Sunny. Você é a detentora atual da magia onírica mais poderosa do mundo.
Sempre pareceu esquisito magos oníricos morreram tão cedo nos últimos anos. Mesmo vivendo até a meia-idade, ainda parecia uma coincidência estranha. Dreyfus morreu cedo, sem nenhum descendente dessa magia. Você foi mantida em segredo durante anos, nem podendo exercitá-la. É por isso que você só começou a sentir os efeitos recentemente.
- Efeitos de que? – Alart perguntou.
- Sabotagem mágica. Notou a dor de cabeça cada vez mais constante em Sunny? –
Aine perguntou.
- Sim, mas, ela tem tido pesadelos e...
- Outro efeito. Traumas transformados em pesadelos, dores de cabeça leves e cada vez mais constantes, aumento gradual na agressividade... Alguns chás ajudam a retardar os efeitos, mas o fato é que, a longo prazo, a sabotagem leva à loucura ou à morte. – Scylla disse.
- Chá de flores verdes. – Sunny murmurou.
- O mesmo que você, por uma bênção de Kallisti, se tornou fã nesses anos. – Scylla sinalizou.
De nada.
- Mas, ainda não entendo... – Luc comentou. – Como a magia natural da mãe pode ajudar a deter Erínio?
- Ainda não sei, mas não tenho dúvidas sobre a eficácia. Ele não se daria ao trabalho de tentar exterminar os magos oníricos mais poderosos da história se não fosse um risco para ele. – Scylla respondeu. - Como o maior fragmento do poder de Kallisti está na magia de fogo dos reis e rainhas Tiger, suspeito que a magia onírica tenha algum funcionamento combinado com ela que ainda não conhecemos.
- Pode ser isso que a mamãe descobriu e tentou nos avisar. – Aine disse e só naquele momento a maioria ali se lembrou que ela tinha perdido a mãe.
Lich olhou de relance para seu pai que apenas deu de ombros.
- Lich, quero falar com você. – Scylla disse. – Depois, se não for incômodo.
Ele sabia que ela não dava a mínima para se fosse incômodo ou não.
Ela sabe. Alart pensou, angustiado.
- Claro. – Lich disse, não parecendo abalado em nada.
- Eu quero aqueles papeis. – Sunny levantou rápido, logo ficando tonta.
- MÃE! – Lich e Luc correram e seguraram cada braço dela.
- Amor.. – Alart se levantou.
- Não. Eu não vou descansar, Alart. Aquela coisa matou meu filho e minha amiga. Que se dane o poder dele, eu vou caçar aquilo até no Abismo do Nada se for preciso! – Sunny não enxergava nada, sua vista escurecida.
- Mãe, quando a senhora comeu? – Luc perguntou.
- Eu..não lembro. O que isso importa?
- Importa pra gente, mãe. – Lich respondeu.
- É melhor você descansar. Precisamos de você bem para ... – Scylla começou, mas Sunny estava irredutível.
- Eu vou olhar aquela porcaria toda e você não vai me impedir, Scylla!
- Tia, acalme-se. – Aine disse baixo, mas firme. – Não vai ajudar se estiver desmaiada.
Pelo menos coma algo e descanse.
- Eu pedi para a cozinheira fazer aquela sopa do jantar a umas semanas... – Gaia disse baixinho, atraindo todos os olhares. – Desculpe...eu...não quis ser enxerida...
- Parece que alguém já sabe agir como a rainha deste palácio. – Sunny sorriu, ainda meio triste.
- Alguém escolheu bem a namorada, ein. – Alart olhou para Luc, propositalmente deixando o rapaz orgulhoso e meio sem graça.
- Muito bem. – Scylla disse, com o peito estufado de orgulho da filha, mal se contendo.
– Luc, antes de tudo, quero pedir perdão por não ter acreditado em você.
- Não, tia Scylla. – Luc ajudou o pai e o irmão a fazer Sunny sentar e se virou para a sacerdotisa. – Eu entendo. Nem eu acreditei em mim depois daquela confusão de memórias. A senhora fez o que era justo no momento. Eu não sei se teria sido tão sensato se fosse com uma filha minha. Mas... – Ele coçou a nuca, nervoso. – Ajudaria bastante a superar esse trauma se a senhora deixasse eu me casar com sua filha mais velha.
- Lucius! – Alart chamou atenção.
- O que? Eu estou traumatizado, sofrendo, preciso de um pouco de colo. – Luc respondeu e Gaia não teve nenhuma reação além de ficar de boca aberta feito bocó.
- Pelo menos o nervosinho sabe aproveitar uma oportunidade. – Sunny disse, tirou sutilmente o mais bonito dos anéis q usava e colocou na mão do filho mais velho. – Pede direito, moleque! Parece que não te eduquei, caramba.
- A senhora...tipo....éééé...tipo...
- Permite. – Lich disse atrás dele, agachado ao lado da mãe e verificando a pulsação e temperatura dela.
- Isso. Permite? – Luc perguntou.
- Se eu disser que não você vai pedir mesmo assim. – Scylla disse, lembrando a conversa que eles tiveram quando Luc pediu para namorar Gaia. – Vai logo, garoto. Não tenho a noite toda.
Luc deu alguns passos até Gaia, abaixou em um joelho, pegou o anel com asas de borboleta nas laterais e uma pedra azul celeste no meio, pegou a mão dela, pigarreou sentindo como se sua garganta tivesse cheia de areia e disse:
- Ga...Ga... Karrankarran. É...
- Gaia. – Lich disse, ainda focado em sua mãe.
- Isso. Gaia. Você é a mulher mais intel....intel...você sabe...
- Inteligente. – Lich disse.
- Isso. Inteligente. E doce, gentil, paci....paci...
- Paciente. – Lich completou se levantando e enchendo calmamente um copo com água para a mãe.
- Paciente. É. Então, eu só quero dizer que eu te amo e quero saber se você quer....-
Luc esqueceu a palavra de tão nervoso que estava. - Como é que se diz mesmo...
- Casar. – Lich entregou o copo para Sunny que não sabia se achava fofa a cena ou cômica.
- Casar comigo. Isso. Você quer casar comigo? – Luc disse e prendeu a respiração. Na fração de segundo que levou para ela responder ele imaginou os piores cenários de possíveis negativas dela.
- Sim, seu bobo. – Gaia segurou as lágrimas bravamente como uma Tiger perfeita, mas elas ainda estavam lá, estampadas em seus olhos.
Luc sentiu como se seu coração finalmente tivesse voltado a bater, colocou o anel no dedo dela, beijou sua mão e lhe deu um beijo que deixou ela sem fôlego e envergonhada.
- Finalmente. – Aine disse e abraçou os dois. – Luc se fizer ela sofrer vou queimar sua juba. Gaia se fizer ele sofrer nunca mais te empresto meus batons. Estão avisados.
~o ⭐ o~
Lich ignorou Scylla por enquanto, sua prioridade sendo Aine. Aine saiu sutilmente e foi para uma das varandas do palácio, se isolando como sempre fazia quando estava triste.
- Vem aqui. – Lich apareceu do lado dela, com braços estendidos.
- Eu estou bem. – Aine sorriu, mas o amigo permaneceu do mesmo jeito. Seus olhos teimosos se encheram de lágrimas e, não querendo que ele visse, ela se jogou nos braços dele e finalmente, pela primeira vez, pôde lamentar a morte de sua mãe.
- Eu estou aqui. Sempre. – Lich disse, não se referindo apenas àquele momento.
Depois de quase uma hora, ambos estavam sentados no chão, abraçados, enquanto Aine deixava sair toda a dor que não podia demonstrar em público. Afinal, os Tiger eram conhecidos por tratarem demonstrações de emotividade como fraqueza.
- Eu...eu queria pedir uma coisa. – Aine disse, quase sem voz.
- Sim.
- Mas eu ainda nem disse o que é.
- Pra você, sempre será sim a resposta. – Lich disse.
- Bobo. – Aine deu um tapinha no braço dele, achando que era brincadeira. – Então...
Você pode dormir comigo hoje? Eu sei que é ridículo e que você precisa cuidar da tia, mas...não quero ficar sozinha...
- Minha mãe tem meu pai pra ficar com ela, Aine. Claro que vou ficar com você.
- Se bem que não me sinto sozinha sempre... – Aine disse, mas não quis explicar e Lich sabia que não devia dar corda.
Depois de algum tempo, ela entrou e Lich ficou ali, aproveitando a brisa da noite no lugar que era preferido de Les, como se estar ali pudesse fazer seu irmão estar mais perto agora.
- Comovente. – Scylla disse, saindo do canto escuro, do lado de dentro da sala que dava na varanda.
- Fiquei pensando quando a senhora ia interferir. – Lich disse, calmamente olhando para as estrelas.
- Não ia. Aine precisava desabafar. – Scylla ficou ao lado dele, observando as estrelas.
– Quanto tempo você faz isso?
- Faço o que?
- Não se faça de desentendido comigo, garoto. Você é bom em descobrir e manter segredos, mas na arte que você está começando eu sou mestra desde a infância.
- Desde muito novo. – Lich respondeu, sabendo que era inútil negar.
- Sabe que isso é errado e um crime?
- Sei. Não consigo parar.
- Hum. Aine sabe?
- Não.
- Sabia que quase indiciei você pela morte daquela candidata no litoral?
- Imagino. – A calma de Lich era surreal.
- Lich, não estou brincando.
- Eu sei.
- Seus pais sabem. – Não era uma pergunta.
- Estão tentando me ajudar a parar.
- Não vão conseguir. Isso é uma compulsão. Quantos alvos você tem além da Aine?
- Faz mais de 10 anos que só ela.
- Pessoas como você tendem a querer cada vez mais porque seus alvos não querem conviver com isso. Até terminar matando, torturando suas vítimas. O que vai acontecer quando Aine descobrir e não quiser ficar perto de você?
Lich sentiu-se tremer por dentro com a possibilidade.
- Exatamente. – Scylla se virou para ele. – Você precisa de ajuda, Lich. Os templos dos anéis estão vazios agora, mas vamos treinar novas sacerdotisas e reconstruir essa parte do culto. Até lá, procure outros templos que...
- Fiz isso a meses. Não adiantou. – Lich disse e completou telepaticamente, sabendo que ela ouviria: Eu tenho essa compulsão sim, mas também a amo.
- Vamos? – Aine chamou da porta, parecendo um pouco estranha.
- Sim. – Lich disse, se virou para Scylla e beijou sua mão. – Com licença, tia.
- Amanhã me procure. Vou ajudar no que puder. – Ela sussurrou para ele.
Não vou deixar mais alguém que ajudei a educar se perder em algo ruim. Scylla pensou decidida a ajudar ou, em último caso, denunciar e prender Lich.
~o ⭐ o~
Por melhor que você eduque, por mais que você faça um bom trabalho, nada garante que quem você educou ande corretamente. E isso é uma das coisas mais difíceis de aceitar na vida...
Ou na morte.
Capítulo 12
Acho que já comentei que precisei fazer um acordo com aquele traidor de quinta categoria para evitar que nossas batalhas destruíssem mais coisas no universo. Em suma, o acordo nos impede de jogar os seres sapientes contra qualquer um de nós e de obrigar um desses seres a nos apoiar. Se não interferir nisso, nós dois podemos fazer qualquer coisa sem que necessariamente termine em guerra.
~o ⭐ o~
- Você precisa aprender a ser paciente. – Cassi disse. Sentada com as pernas esticadas na cama, as mãos apoiadas atrás da cabeça, ela observava Maia andando de um lado para o outro no quarto, praticamente espumando de raiva.
- Eu não quero ser paciente. Eu quero o que é meu por direito! Você disse que o trono seria meu e aquele poder dos Tiger também!
- E será.
- Mas quando?
- Em breve. – Cassi respondeu, começando a perder a calma.
- Eu quero agora! – Maia bateu o pé no chão, sua mente gritando a mesma frase.
- Paciência, Maia.
- Não! Eu espero a vida toda pra ser valorizada por essa família, esses felinos idiotas!
ESTOU CANSADA DE ESPERAR POR MUITO TEMPO ASSIM!
Cassi levantou tão rápido que Maia foi pega de surpresa quando o punho da outra fechou sobre sua garganta, dando um aperto firme e gradual, apenas suficiente para assustar e deixar claro quem dava as ordens ali.
- Você espera por muito tempo? – Cassi disse em tom baixo e ameaçador, sua voz soando mais masculina e rouca, seus olhos ficando totalmente negros como dois abismos escuros, sem íris, sem pupilas, apenas trevas. – Eu espero desde o início da miserável vida neste maldito universo por um valor que nunca recebi. E mesmo assim sei agir com paciência. Quem é você para dizer por quanto tempo você vai ou não esperar alguma coisa?
Lentamente, mas com força, Cassi fez Maia se ajoelhar na sua frente. – Você vai esperar até eu mandar você esperar. Quem é seu dono aqui?
- Vo...cê... – Maia disse, engolindo a humilhação, mas sabendo que era isso ou ser devorada por ele.
- Nunca esqueça disso, mortalzinha. Ou posso escolher outra pessoa mais útil pra mim, já que você cometeu a burrice de perder seu posto vantajoso ao lado daquela sacerdotisa insuportável e ainda levou uma das minhas mais fortes harpias à morte no processo.
- Eu... – A visão de Maia estava embaçando pela ausência de ar. – Não foi...minha...culpa...
- Claro que não. – Cassi soltou bruscamente o pescoço de Maia que caiu de quatro no chão ofegando. Quando voltou a sua posição na cama, os olhos e a voz de Cassi tinham voltado ao normal. – Aqui. – Ela sinalizou para Maia deitar ao seu lado.
Ainda se sentindo humilhada, mas obediente, Maia se deitou e Cassi a puxou com um braço.
– Por que temos que esperar? Você tem tanto poder... A gente poderia matar todo mundo rapidinho. – Maia disse, meio rouca, seu poscoço com marcas escuras de mãos.
- Não que seja da sua conta, mas preciso derrubar algumas pedrinhas irritantes no meu caminho. Pelo menos pude impedir aquele casalzinho sem sal de abrir a boca.
- Sempre soube que aquela Ane era sonsa. Aposto que ela traía a rainha com o Lesath.
– Maia destilou o veneno.
- Certa, não é. Pra que ficar só com aquela velha se podia pegar o rapaz fortinho também. – Cassi gargalhou.
- Sunny é outra sonsa. Aposto que ela pega alguns guardas também.
- Aquela ali em breve vai cair. Sarin fez um bom trabalho, pelo menos.
- Quando ela cair...
- Só precisarei derrubar mais um. E, com o que você descobriu, vai ser bem fácil.
Cassi tentou puxar a blusa de Maia para baixo, mostrando seus seios, mas ela ainda estava chateada e tentou impedir. Foi um grave erro. Cassi soprou uma magia ácida que corroeu a peça de roupa e alguns de seus pelos, depois subiu sobre Maia e fez o que bem quis por mais de uma hora.
~o ⭐ o~
- A fonte da magia de Erínio já foi mais forte. – Sunny comentou, lendo um manuscrito, cercada por um monte de papeis, sentada no meio da cama. – Ele não pode obrigar ninguém a ajudar, nem jogar alguém contra Kallisti. O mesmo vale para A Bela. Como o poder dele é limitado, ele não anda entre mortais porque isso consome muito de sua energia. Mas, com economia de fonte e alguns ajustes, pode conseguir. Em geral, Erínio prefere assumir a forma feminina em um desrespeito com a Deusa, mas também pode ser um homem. O mais prático porém, é apenas alimentar defeitos e pensamentos negativos de outros seres, assim criando infectados pela magia e...
- Você devia estar dormindo. – Alart entrou e disse visivelmente irritado.
- Aham... – Sunny nem deu atenção, focada na leitura. – Se ele for descoberto a tempo e...
- Sunny! – Alart falou mais firme e começou a recolher os papeis ao redor dela.
- O que está fazendo? – Sunny perguntou irritada.
- Você precisa dormir!
- Mas eu sei que estou perto de desc...
- Sunny! – Alart realmente estava irritado e isso era incomum.
- O que você tem?
- Que droga. Sunny eu preciso que você descanse um pouco. Sabemos que você é um alvo de Erínio. E... Que droga! Eu não posso perder você, caramba. Será que você não entende? Preciso que você esteja bem! Os meninos também precisam! Isso pode esperar pelo menos que você durma um pouco.
- Sinto muito. Eu não sabia que... – Sunny suspirou. – Certo, certo. Vou descansar um pouco. Se você ficar aqui comigo, claro. Afinal eu preciso de braços fortes ao meu redor ne.
- Como se tivesse alguma chance neste mundo de que eu deixasse você sozinha. –
Alart a beijou e deitou, puxando ela junto.
- Aai! – Sunny não conseguiu evitar o gritinho surpreso.
- Eu não tive nenhum pressentimento... Será que sou um pai tão ruim? – Alart soltou o que estava em sua mente desde a fatídica manhã.
- Alart... Você é idiota? – Sunny perguntou com sua pouca sutileza.
- Também te amo, minha linda. – Ele sorriu.
- Sério. Você sempre foi mais próximo dos meninos. Aqueles três sempre procuram você pra tudo. Eu... Bem, confesso que sempre me senti menos confiável para eles por isso.
- Sunny...
- Quieto. – Ela deu um tapinha em seu peito. – Deixa eu terminar. Você não sentiu nada provavelmente porque bastava um de nós surtando e você tem trabalhado o triplo desde que decidiu se aposentar para deixar tudo organizado pro nosso noivinho. Você já deita dormindo a meses, querido. Só acorda quando eu me solto do seu abraço porque você é meio doido por mim.
- Meio é bondade, querida. Mas confesso que me sinto péssimo. Luc e Lich sentiram, você sentiu... E eu não. Eu estava dormindo tranquilo.. Quem dorme tranquilo quando o filho está morrendo?
- Um pai que não sabia e estava cansado beirando a estafa. Não se cobre tanto, amor.
Às vezes Kallisti não permite que a gente viva coisas para as quais não está preparado.
- Só pra contar, linda, só você não percebe o quanto os meninos sempre foram apegados a você. Eles só evitam te levar problemas porque herdaram meu talento natural para querer te proteger.
- Eu nunca pensei nisso... – Sunny disse e fez uma nota mental para falar com os dois rapazes mais tarde.
- Durma querida, amanhã temos a reunião com os magos leoninos, Tiger e Aine. –
Alart disse e com um sorriso, ao se virar para beijar a testa dela, percebeu que a esposa já tinha dormido.
~o ⭐ o~
Em Tiger, Gaia esteva no quarto da irmã, triste, abalada, mas decidida. Ela tinha revirado tudo no quarto, quebrado algumas coisas onde achava que poderia ter algo escondido, mas nada de útil surgira. Nem ela saba o que procurava, mas sabia que precisava fazer isso.
- É mais útil com alguém que tenha magia. – A Sentinela disse na porta, carregando um copo de suco.
- Nira.
- Para sua sorte, eu tenho um pouco de magia. Porque você não esperou sua mãe ou as sacerdotisas que vão dar uma segunda olhada aqui? – Nira perguntou.
- Não sei... Acho que pensei que poderia encontrar algo por... Eu achava que éramos próximas..
- Vocês eram. Acredito que a força que Maia ainda conseguiu ter para pedir ajuda foi muito por sua causa também. Mas, infelizmente, no fim ela escolheu seu caminho. Posso?
Nira apontou para o quarto, pedindo para ajudar.
- Claro.
Nira sondou magicamente vários objetos que Gaia escolhia para passar pelo teste, tentando sentir qualquer energia diferente ou suspeita. Mas deu no mesmo. Nada foi encontrado.
- Talvez eu esteja procurando no lugar errado... – Gaia disse.
- Como assim?
- E se...E se ela não escondia nada aqui por segurança?
- E onde mais ela poderia esconder?
- Não sei... Maia só tinha um lugar preferido, a piscina, e não tem como esconder nada lá.
- Talvez... – Nira disse. – Vou reunir algumas pessoas de confiança e testar sua teoria.
Mas deveria ir ver sua mãe. Não diga pra ela que eu te contei, mas ela está muito triste.
Acho que um abraço da filha querida dela pode ser um bom remédio, não acha? – Nira piscou para ela e saiu.
~o ⭐ o~
- Então esse é o plano. Dúvidas? – Aine perguntou.
- Como temos certeza sobre o alvo? – Alart perguntou.
- Em uma palavra? Kallisti. – Scylla disse.
- Entendo. Uma dica boa, sem dúvida. – Um dos magos leoninos chefe comentou. –
Recemos durante o ritual entre nós. Foi tão bonito...
- Imagino. Bem, então vamos apenas ganhar tempo? – Sunny perguntou, sentindo-se irritada sem motivo. De novo.
- Por enquanto, sim. Precisamos decifrar aqueles arquivos. – Scylla disse.
- Então está mesmo lá? Eu sabia!
- Sim, Sunny. Está. Vou enviar minha assistente para te ajudar...
- Não. Eu posso ver isso sozinha. – Sunny disse, irritada.
- Amor, você precisa...
- O que? Descansar? Me polpem! Não sou de cristal, droga! – Sunny gritou.
- Tia, você precisa estar descansada para evitar que essa coisa, seja lá o que for o Olhos Negros fez com você, tome conta. Não sabemos como isso age. – Aine disse.
- Exatamente. Não sabemos muita coisa sobre esse plano antigo desse monstro. Nem sabemos se descansar vai ajudar em algo. Prefiro ajudar no que sei que vai ter algum efeito.
– Sunny disse e ergueu a mão para evitar que Alart dissesse qualquer coisa. – Quanto à sua oferta de ajuda, Scylla, sua assistente precisa estar com você agora, não é?
- Sim. Mas você também vai fazer mais progresso com ajuda.
- Concordo. E não podemos confiar em qualquer uma. Além de não ser muito legal chamar atenção desnecessária. Assim, porque não deixa Gaia me ajudar?
- Minha filha?
- Você conhece outra Gaia?
Aine sorriu.
- Olha, ela é inteligente, organizada, já está ajudando no reino e confio nela. – Sunny acrescentou propositalmente, já que o fato de Scylla ter uma filha tão próxima de Erínio com certeza tinha abalado a confiança dela na educação que dera às meninas.
- Eu... – Scylla pensou um pouco. – Não tenho nada contra. Aine?
- Totalmente de acordo. Alart? – Aine respondeu.
- Não consigo pensar em ninguém melhor. – Ele respondeu.
Um por um dos membros à mesa aprovaram a escolha, mesmo que um ou outro tivesse alguma ressalva por ela ser irmã de Maia.
~o ⭐ o~
Lich estava sentindo aquela aceleração no coração, as mãos suavam, sentia-se nervoso, agitado, sua mente correndo em altas velocidades, sem direção nenhuma. A três dias ele dormira no quarto dela, apenas a abraçando, mas aquilo lhe deu uma paz enorme, uma sensação de plenitude. Aquela compulsão realmente precisava parar, mas ele estava
perdendo as esperanças, achando que aquilo só acabaria quando ele estivesse morto. Lich ainda não sabia, mas Aine também estava muito agitada durante esses dias.
Preciso vê-la. Preciso vê-la. Preciso vê-la. Preciso vê-la.
- Senhor? – A sacerdotisa reitora do orfanato chamou pela quinta vez.
- Sim. De acordo. – Lich disse, sem fazer ideia do que a mulher estava falando.
- Mesmo? Que ótimo! As crianças ficarão muito felizes com isso. – A mulher disse com olhos brilhando de alegria.
Ela realmente amava e se importava com aquelas crianças. Isso foi o fator decisivo para Lich escolher ela para esse cargo dentre dezoito candidatas.
- Mande a conta e tudo o que for preciso para mim. Vamos precisar reorganizar algumas coisas.
- Sim, claro. Sinto muito pelo príncipe Lesath e pela Rainha Mãe. Eles eram muito queridos por todos.
- Como as crianças estão? – Lich perguntou, preocupado já que elas adoravam os dois.
- Tristes, mas estamos contornando a situação.
- Muito bem. Em breve vamos fazer algo para alegrar um pouco eles. Não quero que nenhum deles sofra mais, pelo menos não se eu puder impedir. – Lich disse, mais para si mesmo do que para a mulher que visivelmente tinha uma queda por ele. Não que isso tivesse qualquer importância para ele. – Preciso ir. – Lich levantou bruscamente, não conseguindo mais evitar a compulsão.
Lich se despediu o mais rápido que a educação permitia, caminhou a passos largos para a casa em frente ao orfanato. Como era tarde, todas as crianças já dormiam e ele lamentou ter passado tanto tempo no escritório cuidando dos documentos e orçamentos, sem ter tido tempo de vê-las. Porém, agora sua preocupação era quase totalmente em sua compulsão.
Eu preciso vê-la. Agora.
~o ⭐ o~
Aine deitou mais cedo naquela noite. E com “cedo” quero dizer que já era bem tarde para qualquer pessoa comum. Às vezes Aine desejava ter o problema de insônia que sua avó tinha, capaz de tirar o sono por dias e mesmo assim funcionar perfeitamente bem. Mas ela dormia facilmente, pela mesma média diária comum. No entanto, para um governante parecia que as horas do dia nunca eram suficientes para resolver tudo. Naquela noite, porém, apesar de cansada, ela não conseguia sumir. Aquela incômoda sensação de estar sozinha no mundo, aquela angústia que isso trazia e que pouquíssimas pessoas conheciam, a atacava de novo. Em algum momento da noite ela finalmente adormeceu.
Era madrugada quando algo a acordou. Não foi um barulho ou um sonho. Isso ela tinha certeza. Ao olhar para sua mão ela entendeu. Seu anel real, o que continha boa parte da chave para a magia de fogo estava brilhando sozinho.
Que incomum. .. Aine pensou. Mas, como qualquer mago que se prestasse, qualquer pessoa com meia gota de magia, ela não discutiu e se levantou para descobrir o que sua magia sinalizava.
Cuidado.
Uma voz feminina, firme e doce disse em sua mente, parecendo ressoar em sua alma.
Sem saber porque (ou, no fundo, talvez soubesse) ela obedeceu a voz estranha e familiar ao mesmo tempo, ficando mais atenta, a ponto de perceber um vulto escuro sumir por uma janela entreaberta. Aine correu até ela, porém não viu mais nada. O que ela não entendeu foi o motivo do alerta misterioso. Pelo menos não até que ela trancou a janela alta e se virar para dar de cara uma mulher bem conhecida. Aine tentou gritar ou mesmo se mover para ataca-la com uma rajada de fogo, mas o ar parecia de repente denso, tóxico. Sua garganta estava seca, seus olhos queimavam e seu corpo parecia incrivelmente pesado.
- Epaine. Nome interessante. Seu pai tinha um senso de humor invejável. – Cassi recostou na porta fechada do quarto de Aine.
- Como...voc... – A voz de Aine soava rouca e fraca.
- Como entrei? Querida, acha que me aproximei de Maia por nada? Aquela garota era a mais fácil de pegar por motivos óbvios, mas não a devorei por algum motivo, não é?
- O q...
- O que eu quero. Ai, pequena Rainha, que previsível. Bom, mas a pergunta certa aqui é o que você quer? – Cassi deu um passo lento até Aine, deixando ela mais pesada com o poder da outra.
- Nada...que...venha...de...você.
Cassi colocou uma mão no peito fingindo estar magoada. – Essa doeu. Vamos, Aine.
Você é quase tão inteligente quanto seu pai, porque não usa essa linda cabecinha?
- Não...fala...do...pai...
- É uma pena você não ter conhecido ele. Acho que vocês seriam muito amigos. Sabia que ele queria ser um pai super presente e perfeito? Fofo. Inútil, já que ele morreu ne, mas fofo.
- Cala...a...boca... – Aine usou sua mente para fazer o ar aquecer perto de Cassi.
Porém ela tinha previsto isso. A mente de Aine nublou, ficou pesada de repente.
- Você não achou mesmo que isso ia funcionar, não é? Sabe quem tinha um poder incrível para algo assim? Carya e Tigrésius. – Cassi se sentou na cama de Aine com as pernas cruzadas e forçou Aine a cair de joelhos, o veneno pesando mais seu corpo a cada minuto que passava. – Eles eram invejáveis. Tigrésius era...HAHAHAHA! Louco. Resumidamente.
Carya era um saco, mas tinha talento. Isso não dá pra negar. Claro que teriam muito mais poder se usassem minha magia.
- Nem...nem...Tigrésius....aceitaria...você....
- Provavelmente, não. O ego dele era inflado demais pra isso. Mas você acha mesmo que Kallisti, aquela sonsa, não queria a energia ácida porque fazia mal pra vocês? Sério?
Vocês nunca pensaram que ela só não queria que vocês tivessem tanto poder quanto ela?
- Você...não tem....tanto poder...
- Não mesmo porque eu dividi a fonte com vocês. Mas ainda posso te dar o que você mais quer. Basta aceitar vir para o meu lado.
- Nunca.
- Vamos, Aine. Você sabe que eu posso trazer seu pai de volta. Necromancia não é tão difícil. Claro que precisaremos de um corpo novo, mas isso se resolve fácil.
- Menti...rosa...
- Você me ajuda, nem vou te dar a magia ácida como fiz com Maia por enquanto. Só depois que você tiver o que quer. Viu? Aceite ficar do meu lado, vencemos essa maldita guerra e você terá seu pai de volta e o poder sem regras, o verdadeiro poder! – Os olhos de Cassi eram totalmente negros agora, uma onda de ár negro e ácido, tóxico parecendo emanar de seu corpo.
- Você....mente...observa das tr...trevas...
- Eu? Sabia que eu pelo menos nunca fiquei pelos cantos observando você como um perseguidor doente? Compulsivamente roubando suas roupas íntimas, fazendo um tipo de altar no meu quarto com coisas suas? Beijando seus lábios durante seu sono... Ou pior, te observando escondido enquanto você tomava banho...
- Do que...O que...
- Me aceite e este será meu primeiro presente pra você. Vou revelar quem vem te observando enquanto você dorme e até quando você se toca sozinha... Seja minha aliada, pequena Rainha, e se torne grande. – Cassi se aproximou mais do rosto de Aine, com olhos negros e um sorriso no rosto.
- Meu pai...
- Sim, mocinha... Vou te dar seu papai de volta. Diga...
- Si...sim. – Aine disse.
Cassi abriu ainda mais o sorriso, puxou o rosto de Aine devagar e beijou seus lábios, passando a língua na parte interna de seu lábio inferior. Aine sentiu o lábio arder como se tivesse derramado fogo ali. Aquela energia densa, quente e ardida, caminhou por suas veias, deixando uma sensação de pedras dolorosas seguindo o caminho até sua mão esquerda, oposta a do anel que carregava a magia de fogo. Cassi se afastou um pouco, ficando de pé e observando a cena com um sorriso cruel enquanto Aine se engolhia com a
dor que desceu de seus lábios, passou por sua garganta, seu ombro, seu braço até alcançar o dedo indicador, parando na ponta onde uma espiral negra com um olho no centro se formou. A marca de Erínio. Então a dor simplesmente sumiu, tudo sumiu. Aine então viu a mão de Cassi estendida para ela.
- Pronto. Por enquanto isso vai servir para que você não esqueça nosso acordo. – Cassi disse e levantou Aine, alisando seu cabelo que, na mesma hora, ficou opaco onde tinha sido tocado. De repente, Cassi sorriu largamente e olhou para a porta. – Olha quem voltou.
- O que?
- Sou um deus de palavra. – Cassi disse, inflando o peito. - Se quer saber quem é o doente que te persegue, obcecado por você, espere a porta abrir.
Como se invocado, Lich abriu a porta, mal tendo totalmente se materializado, seus pés ainda em forma de névoa negra.
- Sai de perto dela! – Lich gritou. – Guardas!
- Desculpe por isso, querida. – Cassi sussurrou e num movimento ágil, puxou Aine pela cintura, colocou à sua frente e pôs uma adaga em seu pescoço.
Passos soaram e logo um monte de Sentinelas estavam armadas junto com Lich na porta.
- O que te fez voltar tão rápido, Lich?
Lich deu um passo para dentro do quarto, mas parou.
- Não. Se chegar perto eu mato ela e aí quem você vai observar toda noite? – Cassi sussurrou a última parte e piscou para ele.
Lich deu uma olhada rápida para Aine, o pânico em seus olhos, mas logo disfarçou.
- Do que ela está falando? – Aine perguntou, com um olhar chocado para ele.
- Eu...eu sinto muito...
- Que chato. Nem vai tentar negar? Fazer o que né. Também basta Aine dar uma busca no seu quarto na casa do litoral e puf! Vai ter a mesma descoberta que seus pais tiveram quando acharam o mesmo altar no seu quarto no palácio. Foi tão engraçado.
- Cala a boca, seu imundo espírito de olhos negros! – Lich nunca sentiu tanta raiva antes.
- Você me entendia às vezes, perseguidor. Mas, vou facilitar aqui. Vocês vão sair, fechar essa porta, mandar aqueles guardinhas lá fora saírem de perto da janela e me deixar ir embora, ou vou matar a rainha que nem tem herdeiro ainda. O que não se pode dizer do seu irmão mortinho, né. – Cassi riu com a cara confusa de Lich.
- Sentinelas, obedeçam. Se afastem e tirem os guardas lá da porta. – Aine ordenou.
- Não vou deixar você com ela!
- É uma ordem, Lich. Você está no meu reino e quem manda aqui sou eu. – Aine disse, soando magoada, o que feriu Lich de um jeito que seus olhos não deixavam dúvidas.
Todos obedeceram a ordem da Rainha e, quando a porta foi fechada, Cassi soltou Aine e observou pela janela, sem tirar a atenção de Aine também.
- Muito bem, mocinha. Acho que vamos nos dar muito bem.
- Obrigada. Por me alertar sobre aquele....doente... É perturbador saber que alguém invadiu meu espaço pessoal...me tocou enquanto eu dormia... – Aine chacoalhou o corpo em um calafrio.
- E eu nunca influenciei ele. Para você ver como nem todas as pessoas loucas são por culpa minha. – Cassi comentou.
- O que você quis dizer sobre aquilo do irmão de Lich? – Aine perguntou.
Cassi olhou diretamente para Aine e deu um sorriso arrepiante. – Tudo a seu tempo, querida. Mas, para mostrar como seu generoso com quem me é leal, vou apenas te dizer uma coisa: Lesath devia ter procurado aquela ex-noiva dele, ao invés de apenas ignorá-la.
Cassi piscou, saiu pela janela e sumiu na noite.
Aine abriu a porta, saiu e foi até o fim do corredor onde as Sentinelas e Lich aguardavam.
- Descansem. Está tudo bem agora. Avisem para a chefe das arrumadeiras que preciso do meu quarto limpo e desinfetado. Duas vezes. – Aine disse, ignorando Lich. – Esta noite dormirei no quarto que foi de minha mãe. Lich você dormirá no quarto que era do meu avô.
Agora saiam.
As Sentinelas obedeceram, uma acompanhou Lich até o quarto que ele deveria ficar e saiu. Lich seguiu triste, de cabeça baixa, uma expressão angustiada no rosto.
Aine entrou no quarto de sua mãe. – Péssima escolha. – Ela disse para si mesma ao ver tudo de sua mãe ainda ali, sempre pronto para uma visita que agora nunca mais aconteceria. Incapaz de continuar, ela passou por uma porta lateral, saiu em outro corredor diferente, caminhou até alcançar a porta desejada e entrou sem bater.
Lich estava sentado em uma cadeira de frente para uma porta escondida atrás de um vaso enorme. A porta se abriu com uma onda de poeira e resquícios de teias de aranha.
- Sabia que minha avó fugia de casa por essa passagem para namorar com um jardineiro desconhecido? – Aine disse limpando a sujeira de sua roupa.
- Aine, eu sinto muito. – Lich se levantou com a garganta se fechando de emoção.
- Eu também. Minha avó era legal, mas meio doida. – Aine balançou a cabeça.
- Sabe que não estou falando disso. – Lich se levantou. – Aine, eu posso explicar.
- O que? O tal altar? Os roubos de roupas íntimas minhas? Ou seu hábito de me observar como uma sombra dos cantos escuros? Ou quem sabe sua obcessão comigo? –
Aine cruzou os braços, séria.
- Tudo...tudo isso. Eu...
- Lich, acha mesmo que eu não sabia?
- O que? Não... Sabia? – Lich ficou realmente confuso.
- Certo. Eu não sabia do altar. As roupas íntimas eu desconfiava. Mas o resto? Eu não estava dormindo semana passada quando dei aquele showzinho sexy, brincando com minha...
- Aine. – Lich disse, em tom de aviso.
- HAHAHAHA! Relaxe, Lich. Les também acabou confirmando minhas suspeitas. Joguei um verde e ele já começou a te defender, pedir para eu ter paciência, compreensão...
- Ele sabia?
- Acho que descobriu a pouco tempo. Eu sabia a anos. Lich, talvez eu seja tão louca quanto você, mas, sinceramente, eu só durmo quando você está por perto. Eu me sinto menos....menos sozinha, sabe. – Aine confessou.
- Não sei o que dizer...
- Vamos conversar melhor depois. Agora melhor avisar pra Scylla e seus pais que o plano deu certo. – Aine disse.
- Certo. Sabe que não aprovo essa ideia, não é? – Ele disse, ligando o comunicador.
- Sei, Lich. – Aine revirou os olhos e se sentou na cama ao lado dele. – Você repetiu isso só umas oitenta e mil vezes.
- Oitenta e mil? – Lich perguntou, divertido, mas logo focou a atenção na chamada atendida. – Deu certo.
- Ótimo. – Scylla respondeu. – Aine, te encontro amanhã na hora de sempre para não levantar suspeitas.
- Certo. – Aine respondeu e Lich desligou, chamando agora seus pais.
- O plano funcionou. – Lich disse.
- Maravilha. – Alart respondeu.
- Ótimo. – Sunny disse, ainda incomodada com a ideia.
- Tia, tio, vocês têm notícias da Amália? – Aine perguntou.
- Não. Nunca mais quis contato com aquela piranha ingrata e traidora. – Sunny disse.
- Porque, Aine? – Alart perguntou.
- Cassiopeia disse algo interessante. – Aine disse. – Procurem ela. Há uma grande possibilidade de que ela tenha tido um filho de Les e escondido isso.
~o ⭐ o~
Alguém finalmente me ouviu. Ok que ela entendeu errado, mas ouviu ne.
Capítulo 13
Certa vez visitei o universo de onde você está lendo isso. Muita coisa me chamou a atenção, mas a expressão “enganar o diabo”, que adorei, me fez lembrar desta época aqui em Likastía.
~o ⭐ o~
- Você matou ela? – Maia perguntou, ansiosa, um cinto de ferro com uma corrente a prendendo na cama, com quatro metros de corrente para dar alguma mobilidade.
Cassi sentou calmamente na poltrona ao lado da cama e estalou os dedos para Maia ir até ela. Maia foi, de cara emburrada e sentou no chão na frente dela. Cassi colocou um pé no peito de Maia e a outra massageou os dedos dela com o pé ainda na mesma posição. A humilhação a irritava, mas a demora em Cassi para responder irritava muito mais. No entanto, Maia já tinha aprendido que só tinha a perder batendo de frente com Cassi, então engoliu sua raiva e aguardou, esperando que sua obediência resultasse em alguma carícia, alguma atenção de Cassi.
Depois de quase uma hora, Cassi disse: - A amizade daqueles dois finalmente acabou.
- Que maravilha! Acha que isso vai causar a guerra ou pelo menos evitar esse casinho ridículo da minha irmã com aquele leonino nojento?
- Casamento entre os reinos? Ah dificilmente vai acontecer.
- ISSO! – Maia gritou de felicidade. – Vê se pode, aquela falsa sendo rainha? E ainda daquele reino cheio de trouxas ignorantes e bárbaros.
- Só mais algumas intrigas e a amizade entre eles vai acabar. Nem deveria ter começado. Quando espalhei a séculos que eles eram canibais foi super eficiente.
- Então, falta pouco para a guerra também?
- Guerra ainda não posso dizer, mas estamos muito perto disso. Com Aine do meu lado, não vai ser tão...
- AINE?! Aquela...aquela...estúpida! Aquela vadia, piranha, que dá pra todo mundo que nem a vadia da minha mãe! Você está louco? – Maia se calou quando um soco atingiu sua garganta.
- Esqueceu com quem está falando, sua inútil? – Os olhos de Cassi voltaram ao original negro que pareciam abismos malignos. – Acho que tenho uma ideia de como cuidar desse seu péssimo hábito de achar que tem algum comando aqui.
Maia sentia muita dor na garganta e sua voz não tinha como passar pelas cordas vocais paralisadas. Cassi soltou a parte da corrente presa na cama e saiu puxando Maia bruscamente pela corrente, esta saindo com suas garras marcando o chão ao tentar inutilmente segurar ali. Do lado de fora estava chovendo, estava frio e havia sinais de que nevaria, mesmo que só um pouco. Havia uma pequena casinha destinada a criação de
frangos, agora vazia depois de décadas que seus donos tinham morrido. Cassi abriu a porta e jogou Maia lá dentro, prendendo a corrente em uma estaca próxima da porta. A casinha dava apenas para o corpo de Maia ficar lá dentro, deitada, sem ter como erguer-se mesmo um pouquinho, sua cabeça saindo pela porta, impedindo ela de ser fechada.
Me perdoe...Desculpe. Por favor, não me deixa aqui. Eu ajudo você. .. Maia pensou desesperadoramente, em pânico pelo frio e por se sentir um animal de estimação.
- Sim, você vai ajudar. Mas te falta muito para chegar aos pés da Sarin como minha ajudante. – Cassi disse cruelmente, fazendo a inveja de Maia aflorar.
Eu vou me comportar. Eu juro. Eu mato quem você quiser. Por favor, me deixa ser sua...
- Você vai fazer as duas coisas, mas, por enquanto, fica aqui, como meu bichinho de estimação, que é o que você realmente é. – Cassi disse e saiu, bloqueando intencionalmente os pensamentos gritados por Maia.
~o ⭐ o~
- Só uma curiosidade... – Scylla perguntou, se levantando para sair. – O que o Olhos Negros ofereceu para tentar fazer você se aliar a ele?
- Nada demais. – Aine desconversou, se levantou e deu a volta na mesa para sair também.
- Nada demais... Sei. Sabe que, dentre as possibilidades de contato que listamos na reunião, eu quase podia apostar que ele tentaria uma aliança com Lich? Ele tem alguns, digamos, problemas. Mas você, apesar do posto elevado, não era nem a segunda na minha lista de possibilidades.
- É, vai entender esse cara ne.
- Aine. – Scylla parou na porta e se virou de frente para ela. – Meu trabalho não se limita apenas aos assuntos dos templos e da luta contra a magia ácida. Eu também posso te ouvir, sabia?
- Eu sei. Não se preocupe. – Aine disse. – Nem comigo, nem com os “problemas” do Lich.
Scylla entendeu a indireta. Aine sabia da compulsão dele e não parecia incomodada.
Bem, quem sou eu para julgar os desejos estranhos do coração, não é? Ela abençoou Aine e foi embora.
Aine entrou no quarto e não se surpreendeu ao ter aquela sensação familiar de não estar sozinha no mundo. Lich. Aine pensou com um sorriso no rosto.
Lich ficou em dúvida se deveria se materializar no canto onde a sombra escondia seu corpo em forma de névoa negra ou se continuava ali, do mesmo jeito. Então ele se decidiu por continuar. Aine sabia que ele estava ali, disso ele tinha certeza, então, se ela não quisesse que ele permanecesse oculto, ela falaria. Ele permaneceu do mesmo jeito,
observando como fazia a anos, enquanto ela tirava a roupa, tomava banho e se vestia lentamente. Uma batida na porta anunciou a jovem que trazia o jantar dela. Aine abriu a porta e uma bandeja com mais comida do que ela conseguiria comer foi colocada sobre a mesa. Assim que a moça saiu, Aine trancou a porta por dentro e chamou.
- Vem comer comigo? Usar magia por tanto tempo dá muita fome. – Aine disse naturalmente.
Lich teria sorrido se soubesse como fazer isso. Ele se materializou e a abraçou por trás, dando um beijo no topo de sua cabeça. – Você é perfeita.
- Come logo. – Aine disse em um tom ansioso.
- Hum. Porque? Pretende me fazer gastar mais energia? – Lich perguntou sério, mas, de alguma forma, Aine sabia que ele estava brincando.
- Bom, tem uma cama ali depois daquela porta. E eu costumo deitar nela. E você pode deitar nela. E eu estou com frio. E um pouco sem roupa para usar....
- Coitada. Não tem uma roupa naquele closet enorme.
- E eu posso sofrer com o frio. Olha que coisa mais triste.
Lich puxou a cadeira para ela se sentar e, talvez pela influência da forma como seus pais se tratavam, ele copiou o gesto de Alart, puxando a cadeira de sua amada para ficar colada na dele.
- Então é melho eu comer algo para esquentar a jovem pobre de roupas. – Lich respondeu.
Depois de, aahn...er...digamos, relaxarem, Aine dormiu com a cabeça sobre o peito de Lich que também dormiu muito bem, obrigada. Até que, de manhã, bem cedo, Aine sentiu algo estranho, uma incômodo que não soube explicar, e acordou.
- Aine. – A voz de Cassi soou e só então Aine percebeu que a marca de Erínio em seu indicador funcionava como uma fonte de contato de áudio. Ela se sentou e focou sua mente para atender, já que, aparentemente, Cassi precisava desse “atendimento” para ouvir a jovem.
- Sim, senhor. – Aine lembrou das dicas de Scylla.
A voz de Cassi soou bastante satisfeita quando disse: - Preciso de um pequeno favor.
- Sabe que vou fazer o que o senhor mandar. Desde que me dê o que eu quero no final.
- Claro que sim. Bem, vamos dizer apenas que você não vai aprovar o acordo militar com o reino dos canibais. – Cassi disse.
- Entendido. Espera. Os leoninos são mesmo canibais?
- Claro que são. Eles só esconderam melhor nas últimas gerações. Cancele o acordo ainda hoje. Não preciso te lembrar o que está em jogo.
- Considere feito. – Aine disse e Cassi desligou, para seu alívio.
- Canibais? Sério? - Lich disse sem abrir os olhos, ainda deitado.
- AH! Puta merda, Lich! Você ainda vai matar alguém de susto. – Aine colocou a mão sobre o coração disparado.
- Ouço muito isso.
- Nossa, por que será ne. – Aine tentou levantar, mas Lich a puxou de volta para deitar em seu peito. – Eu posso cancelar, mas esse acordo é o que une nossos magos também.
Como vamos lutar contra aquela coisa se estivermos separados?
- E se você cancelar, mas os magos atuarem juntos mesmo assim?
- Isso é crime em Tiger. Seria pior porque a primeira providência, nesse caso, seria eu afastar todos os magos que agissem ilegalmente assim, inclusive bloqueando boa parte de seus dons com a magia de fogo. O que, como sou mediana nesse dom, faria meu próprio poder enfraquecer um pouco.
- Ou seja, de qualquer forma enfraqueceria você e os magos. Se você cancelar o acordo, vai dividir os povos, a opinião pública, corre o risco de voltar a antigos preconceitos. Se não cancelar, aquela coisa vai entender que você não está do lado dele realmente e nossa vantagem, o tempo que precisamos, será perdida.
- Eu vou cancelar. Isso é um fato. O problema é como vou justificar isso para o povo, evitando problemas sociais futuros, ou que achem que fiquei louca ne, e como manter nossa aliança sem que se torne ilegal. Droga. E eu que cresci achando que o maior desafio do meu reinado seria com coisas tipo comércio, construção de monumentos...
- Esqueceu de um detalhe, querida.
- Qual?
- Você não está sozinha. – Lich disse e ligou o comunicador.
- Ahn? Lich? Garoto, você não dorme? – Scylla perguntou cansada, querendo aproveitar os poucos minutos que tinha antes de levantar para os primeiros cânticos matinais do templo de Kallisti.
- Abre um portal pra Aine ir lá pra casa por favor? É importante. – Lich disse.
- Quando?
- Daqui a uma hora.
- Estejam no local combinado. – Scylla disse e desligou.
- Durma um pouco. Te acordo a tempo de sairmo para a passagem. – Lich firmou o abraço em Aine.
- Meu herói. – Aine disse e dormiu quase que instâneamente.
- Minha rainha. – Lich murmurou.
~o ⭐ o~
Sunny recebeu Aine e Lich no quarto no teto do palácio, onde anos antes ela passou seus primeiros meses de liberdade. Alart entregou uma xícara de chá para a esposa, enquanto Lich e Luc, respectivamente, faziam o mesmo para Aine e Gaia.
- Encontramos Amália. – Sunny disse sem rodeios.
- E então? – Aine perguntou.
- Aquela vad... – Luc começou irritado, mas olhou para a mãe. – Desculpe, mãe.
Aquela...felina de quinta, disse que nunca teve filhos. Mas Gaia armou para ela, como se estivesse do lado dela e pronto. A burra soltou a língua.
- Ela teve uma menina e pensou em usar a criança para ganhar algo de Les. – Gaia disse, com notável nojo.
- Infelizmente, ou felizmente, não decidi ainda, Les nunca aceitou nenhum contato com ela e ela não mencionou ter tido um filho. – Sunny disse.
- Então, com raiva por ele não deixar nem mesmo que as mensagens dela lhe fosse entregue. – Alart esclareceu. – Por isso ela se desfez da criança.
- Por Kallisti! Ela matou a menina? – Aine arregalou os olhos.
- Não. – Gaia disse rapidamente. – Ela abandonou a menina da floresta Tiger, perto das cavernas sagradas.
- Então não sabemos se a menina está viva, se alguém achou e cuidou ou...ou achou e... – Aine evitou falar para não fazer Sunny pensar em seu passado.
- Ou se ela foi abusada esse tempo todo. – Sunny disse, com um aperto doloroso no peito.
- Vou mobilizar espiões Tiger e caçadores para encontrar alguma pista. – Aine disse. –
Não se preocupem. Para todos os efeitos, Scylla que estará organizando isso.
Então Aine e Lich contaram o problema com Erínio.
- Temos magos Tiger criados e educados entre os leoninos. Alguns Tiger que, devido a isso, são magos leoninos. – Alart contou mentalmente alguns nomes que se enquadravam nessa descrição. – Mas são poucos. Nem perto da quantidade que pode ajudar a vencer essa coisa.
- É simples. – Gaia disse e todos os olhares se voltaram para ela. Tímida como era, aquilo a travou e ela não conseguiu falar. Luc segurou sua mão e deu um aperto de apoio, fazendo ela tomar coragem. – Bom...Você pode cancelar o acordo, aí cria uma lei sigilosa, apenas com o conhecimento do mago chefe leonino e de Scylla, aprovando uma cooperação emergencial em um caso extremo, invalidando a quebra da aliança. Assim, quando o momento chegar de enfrentar aquele monstro, se você não conseguir anular o cancelamente, terá uma base legal para evitar as punições legais.
- Assim, como já estamos em um momento extremo, nem mesmo as cooperações que já estamos fazendo será punível. – Luc disse, dando um olhar orgulhoso para a noiva. –
Genial.
- Gaia, você é um gênio! Acho que vou te levar de volta para Tiger. – Aine provocou.
- Nem pense nisso! – Luc disse rápido e desesperado.
- HAHAHAHA! – Aine não aguentou.
- Eu aprovo. – Alart disse.
- O que?! Pai que ideia é essa?! Gaia é minha e ela não vai... – Luc se levantou revoltado.
- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! – Aine ficou sem fôlego de tanto rir.
- Querido, seu pai está falando da ideia de Gaia. – Sunny disse entre risos.
- Ah. – Luc se sentou aliviado e meio sem graça, ainda segurando firme na mão da noiva. – Tudo bem. De acordo também. Com a ideia da lei. Não com você levando MINHA noiva embora.
Aine elaborou a lei à mão e todos assinaram, inclusive o líder dos magos leoninos que fora chamado e rapidamente explicado sobre a situação. Gaia e Luc saíram de mãos dadas, falando com o mago. Quando Alart se levantou, Lich pediu para seus pais aguardarem mais um pouco. Aine contou que sabia da compulsão dele e que se entendiam bem. Então ela contou seu plano.
- Aine, tem certeza? Não me entenda mal, só que podemos decidir isso quando resolvermos essa confusão. – Alart disse.
- Eu não sei como isso tudo vai terminar, nem mesmo se sairei viva disso. – Aine disse e fez um sinal para Lich relaxar. Apesar de ser doloroso, era uma possibilidade forte, principalmente agora que ela tinha a marca de Erínio. – Eu quero aproveitar para realizar meu desejo e deixar tudo organizado legalmente.
- Muito bem. Como Rei Leonino não tenho jurisdição para fazer isso, mas ajudar sim.
Scylla já sabe?
- Sim. Expliquei quando ela abriu o portal hoje. Ela aprovou e já vai resolver uma parte do meu plano quando eu voltar. Mas queria avisar antes.
- Eu vou. – Sunny disse.
- Sunny, é perigoso... – Alart disse.
- Viver é perigoso, amor. Não vou perder isso. Eu. Vou.
Alart sabia que discutir era perda de tempo. – Vou com você. E não faça essa cara.
Nem morto vou te deixar sozinha.
Assim, em segredo, naquela manhã Scylla assinou a lei e guardou o documento protegido no templo de Kallisti. Minutos mais tarde, Aine cancelou a antiga aliança com os leoninos e deu uma desculpa genérica para o público do tipo “divergências temporárias de
ideias”. Provando que estava atenta a tudo, pouco depois Cassi entrou em contato com Aine elogiando sua competência e obediência.
Naquela tarde Scylla estava de pé no meio de uma passagem secreta fedendo a mofo, com teias de aranha por toda parte. Aine e Lich aguardavam enquanto Scylla abria o portal para Alart e Sunny atravessarem. Assim que o portal foi fechado, Scylla ficou à frente e Aine e Lich, enquanto os pais dele ficavam um pouco mais para o lado.
- Eu realmente nunca imaginei fazer isso nesse – Scylla fez um gesto sinalizando ao redor – tipo de ambiente. Tem certeza disso?
- Sim. – Aine e Lich disseram.
- Bom, que seja então. – Scylla entoou um cântico de purificação e união que terminava pedindo as bênçãos de Kallisti para a cerimônia.
Vocês têm minha bênção, agora anda logo com isso!
- Aine Tiger e Lich Leon, vocês estão cientes das responsabilidades dessa união?
- Sim. – Ambos responderam.
- Aceitam se casar?
- Sim. – Eles disseram ao mesmo tempo.
- Vocês trouxeram algum símbolo dessa união?
Aine tirou uma pulseira de prata da cintura do vestido laranja vibrante e Lich tirou uma pulseira de ouro do bolso do casaco. As duas joias foi abençoada por Scylla e pela magia dos pais do noivo combinadas. Lich colocou a pulseira dourada, que brilhava com uma luz branca das magias de seus pais por alguns instantes, no pulso direito dela e deu um beijo em sua mão. Aine colocou a pulseira prateada que brilhava como fogo no pulso de Lich e colocou as pontas dos dedos dele sobre seu coração.
Scylla terminou o ritual simples e antigo que funcionava com a bênção de magias diferentes, no caso a de Alart principalmente, e os uniu. Lich legalmente já era o Rei consorte agora, embora o casal planejasse manter isso em segredo até acabarem com Erínio e depois realizar uma cerimônia de casamento típica dos Tiger. Mas, caso não fosse possível, a magia de Alart poderia ser rastreada na joia abençoada por Scylla para o casamento o tornando válido pelas leis Tiger. Assim, além de realizar o desejo do casal de se unir, caso Aine morresse sem que seu outro plano se concretizasse, o reino não ficaria sem um líder temporário, destruindo um dos planos de Erínio de enfraquecer o reino mais poderoso do mundo.
~o ⭐ o~
Gaia sentou no colo de Luc e o beijou, além de surpreender o felino que não estava acostumado com essa atitude dela em público.
- Vem comigo. – Ela sussurrou em seus lábios.
- Continuamos amanhã. – Luc dispensou seu auxiliar e saiu com Gaia de mãos dadas.
Ao chegar na porta da sala de descanso onde sua mãe estava, antes de abrir, ele encostou Gaia contra a parede e beijou a mulher como se não pudesse viver longe dela nem mais um segundo. Sem fôlego, ele se afastou um pouco, encostou sua testa na dela e disse: - Você me enlouquece.
- Eu..tenho... – Gaia respirou com dificuldade. – Tenho que falar....com sua mãe.
- Sim. Claro. – Luc voltou a si, deu um último beijo nela e colocou a mão na maçaneta, mas Gaia a cobriu com a sua.
- Depois...hoje....ééé...mais tarde. – Gaia não conseguia tomar coragem, mesmo depois de conversar com sua mãe e tirar todas as suas dúvidas.
- Diga, minha linda. – Luc comandou. – Fale o que você quer de mim.
- Quero...dormir com você... – Gaia disse, sentindo seu rosto esquentar. Ela abaixou a cabeça e disse: - Mas, se você não...
Luc colocou um dedo sob seu queixo e o forçou a olhar para ele. – Nada nessa porra de mundo me fará mais feliz. – Sua voz soou rouca.
Gaia estava visivelmente empolgadinha e Sunny sorriu, tentando disfarçar pois a conclusão era bem óbvia depois de ouvir os gemidos dela através da porta. Mesmo Alart teve alguma dificuldade para não sorrir para o casal apaixonado.
- Gaia, querida, coma um pouco desse bolo maravilhoso. – Sunny disse e esperou a menina e Luc começarem a mastigar para comentar: - É bom comer muito bem para aguentar a noite...
Luc e Gaia engasgaram e tossiram, sem graça.
- Sunny... – Alart disse, escondendo o sorriso atrás da taça de cobre.
- O que? Eu fui sutil dessa vez, ue. – Sunny brincou.
Depois de conseguir se acalmar, Gaia disse: - Acho que encontrei o que Ane viu. Ou quase. Ainda não entendi.
- Diga. – Sunny comandou, feliz por não ter sido a única que aparentemente descobriu algo naquele dia.
- Parece que aconteceu algo semelhante ao que está acontecendo agora. Só que faz tanto tempo que as anotações ainda são escritas manuais com tinta de sangue animal e a maior parte está semi apagada.
- É visível se você derramar sangue de limão em cima. – Sunny disse. – Foi por isso que mandei te chamar, mas você já estava se agarrando com seu noivo no mirante.
- Mãe. – Luc disse quase tão envergonhado quanto Gaia.
- Amor. – Alart disse ao mesmo tempo.
- O que? Quando sou sutil você reclama, quando não sou você também reclama. Por Kallisti, que povo indeciso. – Sunny brincou. – Os documentos só podem ser lidos sob a luz crepuscular da manhã. Eu consegui ver um trecho hoje. Preciso do documento que está com você para lermos tudo.
- Finalmente um progresso. – Luc disse.
- Traga os documentos agora, por gentileza, Gaia. – Alart disse. O plano original que ele e sua esposa conversavam antes do casal chegar era Gaia estar junto com eles e Luc de manhã no nascer do sol para ver isso. Porém, sem precisar conversar, o casal tinha decidido deixar Luc e Gaia aproveitar sua primeira noite juntos em paz.
- Aine tem razão nisso. – Alart disse depois que seu filho e sua nora saíram abraçados e risonhos. – É melhor aproveitarmos o tempo que temos.
- É a única coisa boa que esse monstro nos trouxe. A ameaça nos fez lembrar que não sabemos quanto tempo temos de vida. É melhor aproveitar para fazer o que queremos agora. – Sunny abraçou o pescoço do marido, sentada no colo dele.
~o ⭐ o~
Um caçador entrou no palácio com um fardo enorme de carne animal e pele seca para entregar o que foi comprado. Ele passou pelos funcionários, foi checado pelos guardas e Sentinelas em cada ala do palácio, até chegar na cozinha e passar para o depósito. Lá dentro, ele deixou o fardo no local indicado e saiu pelo mesmo percurso que viera. Um portal se abriu e apenas um braço passou, enfiou a mão no ânus do animal morto e tirou um cristal vermelho. Logo o braço passou de volta pelo portal e ele se fechou.
~o ⭐ o~
O resto de conto mais tarde porque vieram me trazer um bolo delicioso agora para me dar forças para esta noite.
Capítulo 14
Shh! Não faça barulho. Logo isso acaba.
~o ⭐ o~
Lich não conseguia dormir. Era tarde e, cansado de tentar, ele se levantou e foi até seu gabinete preparar algumas magias para os dias seguintes. Mas sua mente estava longe.
Parte em Aine sozinha no reino Tiger, parte em seu irmão. Ele olhou para o teto e respirou fundo.
- Kallisti, Poderosa Rainha do Universo, Dama das luzes e das sombras. Eu sei que não é correto trazer os mortos para nosso mundo dos vivos, mas... – Lich fechou os olhos e focou toda sua concentração e dor na prece – Pode parecer egoísmo. Talvez seja mesmo.
Mas, com tudo isso que está acontecendo, a única coisa que quero pedir é que nos ajude a encontrar minha sobrinha. Eu sei que temos problemas maiores, mas se não posso trazer meu irmão de volta, pelo menos nos permita achar a filha dele, viva ou morta.
Sons “estranhos” e baques altos soaram nos aposentos de Luc, mas Lich não ligou, apenas se perguntou se eles não cansavam depois de horas nessa...interação.
Se a gente tivesse só uma pista... Se tivesse como saber pelo menos se ela está viva...
Kallisti, por favor, nos ilumine nesse problema. Eu prometo que construo um templo novo no lugar da minha casa no litoral. O mais lindo que... Lich parou sua prece mental quando um arrepio e um forte calor atravessou seu corpo, uma vontade de sorrir.
Não derrube a casa. Construa meu templo menor no topo da casa. O fogo nas velas se elevou ao mesmo tempo, sozinho, seguindo o ritmo da voz.
- Kallisti? – Lich perguntou, embora soubesse em seu coração e sua alma a resposta.
Não. Sua sogra falando do além. A voz respondeu tão séria que ele quase acreditou. É
claro que sou eu. Agora prometa.
Lich desejou conseguir sorrir naquele momento. Logo se recompôs e entendeu o que ela queria. – Eu prometo. Deixarei alguém responsável por isso, caso algo me aconteça.
Perfeito. Ela está viva.
Tão rápido quanto veio, a voz sumiu.
Eu devia ter desejado melhor. Lich pensou, se arrependendo de não ter pedido mais dicas de onde e como a criança estava.
~o ⭐ o~
Sunny estava suspirando durante o sono. O cansaço resultante da noite em claro e uma manhã agitada. Aquela voz em seu sonho era tão...diferente. Não ruim. Longe disso.
Mas, diferente, de um jeito que ela não sabia explicar. Sunny tentou focar na missão em suas mãos.
Ela caminhou por uma caverna com uma cratera enorme no topo. Os raios solares passavam por aquela abertura boa parte da manhã e da tarde, sem dúvida. Ao redor haviam árvores frutíferas em abundância, cristais que brilhavam nas mais diversas cores.
Pequenos animais perambulavam ao redor de um lago de água de cor alaranjada.
Esse lugar é real? Sunny se perguntou.
Como você é boba. Claro que é real.
Sunny se virou e colocou a mão sobre a boca ao ver aquele sorriso.
Você mora aqui? Sunny perguntou.
Não. Mas eu morei. Eu gostava.
O ambiente mudou sozinho, a roupa da jovem mudou, assumindo uma forma familiar, embora o ambiente fosse meio estranho, parecendo um sótão. Lágrimas caíram pelo rosto de Sunny.
Traga elas. Logo. A voz sussurrou à suas costas e tocou sua nuca.
Sunny acordou, pegou o papel e o lápis que sempre mantinha sob o travesseiro, anotando rapidamente tudo o que lembrava.
Horas depois Sunny se levantou e foi lanchar com sua família, os encontrando à mesa.
Uma das funcionárias olhou assustada e correu para colocar mais um lugar à mesa, ao lado do Rei. Os homens se levantaram da cadeira em respeito à uma felina, Alart puxando a cadeira para a esposa.
- Mãe, nós íamos enviar seu lanche no quarto. – Lich disse, preocupado, afinal ela tinha feito magia durante o nascer do sol e no sono para cumprir a missão urgente dada por Aine.
- Prefiro comer com meus filhos, meu marido e minha nova filha. – Sunny sorriu para Gaia. – Até porque eu precisava ter certeza que Luc não esgotou totalmente as forças dela ne.
- Amor... – Alart escondeu um sorriso por trás da taça.
Gaia ficou tão envergonhada que seu rosto aqueceu, Luc não ficou muito atrás. Lich balançou a cabeça e deu um tapinha de apoio no ombro do irmão.
- O que? Do jeito que fez barulho esta... – Sunny começou, incapaz de conter a chance de zoar o casal.
- Mãe. Eles vão infartar. – Lich disse.
- Vão nada. – Sunny pegou um ovo cozido do prato de Alart. – Você com suas aparições já provou que nenhum de nós vai infartar mais na vida.
- Desculpe....por....pelo...barulho. – Gaia não tinha coragem de levantar a cabeça.
- Bobagem, querida. Eu e Alart quebramos algumas camas durante nossas diversões.
Garanto que o reino todo já está acostumado com essas coisas.
- Sunny! – Foi a vez de Alart ficar sem graça.
- ECA! – Lich e Luc disseram ao mesmo tempo.
- Ah o doce sabor da zoeira. – Sunny deu uma garfada no prato do marido, mesmo o seu já estando na sua frente. – Deixa a comida mais saborosa.
Aquele momento quase foi perfeito. Mas, de repente, todo mundo ficou em silêncio, sentido a falta que fazia as provocações, as gargalhadas e o espírito divertido de Lesath.
~o ⭐ o~
Maia ainda tinha queimaduras pelo frio, seu pêlo estava ressecado e sem brilho, até seus olhos pareciam ter perdido o briho. Mas o que mais a irritava era sua barriga, antes lisa e perfeita, agora estava inchando com a gravidez adiantada. Seu corpo estava só pele e osso, o que fazia sua barriga parecer ainda maior, seus pés estava inchados e seus seio pesados e doloridos.
- Eu odeio essa porcaria. – Ela disse pela milésima vez, olhando com tanto ódio para sua barriga que não havia dúvidas de que, se pudesse, ela enfiaria uma faca ali para destruir aquela criança.
- Você está horrível mesmo. – Cassi disse com nojo na voz e um olhar de raiva e inveja, afinal ela não podia gerar vida, nã importava quantos corpos femininos ela usasse.
- Não entendo por que você não mata essa coisa dentro de mim.
- Não seja burra. – Cassi colocou um mingau grosso na vasilha e pôs no chão na frente dela. – Isso aí é o que vai te garantir o trono leonino. O Tiger a gente já tem com Aine trabalhando pra mim. Logo eu pego dela esse também, junto com a magia dela. Mas o leonino.. Você carrega o filho mais velho de Lucius. Vamos treinar essa criatura aí – Cassi apontou para a barriga dela – e para ser meu seguidor.
Maia, acostumada com a rotina humilhante, ajoelhou e abaixou a cabeça para lamber o mingau na vasilha, engolindo com algum incômodo por causa da coleira de ferro e que mantinha ela presa por uma corrente.
- Bom. – Cassi tiro a vasilha vazia e colocou na mesa. – Varra o quarto, arrume a cama e lave o banheiro. Quando eu voltar não quero anda fora do lugar.
Maia fazia todas as tarefas de casa e, muitas vezes quando voltava, Cassi jogava tudo pelo chão, enchia de terra e fezes de animais o chão da casa só para ver o desespero de Maia. No final, ainda batia e queimava a pele de Maia com seu sopro ácido, culpando ela pela bagunça. Maia chorava, gritava, e acabava implorando para ser usada sexualmente pela outra, necessitando de qualquer atenção dela.
- Eu... Você nunca mais me tocou... – Maia choramingou, seus olhos sendo atraídos para suas garras corroídas, quebradas, seus dedos feridos de tanto esfregar e lavar as coisas.
- Maia. – Cassi chamou com uma voz doce, logo sendo substituída pelo tom de nojo. –
Olha pra você. Você está gorda, horrível, descabelada, fedendo... Quem vai querer tocar nisso aí?
- Mas eu posso ficar bonita. – Maia sorriu, mostrando os dentes amarelos, dois da frente ausentes depois de terem sido quebrados por uma surra de Cassi. – Por favor...
- Que horror! Limpe, faça seu trabalho e quem sabe. Quando eu voltar, se não estiver muito cansado de trepar com aquela rainha Tiger gostosa, eu deixe você me lamber. – Cassi saiu sorrindo ao ouvir os gritos de raiva e o choro de Maia. Minha magia está cada vez mais forte só com o drama dessa estúpida.
Mesmo com Lich e Scylla não gostando da ideia, Aine foi até a casa onde Cassi ordenara que ela aguardasse. Sozinha, sem nenhuma Sentinela. Ela não gostava da ideia.
Sabia que era um problema. Mas ela não podia arriscar que Cassi desconfiasse dessa aliança.
- Estou bem. Relaxe. – Aine atendeu ao comunicador de Scylla, sabendo que era Lich que estava usando para não atrair a desconfiança.
– Você sabe o que ela quer. – Lich disse, irritado, desconfortável, mas sabendo que não tinha como Aine se negar para Cassi sem arriscar tudo. Eles ainda precisavam de tempo.
- Lich... Eu posso ir embora. Não quero fazer isso com você. – Aine estava assustada, mas, principalmente, se sentindo culpada.
- Eu não quero que ninguém mais toque em você. Muito menos aquele monstro. Mas não consegui pensar em nada... Aine.. – Lich respirou fundo. – Já conversamos sobre isso.
Eu prefiro que você e ela...você sabe...do que arriscar sua vida com uma negativa para aquela coisa.
- Lich... Eu... Não quero fazer isso. Tenho medo daquela coisa.
- Eu sei. Mas você vai fazer mesmo assim, não é?
- Sim. Não tenho opção.
- Você é muito corajosa como uma Tiger perfeita. Que Kallisti nos proteja e te dê forças. – Lich disse e desligou. – Vou matar aquele demônio!
- Eu não queria estar no lugar de vocês. – Scylla disse. – Sinto muito, Lich. Mas pense que logo vamos mandar aquela coisa de volta para o Vazio.
Lich caminhou de um lado para o outro uma, duas, três vezes. – Que se dane! – Ele se transformou em uma névoa negra e saiu velozmente pela janela.
- LICH! Que merda! – Scylla gritou e pensou onde poderia abrir um portal sem que Cassi sentisse a magia. O que era bem difícil porque ninguém sabia o quanto ela já tinha fortalecido sua magia nesse tempo todo... Ou mesmo quanto tempo exatamente Erínio estava se fortalecendo em segredo, à margem da história.
Na casa, Aine pensou em virar todo o conteúdo da garrafa de bebida na garganta para suportar o que estava por vir e ainda fingir que estava curtindo. Mas desistiu. Era mais inteligente permanecer sóbria com aquela coisa por perto.
- Olá, minha linda e perfeita seguidora. – Cassi disse ao entrar com um sorriso doce, mas um olhar que entregava os pensamentos cheios de luxúria.
- Cassi. – Aine disse e fingiu inocência por enquanto. – Vim com a roupa que você mandou, mas não sei para que a preocupação com isso.
Cassi riu alto. – Querida, pensei que estivesse claro. Sabe, Aine, eu gosto muito de você. – Cassi passou a mão pelo braço de Aine, com um olhar intenso nos lábios dela. –
Confesso que penso em você na minha cama a muito tempo.
Aine engoliu a vontade de mandar ela ir à merda e fingiu surpresa, até crença no que a outra falava. – Eu? Mas... Pensei que você gostasse mais de moças mais delicadas como Maia.
- HAHAHAHA! Maia é só uma vadia que implorou para eu dar uma chance. Ela não é importante.
Desgraçado! Aine pensou com cuidado para que a outra não captasse isso. Não dava para saber o nível dos poderes de Erínio naquele momento. – Eu...não sei...
- Não seja insegura, linda. Você é boa de cama que eu sei. Eu te amo e quero ver você pelada. – Cassi sentou na cadeira e cruzou as pernas. – Você vai tirar a roupa devagar e me servir uma bebida. Depois vou te mostrar como um deus pode te fazer se sentir bem.
Você não é um deus! Aine pensou, respirou fundo e sorriu. – Eu nunca pensei que alguém tão poderoso podia gostar de mim.
- Porque não? Você é perfeita, linda. – Cassi disse e a olhada que ela deu em seu corpo fez Aine se sentir pelada e violada antes mesmo de ter tirado a roupa.
Aine pensou no motivo de estar ali, em tudo que estava em jogo, engoliu em seco e levou a mão ao pescoço para desamarrar o laço que prendia seu fino vestido no corpo.
Completamente nua, aturando o olhar faminto de Cassi, Aine se virou, serviu uma taça com a bebida e conteve sua vontade de dar uma garrafada na cabeça de Cassi.
Provavelmente não a mataria e ainda destruiria seus planos.
Sorrindo, Aine se virou e levou a bebida para Cassi que a puxou para sentar em seu colo, com uma perna de cada lado da cintura da outra. Cassi tomou um gole da bebida, mantendo um olhar devasso em Aine, abaixou a taça e a beijou de um jeito agressivo.
~o ⭐ o~
Scylla conseguiu segurar Lich a alguns metros da casa.
- Mandei parar, garoto tolo! – Scylla o empurrou para o chão usando sua bengala.
- Eu não vou deixar...
- Você vai matar a todos nós! Quer que ele descubra que Aine está fingindo? Ele vai mata-la na mesma hora e depois perderemos a vantagem. Use a cabeça, Lich!
- Eu... Não consigo permitir isso.
- Shhh! Quieto. – Scylla se escondeu com ele atrás de algumas árvores e ouviram passos se aproximando. Os dois congelaram, imaginando que Cassi tinha sentido a magia nas proximidades, mesmo com os cuidados de Scylla. Talvez ela tenha sentido a magia natural de Lich com névoa...
- Eu sei que tem alguém aí. Saia ou vou incendiar essas árvores e queimar você!
- Aine! – Lich correu até ela, a abraçou e olhou seu corpo em busca de qualquer sinal de ferimento. O corpo parecia intacto, mas o olhar de Aine fez o coração dele se apertar.
- Você está bem? – Scylla perguntou.
- O que estão fazendo aqui? Ficaram loucos? Aquilo podia ter sentido vocês! – Aine disse, muito irritada com a possibilidade de tudo ir por água abaixo.
- Seu...querido aí, surtou e veio atrás de você. – Scylla disse. – Tive que tentar parar ele.
- Eu... Não podia deixar você... – Lich disse, um pouco envergonhado, mas nada arrependido.
- Estou bem. Preciso só de um banho purificador para tirar a sensação daquela coisa me tocando. – Aine se virou e voltou a caminhar. – Pelo menos foi rápido.
- Porque? – Scylla perguntou, recebendo uma olhada mal-humorada de Lich.
- Não sei. Cassi saiu depois de parecer sentir algo. Não sei se ela recebeu uma mensagem de... Scylla. Preciso te contar uma coisa. – Aine disse.
- O que aconteceu com Maia? – Scylla perguntou.
- Ela está viva, mas...nada bem. – Aine disse. – Pelo pouco que aquilo lá disse, Maia não é mais a favorita dele e ela come uma vez por dia.
- Com Maia grávida isso é ainda mais preocupante. – Lich disse.
- Você conseguiu descobrir uma pista sobre onde eles se escondem? – Scylla perguntou, preocupada mais com seu neto do que com Maia que, afinal, escolheu seu caminho.
- Uma. Vamos pra casa e eu conto tudo depois de um banho. – Aine se afastou de uma tentativa de Lich em tocá-la. Ela sabia que era irracional, mas não se sentia digna do amor dele naquele momento.
Lich entendia a situação, mas o afastamento dela foi como um soco na cara.
Demônio desgraçado. Scylla pensou ao ver a dor no olhar do casal andando afastados e visivelmente magoados.
~o ⭐ o~
Dois anos antes.....
Eu num quero ir. Góto daqui, Line.
Eu sei. Mas eu te disse que ia acontecer, não disse?
Disse.
Então.
Maiz...Você vem também, num veim?
Você não disse que era independente?
Eu sou indepindenti. Mas...você teim que vir tameim...
Não faça essa carinha. Eu vou com você. Nunca vou deixar você.
Memo?
Mesmo. Agora coma. A mulher idosa, encurvada, com um cajado como apoio sorriu e levou a menina para o local planejado.
~o ⭐ o~
- Temos que ter certeza de que é o lugar certo. – Aine parou para beber um pouco d’água no cantil.
A floresta nessa época conseguia ser ainda mais quente e abafada do que o habitual.
Scylla sentou em uma pedra, esfregando o joelho inchado.
- Falta pouco. É melhor continuarmos antes que a estrela brilhe no meio do céu. Aí ficará insuportável. – Scylla disse.
- Tia, melhor descansar um pouco. Não queremos a grã-sacerdotisa de Kallisti doente agora. – Aine lhe entregou uma poção para dor.
- É só esse maldito joelho. Mas estou acostumada. – Scylla se calou e ouviu a mensagem telepática quase gritada.
ONDE CACETE VOCÊ ESTÁ?
- O que foi? – Aine perguntou.
- Sunny enlouqueceu. – Scylla resmungou. Aqui. Qual o motivo da gritaria?
Isso. Sunny mostrou o que vira e o mapa que fizera.
Não acredito... Scylla pensou. Vou contar pra Aine. Mas depois. Estamos procurando uma coisa.
Me avisa quando e se conseguir. Vou comer com minha família.
- O que aconteceu? – Aine perguntou.
- Depois te conto. Mas, lembra da informação que o caçador nos deu?
- Sim.
- Acho que agora ela faz sentido. Line, filha de Seth, realmente está viva. – Scylla disse.
- Impossível. – Aine disse. – Ela teria o que? 150 anos?
- Ou mais. Mas não é impossível. Ela falou com Sunny.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – O grito ecoou pelas colinas, fazendo as duas agilizarem o passo.
Quando alcançaram os arredores da casa, Scylla sentiu a força de Erínio e pensou rápido. Ela abriu um portal e empurrou Aine para dentro, fechando logo em seguida.
Scylla abriu a porta da casa, cujas portas e janelas estavam fechadas, fazendo do lugar um verdadeiro forno.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
- Olha, Maia. A piranha de Kallisti veio ver sua incompetência. – Cassi debochou, sentada perto da cama de Maia, mas sem ajudar em nada, com seus olhos negros.
Maia estava tão magra que seus olhos pareciam afundados no crânio, ao redor o sangue ensopava a cama, saindo de suas pernas abertas enquanto ela gritava de dor e Cassi apenas parecia aproveitar aquele sofrimento como se fosse um néctar doce.
Scylla deu um passo para ajudar, mas Cassi apertou a névoa negra na garganta de Maia.
- Não, mamãe. – Cassi debochou. – Se você chegar perto dela, eu mato essa piranha inútil e arranco essa cria imunda do cadáver dela.
- Maia, filha, olha pra mim. – Scylla chamou, mas a dor parecia ter tirado Maia da realidade. – Você não entende? Ela precisa de ajuda!
- Ajuda pra que? Fêmeas botam seus filhos para fora o tempo todo. É igual cagar.
- A quanto tempo ela está assim?
- Dois dias. Viu, Maia? Nem pra cagar um filho você presta. – Cassi disse.
- Eu vou te matar, seu demônio inútil! – Scylla, percebendo que Maia morreria se ela não interferisse agora, lançou uma adaga na mão de Cassi que estava distraída olhando para Maia.
Porém, no último segundo, ela desviou da adaga que foi parar atrás dela. – Vê, Maia?
Sua mãe quer mais que você morra.
Cassi lançou uma névoa contra Scylla, mas ela foi mais rápida e criou um escudo mágico que a protegeu. Parcialmente, já que, em pouco tempo, ele se partiu em vários pedacinhos. Erínio estava mais poderoso do que ela imaginou. Ele chegou perto dela, mas parou como se sentisse algo.
- É uma inútil mesmo. Pelo menos serviu para alimentar meu poder. – Cassi disse com uma voz bastante masculina. Focando em Scylla ele chutou a bengala dela para longe, indo parar embaixo da cama, e pisou forte sobre seu joelho que sofria de problemas musculares.
Scylla, apesar da dor lancinante, não deu nenhum gemido. – Tão chata. Sabe, eu devia matar você. Quer saber? Morre de uma vez. – Cassi levantou a mão com seu poder formando uma esfera negra instável. Cassi ergueu uma sobrancelha, intrigada, quando Scylla sorriu.
Mas não teve tempo de reagir. Um flash de luz dourada veio de perto da cama e entrou na palma da mão de Cassi que soltou um urro animalesco, rouco. A adaga de Scylla ficou presa no meio da palma dele, brilhando do cabo à lâmina com a luz de Kallisti. As veias de sua mão brilharam quando a luz percorria seu sangue, descendo pelo braço rapidamente.
- UAAAAAAARRRRRR!!!!!!!!! – Cassi gritou. Tentando arrancar a adaga com a outra mão, ela tirou a mão rapidamente com bolhas de queimadura de terceiro grau.
- Com os cumprimentos de Sunny, mãe do rapaz que você matou. – Scylla sorriu cruelmente, agradecendo mentalmente pela ajuda da amiga com a poção que transformava a adaga em uma espécie de boomerang.
- FÊMEAS MALDITAS! TODAS VÃO MORRER! – Gritando, Cassi sumiu.
Scylla se levantou com dificuldade, apoiada em uma bengala improvisada feita com sua magia, e foi o mais rápido que pôde para Maia.
- Tira esse...essa maldita daqui... – Maia balbuciou.
- Não chame seu filho assim. Vamos, força. Só mais um pouco, filha. – Scylla se posicionou entre as pernas de Maia, mas já dava pra ver a criança e ela entendeu o que Cassi tinha sentido minutos antes. O filho de Maia, um menino, estava morto. A criança esperou demais para nascer, sem ajuda, e se enforcou em seu próprio cordão umbilical acidentalmente.
Scylla conseguiu tirar a criança, com Maia desmaiada. Suas lágrimas caíram sobre o rostinho azulado e contorcido da criança em seus braços. – Meu querido.... Eu lamento...
Você foi um herói, sabia? Sim, você foi. Graças ao início das dores da sua mãe pra você nascer, esse monstro não conseguiu consumar um abuso horrível contra Aine. – Scylla abraçou o bebê morto e gritou de raiva, dor e luto, entre lágrimas.
Depois de limpar o bebê e o enrolar em seu próprio manto, ela cuidou de Maia, a limpou e fez a moça engolir uma poção para dor e outra para hemorragia. Quando se virou para procurar uma roupa limpa para Maia, sua filha acordou.
- Meu amor? Onde você está? – Os olhos de Maia estavam desfocados. – ERÍNIO!
VEM! ESTOU PERFEITA DE NOVO! O que você... SAI DO MEU PALÁCIO!
Scylla percebeu que Maia tinha sido consumida pela loucura. Ela ficara de quatro na cama como um animal, mas parecia ser o normal para ela. Scylla notou as marcas no pescoço como se ela tivesse ficado com um colar apertado por muito tempo. – O que aquilo fez com você?
- SAI! AAAAAAAAAAAAAAARRRRR! GRRRRRRRRRRRRR! – Maia fazia sons de animal e se portava como um. Faltavam vários dentes em sua boca e o cheiro de podre que vinha dela com certeza não era só pelo sangue e o parto malfadado.
- Maia! Acorde! Você não é um bicho! Venha. Vou cuidar de você...
- MEU DONO! VEM ME SALVAR DESSA VADIA! EU POSSO MATAR ELA! VOCÊ VEM SE
EU MATAR ELA? – Maia estava visivelmente desesperada e completamente louca. Ela pulou em direção à Scylla, mas a mulher foi mais rápida, desviou e deu um tapa na cara dela, tentando fazê-la despertar.
- Ele foi embora! Você vem comigo. – Scylla abriu um portal para levar Maia, porém sua filha foi mais ágil.
Ao perceber que Erínio não estava na casa mofada, velha e caindo aos pedaços que ela chamava de palácio, Maia se virou e pulou pela janela atrás dela. A casa só tinha um andar, porém aquela janela dava para um precipício rochoso, terminando em uma queda de 300
metros de altura.
- NÃÃÃÃÃÃO! – Scylla abriu um portal que lhe faria alcançar a janela alguns segundos mais rápido, mas não foi rápido o suficiente.
- ERÍÍÍNIO, SENHOOOOOOR! – O grito de Maia foi silenciado e substituído pelos baques de seu corpo contra as rochas. Segundos depois de atingir o fundo do abismo, o corpo se transformou em ácido e correu várias rochas antes de finalmente desaparecer totalmente.
Scylla voltou para o reino Tiger com o corpo do neto, sendo recebida por Aine que, pela primeira vez, não se preocupou com as testemunhas, chorando como se o bebê morto fosse seu próprio filho.
~o ⭐ o~
Scylla não quis ficar em casa, mesmo com os pedidos de seus amigos para ela descansar. Ela, Aine, Lich, Luc, Gaia, Sunny e Alart estavam seguiam em silêncio pelos corredores barulhentos. Lich à frente com a reitora que Aine tinha certeza que gostava dele. Não poder ficar de braços dados com ele e esfregar na cara dela que eram um casal estava a correndo de raiva.
- Ela foi deixada aqui pela bisavó, cuja filha tinha sido vítima do Ismir. Depois a idosa sumiu. – A reitora disse. – É uma menina esperta, mas misteriosa e passa muito tempo no sótão. As crianças gostam muito dela por ser brincalhona, sempre pregando peças em todo mundo. Ela tem um talento natural para a liderança, mas percebo que ela tenta ficar longe de todos o máximo que pode. Acho que ela não gosta de chamar a atenção. Já pensei em adotá-la por que gosto muito dela.
Gosto muito dela, nhem nhem nhem. Ela não cala essa boca? Aine pensou, irritada com a reitora apenas por ela existir.
Scylla que ouviu o pensamento de Aine deu um sorrisinho, aliviando um pouco da dor da perda.
Sunny cutucou o braço de Alart, mostrando a cara de raiva que Aine estava fazendo e os dois sorriram.
De repente pequenas explosões foram ouvidas e todos ficaram em alerta, imaginando se Erínio estava atacando o orfanato. Todos sacaram suar armas, alguns guardas correram em direção à cozinha onde gritos já eram ouvidos.
- ISSO É COISA QUE SE FAÇA?! – A cozinheira gritou.
- O que aconteceu aqui? – A reitora perguntou, o incêndio dentro do armário onde ficavam as verduras que as crianças odiavam ainda sendo apagado pelos guardas.
- Essas crianças, dona reitora, essas crianças vão me enlouquecer! Imagina! Colocar bombas pra pegar fogo nas minhas verduras! Agora como vou fazer minha papa nutritiva!?
Um garoto de uns 9 anos ia saindo de fininho, mas Lich o segurou pela gola da camisa.
– Fale.
Apesar de adorado por elas, as crianças tinham um pouco de medo de Lich, como todo mundo, principalmente quando ele falava curto e grosso assim.
- Era só um biscoito... – O garoto disse, tirando um biscoito doce do bolso.
- Um? – Lich perguntou e seu olhar deixou o menino apavorado.
- Dois.
- Tire todos do bolso. – Lich disse e o menino tirou 18 biscoitos dos bolsos.
- Entendi. – A reitora suspirou. – Você não vai me dizer onde aquela pequena terrorista está aguardando os biscoitos para dividir com as crianças. Ou vai?
- Nunca! – O menino disse, mesmo visivelmente com medo.
- Quer me dizer que isso tudo foi tramado por uma criança? – Scylla perguntou.
- Destruir a papa que todo mundo odeia, – A reitora sussurrou para não magoar a cozinheira – pegar biscoitos a mais para todas as crianças e planejar um incêndio? Ah, sem dúvida é coisa daquela pequena pilantrinha. Vamos. Só tem um lugar onde ela pode estar.
A menina, que obviamente puxou a aparência física Tiger da mãe, estava sentada no sótão, comportada, com um rostinho angelical que faria você apostar que ela era uma santa.
- Fui eu. Deixa ele em paz. – A menina era linda, não devia ter mais de 6 anos. O olhar dela foi atraído para Sunny. – Oi.
- Oi. – Sunny respondeu com a voz embargada.
A reitora se afastou com uma ordem de Lich e deixou o grupo a sós com a menina.
- Vocês demoraram. – Uma idosa que ninguém tinha visto até então, falou do canto da parede. Ela caminhou para sentir a luz do sol poente passando pela janela alta, como se aquilo fosse revigorante. A menina correu e segurou a mão de Line.
- Line? – Aine reconheceu as antigas pinturas e imagens mágicas da filha de Seth que, segundo a lenda, morrera e se transformara em uma árvore. Aine nunca acreditou no mito, apenas achava que a parente distante tinha morrido em algum lugar e a história real tinha se perdido.
- Como? – Scylla perguntou.
- Isso importa? – Line perguntou. – Cuidei da sua neta o quanto pude. Agora é a vez de vocês protegerem ela. Erínio pensa que ela morreu na floresta e deve continuar acreditando nisso. Ou ele vai fazer com ela o que pretendia fazer com o filho de Lucius.
- Nunca. – Scylla disse. Algo estava errado, mas ela não sabia dizer o que era, quase como se sua mente se recusasse a revelar para ela o que era.
- Jamais vamos permitir que algo a machuque. – Aine disse.
- Ela é nosso tesouro mais precioso. – Alart disse e Sunny apenas conseguiu acenar com a cabeça.
- Eu sei. – Line se virou para a menina. – Hora de ir, princesinha.
- Eu...não quero deixar você. – A menina disse com uma tristeza de dar pena.
- Lembra quando você veio para cá?
Scylla forçou a mente para tentar entender o que estava errado, mas sua mente parecia cheia demais, como se estivesse confusa.
- Lembru. – Ela respondeu, fazendo beicinho para evitar de chorar.
- Lembra o que eu te disse?
- Que nunca ia me deixar.
- E o que nunca podemos perder?
- A paláva e a honra.
- Exatamente. Agora vá. Eles precisam do seu amor, princesinha. Cuide deles, está bem?
A menina inflou o peito, decidida. – Vou cuidá. Dêxa com eu!
Line abraçou a menina uma vez mais e soltou ela. A garota caminhou até Sunny e fez um sinal para ela se abaixar. Quando Sunny fez isso, foi surpreendida com um beijo da menina na testa dela, suas pequenas mãos segurando as bochechas. A garota se afastou, segurou a saia da farda e fez uma reverência.
- Eu sô Raylla e sô indepindenti. – Ela disse com orgulho.
- Muito prazer, Raylla Indepentende. Você sabe quem nós somos? – Alart perguntou, mal controlando a emoção.
Ela olhou rápido para Line, como se tivesse ensaiado isso por anos. – Vocês dois são meus vovôs. Esse moço com cara di bravo e o moço que dá medo são meus titios. Essa moça é a tia que fala com Kallisi. Essa tia é filha dela e minha nova titia também. E ela... –
Raylla olhou para Aine, mas, antes de responder, franziu a testa visivelmente incomodada.
Então pegou a mão de Lich, a de Aine e uniu as duas. – Agoura tá céto.
Luc e Gaia olhar para os dois e perceberam que os braceletes novos dos dois não era apenas um acessório.
- Ela é a tia rainha e os dois são meus papaiz do córaçaum. – Raylla disse com plena convicção.
O que intrigou a todos nesse momento foi: como Line que viver tanto tempo escondida sabe-se-lá onde sabia de coisas que mais ninguém sabia? Porque o plano de adotar a filha de Les como sua herdeira era algo que mais ninguém sabia, além de Scylla e seus sogros que foram testemunhas legais da decisão dela. Quando todos voltaram seus olhares para onde Line estava, ela tinha sumido. Em seu lugar havia apenas um arco-íris, mesmo sem luz do sol lá fora agora, e um cristal vermelho em forma de coração envolto em um cordão dourado.
Quando o arco-íris sumiu totalmente, o colar apareceu no pescoço de Raylla que não esboçou nenhuma reação, como se fosse algo normal.
Cuidem bem dela ou vão conhecer meu lado vingativo. A voz de Kallisti soou como um trovão no local, deixando bem claro quem era a tal “Line” que cuidara de Raylla esse tempo todo.
- Eu sabia que tinha algo errado. – Scylla comentou enquanto Raylla estendia os bracinhos para Lich a pegar no colo.
Meio desajeitado, ele pegou a menina que o conquistou completamente ao escostar a cabeça na curva de seu pescoço, relaxada.
- Ela tem o mesmo sorriso de Les. – Sunny disse e ficou um pouco para trás com o marido para deixar as lágrimas caírem em paz.
Eu adoro crianças, mas esta aqui é a mais adorável que já conheci. Lich pensou alto para o irmão ouvir e completou para si mesmo. Eu vou cuidar dela como se fosse minha, Les. Eu juro, irmão.
~o ⭐ o~
Se eu cuidei já dá pra imaginar que a criança é, no mínimo, uma piromaníaca que vai crescer pra ter a mente mais impura dos universos, ne.
Capítulo 15
Nunca entendi o motivo de procurarem respostas em lugares complexos quando tem opções mais simples. Você entende? Me explica?
~o ⭐ o~
- Certo. Então, a proteção de Raylla está decidida. – Aine encerrou o assunto e abordou o próximo tópico. – Alguma novidade sobre o texto?
- Além do que descobrimos até agora, nada. – Alart disse, se coçando com o mofo naquele corredor estreito, mofado e fedido. – Sunny não se surpreendeu com o fato de Erínio já ter tentado algo parecido com o que está fazendo agora, no passado distante.
- Milênios, Eras de distância foram o suficiente para boa parte disso se perder na história... É um belo golpe de sorte termos achado algum resquício disso. – Scylla comentou, suando frio com as dores no joelho, ficando muito mais intensas e persistentes desde o confronto com Cassi.
- Ele não te procurou mais? – Alart perguntou.
- Não. Apenas silêncio até agora. – Aine respondeu.
- Não gosto disso. Ele pode ter descoberto sua falsa aliança. – Scylla comentou.
- Acho que não. Mas não temos como saber até ele dar as caras. – Aine disse. –
Precisamos de tempo e, por enquanto, felizmente, é justamente o que temos recebido.
- O trecho da arma que ajudou a deter Erínio no passado está apagado demais. Tem sido uma tarefa árdua. – Alart comentou. – Acredito que foi pelo estado praticamente impossível de decifrar que ele não se deu ao trabalho de levar embora quando atacou meu filho e Ane.
- Faz sentido. – Aine bocejou, incapaz de controlar o cansaço.
- É melhor irmos descansar. – Alart disse, dando um aperto leve no ombro de Scylla que tentava disfarçar o incômodo no joelho. – Tenho uma esposa teimosa para obrigar a dormir também.
- Diga a Lich que... – Aine começou, mas não sabia o que poderia dizer além do que ela já falava o tempo todo.
- Ele também sente sua falta. – Alart estava morrendo de pena do casal que não podia se ver com muito para não levantar suspeitas agora que, para todos os efeitos, as relações entre os reinos tinha que parecer bastante tensa. Pior ainda, afinal Alart sabia da compulsão de seu filho por Aine e o quanto isso o estava afetandoa agora que se mantinha afastado o máximo possível. Eu não tenho essa compulsão e já teria enlouquecido se tivesse que me afastar e fingir odiar minha menina dos sonhos.
~o ⭐ o~
- NÍA! NIÁÁÁ!
- Oi, pequena. – Nira apareceu com a farda suja de farinha, com a maior paciência do mundo.
Raylla sinalizou com a mão para Nira chegar perto. – Nía, eu truxe ôgumelo. É di colocá na caininha. Fica bom. Viu? Eu to ajudâno.
Nira olhou os cogumelos que a menina trazia fazendo a blusa de bolsa improvisada.
Realmente, eram cogumelos comestíveis e tinham um sabor delicioso quando combinados com carne vermelha. – Isso é ótimo, Raylla. Vai ficar maravilhoso na carne. Agora vá tomar banho enquanto eu termino de preparar nosso jantar.
Raylla arregalou os olhinhos de íris tão cor de laranja que pareciam uma pintura. –
Más.... Nía...eu ajudei...
- Sim, querida, mas ajudar não te salva do banho. – Nira disse, sabendo onde aquilo ia dar. Raylla odiava tomar banho e sempre tentava escapar, o que acontecia várias vezes no dia já que a menina viva subindo em árvores, brincando na lama, fazendo esculturas de barro que ninguém entendia, plantando... Enfim, vivia se sujando.
Com muita conversa e uma promessa de dar um pedaço maior de bolo, Nira convenceu a menina a ir tomar banho. O que, na verdade, provavelmente seria um banho de segundos e Nira acabaria tendo que ir dar banho nela de novo. Em geral, os dias se passavam e era apenas as duas naquela casa, disfarçadas de simples tia e sobrinha, apenas vivendo de sua pequena plantação. Em algumas vezes alguém da família aparecia, em raras vezes, todos se encontravam lá.
Semanas depois foi uma dessas raras vezes. Era aniversário de Raylla e todos deram um jeito de se encontrar na pequena casa. Embora estivessem felizes por se encontrarem e ver também a menina, todo mundo estava tenso e cansado.
Enquanto Raylla, suja de bolo que parecia ter comido em meio a um terremoto, brincava com um de seus presentes no chão da sala, os adultos conversavam sentados no sofá ao redor da criança. Lich e Aine estavam sentados quase colados, de mãos dadas, como se temessem que uma simples brisa os separassem para sempre. Luc e Gaia estavam sentados de mãos dadas ao lado deles. Alart estava sentado no sofá, com as pernas abertas, Sunny entre elas, mas sentada no chão mexendo nas peças do brinquedo e entregando para Raylla que estava concentrada em montar um tipo de quebra-cabeça criando uma construção semelhante a um castelo enorme. O presente de Lich até agora parecia ser seu preferido.
- Não tem mesmo jeito? – Aine perguntou.
- Não. – Gaia confirmou. – Fizemos tudo que era possível para tentar recuperar as informações de como pararam ele, mas a parte que fala disso e do fim da batalha está completamente deteriorada pelo tempo.
- Só deu pra identificar que houve alguma arma forjada para ajudar nisso, ou já existente com esse propósito. Não dá pra saber mais do que isso. – Alart disse, cansado.
- E quanto ao resto do plano? – Aine perguntou.
- Tudo certo. Finalmente decidimos. – Luc comentou, dando um beijo na mão de Gaia.
– O problema é que não adianta nada sem essa porra de arma.
- Olha a boca, Luc. – Lich disse, olhando irritado para o irmão e depois para Raylla.
- Aqui está. – Nira entrou com algumas bebidas alcoólicas e sucos coloridos. Scylla ajudava trazendo uma cesta com mais doces e salgados, cada uma colocando tudo na mesinha de centro. Raylla foi logo pegando uma taça das bebidas alcoólicas, mas Lich foi mais rápido e gentilmente pegou da mão dela.
- Más eu sôu grandi! – Raylla reclamou com Nira, fazendo birra.
- Quando você for adulta, vai pod....
- MÁS EU QUÉRU!
- Não. – Lich disse, calmo, mas firme.
Raylla olhou para ele como se a birra tivesse sido desligada num passe de mágica. –
Não posso?
- Não. – Lich disse apenas.
Sem dizer mais nada, Raylla apenas pegou um copo de suco e sentou de volta com seu brinquedo. Considerando o quanto ela era teimosa quando queria algo e a força de vontade gigante que ela parecia ter herdado de Les, a menina parou tão facilmente que não houve um único felino presente que não olhasse para ele abismado com a pergunta estampada no olhar.
- Como você fez isso? – Sunny perguntou. Ela e Alart sempre tiveram dificuldade para conseguir fazer Les e acalmar quando ele assumia esse modo teimoso e birrento na infância.
Lich apenas deu de ombros, afinal, ele mesmo não achava que tinha feito algo em especial. – Então vamos ter que criar algo para destruir ele. Não podemos continuar assim.
– Lich mudou de assunto, focado em acabar com aquilo, ainda furioso por ver Aine tremer sempre que parecia lembrar dos momentos com Cassi. Ela nunca contou exatamente o que aconteceu lá e ele não queria fazê-la lembrar daquilo, mas sabia que tinha sido humilhante e só não fora totalmente consumado porque Maia entrou em trabalho de parto e Cassi foi atraída de volta.
- Não deve ser fácil. – Nira comentou. – Mas sabemos que era algo muito poderoso, talvez ligando a magia onírica e a do fogo Tiger. Talvez forjado pelo culto de Kallisti, afinal ela é a divindade que aquilo quer tomar o lugar.
- Não éra melhior perguntá pra ela então? – Raylla perguntou inocentemente, seus olhinhos totalmente focados no brinquedo.
Minha garota!
Os adultos olharam para a menina, boquiabertos, depois se entreolharam com a sensação de serem os maiores idiotas do universo.
- Como caralho não pensamos nisso? – Luc perguntou e, caindo a ficha, olhou para o irmão que já o encarava com cara de quem queria dar um soco na cara dele por ter xingado de novo. – Foi mal. Esqueci.
- Cuidarei disso assim que voltarmos. – Scylla começou a planejar.
- Vou acelerar os preparativos para a festa. – Gaia disse, trocando um olhar com Luc que acenou em concordância.
- Descansem o máximo que puder. Se tudo correr como espero, não vai demorar para definir essa arma. – Scylla comentou.
- E vamos ter que pensar em uma recompensa para essa menina linda e inteligente. –
Alart olhou para Raylla que sorriu largamente.
Com todo mundo prometendo dar um presente pela inteligência dela, Raylla se inflou de orgulho e pulou para o colo de Lich que se levantou com ela para levar a garota sonolenta para o quarto.
- Más não tô com sono, Íti... – Raylla disse, bocejando e coçando os olhos.
- Dormir. Agora. – Lich disse, passando de um em um para ela abraçar cada felino, sem sair do colo dele. – Vamos.
- Bóa nóti. – Raylla acenou um tchauzinho pelas costas de Lich que já caminhava para sair da sala. – Íti.
- Sim, Ylla? – Lich perguntou chegando na porta.
- Ú ke é “caralhio”? – Raylla perguntou, seus olhinhos já quase fechados.
Lich parou a centímetros da porta e se virou completamente de frente para os convidados, dando um olhar assassino para Luc que apenas levantou as mãos se desculpando.
Luc se conteve pra não dar nenhum um sorrisinho ou, ele tinha certeza, Lich ia ter um ataque e socar sua cara. Assim que Lich se virou e saiu com Raylla, todo mundo deixou a gargalhada presa na garganta fluir livremente.
~o ⭐ o~
Scylla preparou um ritual conjunto com suas mais fortes sacerdotisas para invocar Kallisti no templo principal da divindade, anexo ao palácio Tiger. Meio-dia e meia-noite eram sempre os melhores horários para invocar Kallisti por serem o ápice dos dois maiores símbolos de seu poder: a luz quente e as trevas frias. Por isso, aquela sala específica no
topo da torre mais alta do templo tinha uma abertura circular na abóbada do teto, aberta por um mecanismo ativado por magia. Meio-dia em ponto, a estrela solar do planeta se alinhava àquela abertura com sua luz atingindo a estátua de dois metros da divindadade, iluminando seu corpo com aquela forma diferente de qualquer felino, e o altar aos seus pés.
Entrar naquela cúpula era quase como entrar em um mundo paralelo. A altura impedia que quaisquer sons da cidade abaixo fossem ouvidos. O silêncio apenas era cortado pelo som do ar passando pelas janelas e a abertura acima, o som de cânticos e preces sussurradas pois Kallisti abomina o barulho. A beleza dos cristais azuis e laranjas com luz própria espalhados pelas paredes em decorações, a energia pura da magia no local de culto antigo, as flores damas-da-noite cor de laranja do altar e os aromas de incensos e perfumes sacros tornavam o ambiente repleto de força e beleza, de magia pura e de tranquilidade.
Depois de uma noite de preces, banhos purificadores e todo o preparo necessário para esse trabalho, faltava pouco para o meio-dia quando Scylla se posicionou à frente da estátua dourada de cabelo vermelho vivo. Ao redor do altar e da estátua, oito sacerdotisas experientes formavam um círculo de mãos dadas, enquanto suas respectivas duplas de aprendizes formavam um círculo externo, com braços erguidos e entoando cânticos. Scylla usou sua magia para atrair uma pequena chama do coração flamejante da estátua e o fez flutuar até a vela vermelha no centro do altar, acendendo-a. Scylla começou a recitar a invocação, nove vezes como mandava a tradição, com as sacerdorisas experientes repetindo frase por frase, em tons mais baixos.
Scylla começou a entrar em transe, ouvindo um som muito distante, forte, como uma...queda? Ela não sabia dizer e, naquele estado de contemplação, não importava.
Quando a dor em sua perna sumiu ela sabia que estava no mundo onde os vivos eram apenas visitantes raros. Scylla abriu os olhos e nunca se cansava de ver aquele lugar. Era uma praia de águas azuis como o céu, embora os anéis Anuin aqui fossem dourados e não azuis, as luas eram maiores, rodopiando rapidamente ao redor dos anéis como crianças se divertindo juntas. As areias tinham um tom de ouro com pequenos pontos que brilhavam em branco, como diamantes pequeninos. Scylla virou de costas para a água e admirou aquele enorme campo de flores altas, alcançando sua cintura, com aromas conhecidos e outros que ela nunca conseguiu comparar com nada no mundo dos vivos. A lenda contava que cada flor era uma alma cultivada pelas mãos de Kallisti, criadas ali para depois ser enviada ao mundo dos vivos. Às vezes, dizia-se, Kallisti nomeava seus felinos preferidos como jardineiros de almas para ajuda-la nesse trabalho. Mas Scylla nunca vira outras almas trabalhando ali. Nem mesmo sabia se era naquele mundo espiritual que as almas dos vivos iam depois da morte ou em outro parecido, já que se sabia que Kallisti amava criar mundos e mais mundos por todo universo e outras dimensões. Um riso familiar soou baixo e
inconfundível, fazendo a nuca de Scylla se arrepiar e uma sensação de reconhecimento surgir em sua alma. Ela caminhou com os pés descalços, leve como quando era jovem, uma mão tocando suavemente as flores enquanto passava.
Rodopiando alegremente, parando de vez em quando para beijar uma flor, estava uma mulher de cabelos vermelhos quase como se emitissem uma luz própria, vestido leve de tecido semitransparente em tons de fogo, um arco-íris em forma de cinto, um pingente cristalino vermelho em forma de coração no pescoço, lábios vermelhos e aquele corpo diferente de qualquer espécie felina.
De olhos fechado, sorrindo, ela disse: - Scylla. – Nesse momento ela abriu os olhos exibindo a íris dourada que oscilava, às vezes brilhando como brasas incandescentes.
Scylla se ajoelhou. – Amada Kallisti. É uma honra... Vim em busca de seu conselho.
As sacerdotisas ao redor de Scylla mantiveram firmemente sua concentração para a grã-sacerdotisa não perder o fio que a guiaria de volta. Mas todas sabiam o que tinham ouvido e só podiam esperar que os guardas fizessem bem seu trabalho.
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Lich dera a ideia, mas Aine tinha achado que era apenas cautela excessiva. Mesmo assim, a intuição mandou que ela seguisse. Então ela fez. Segurando sua espada agora, com uma chama circulando por sua mão, ela sentia-se grata por ter seguido a ideia do marido. O
palácio Tiger estava em alerta máximo depois que dois guardas foram encontrados mortos, sufocados, olhos e bocas arregalados em nítido terror. Não precisava ser um gênio para saber quem tinha feito aquilo. Todos procuravam Cassiopeia pelos corredores enquanto Sentinelas aguardavam em posição nas escadarias que levavam à torre de Kallisti.
Como Cassi sabia por onde e como entrar no palácio? Aine só conseguia pensar em uma resposta para essa pergunta: Maia. Sem dúvida esse era um dos trabalhos dela depois de ter sido recrutada por aquele demônio que se achava um deus. O problema era que o palácio era tão antigo que ninguém sabia exatamente quando fora construído, embora houvessem muitas lendas sobre isso. Muito menos quais passagens existiam, quantas, onde e quais podiam ser usadas. Aine conhecia muitas delas, assim como sua avó, seu pai, etc.
Mas ninguém conhecia todas e não havia como saber quais Maia descobriu e mapeou para Cassi.
Aine encontrou mais três corpos no caminho para a torre e os gritos rapidamente silenciados eram um claro sinal de onde Cassi estava. Aine e cerca de 120 guardas e Sentinelas correram para a torre, encontrando dezenove corpos na porta.
Ele está muito mais forte... E furioso. Aine pensou.
Dando um sinal para alguns cercarem a torre assumindo os postos dos que tinham morrido, Aine entrou na torre com os outros. Depois de subir apenas três degraus da
gigantesca escadaria, a construção estremeceu com uma forte explosão e mais dois corpos de Sentinelas foram jogados da escada espiral, caindo diretamente no chão circular abaixo.
Um rosnado arrepiante ecoou alguns andares acima, fazendo alguns congelarem, paralisados no lugar. Aine soprou um encanto na chama, fazendo a magia de terror de Cassi perder força. O grupo subiu as escadas, alguns caindo de tempos em tempos, ajoelhados, enfrentando seus piores medos em suas mentes, culpas, segredos... A influência natural de Erínio estava poderosa demais e Aine fez o que pôde para despertar alguns de suas batalhas interiores. Mas a prioridade era impedir Cassi de atrapalhar o rito no topo da torre.
Enquanto isso, com um péssimo pressentimento, Lich chegava no palácio pelo portal, não dando a mínima para mais nada além de verificar se sua esposa estava bem. Para seu total desespero, ela não atendia suas chamadas e, quanto mais ele corria até a torre de Kallisti, mais corpos ele encontrava.
Ele se transformou em uma névoa densa negra e subiu as escadas até ser atingido por uma onda de ar muito quente que o derrubou alguns degraus abaixou, fazendo sua magia se desfazer por alguns minutos pela falta de concentração. Ele se levantou e correu escada acima.
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O vento ácido violento atingiu a porta e invadiu a sala, apagando a chama da vela do altar e do coração ardente na estátua de Kallisti.
Um tremor e gritos foi o que Scylla viu ao retornar ao seu corpo de forma violenta, quase como se tivesse sido jogada de volta. Um lado da porta dupla, a entrada principal da sala, estava caída no chão, outra estava meio pendurada por uma dobradiça. As aprendizes estavam caídas no chão, algumas visivelmente mortas. Apenas as sacerdotisas experientes ainda estavam de pé todas formando uma parede felina, usando suas magias para atacar uma felina de pele corroída, olhos completamente negros com uma energia negra e densa emanando de seu corpo e um líquido negro viscoso escorrendo dos cantos de sua boca, caindo algumas gotas no chão e o corroendo como ácido. Um pouco abaixo, Scylla sentiu Aine planejando um ataque por trás.
Não. Esconda-se. Não podemos perder você como vantagem. Scylla enviou a mensagem para Aine e tentou controlar o tremor e a confusão pelo retorno brusco ao seu corpo. Scylla focou sua magia para atacar Cassi, mas uma onda de magia ácida e negra explodiu do corpo dela e jogou as sacerdotisas no chão, feridas, mas não mortas. Scylla assumiu a frente delas e Cassi sorriu, mostrando dentes pontiagudos e furados.
- Sogrinha. Como vai seu neto? – Cassi perguntou cruelmente.
Sem perder o foco, Scylla usou sua magia para atacar o inimigo, criando portais menores para diminuir a distância e aumentar a velocidade com as quais seu poder o atingiriam. Os primeiros golpes pegaram Cassi de surpresa e o atingiram, fazendo ele rosnar ferozmente. Mas os seguintes não tiveram o mesmo efeito. Cassi parecia prever os ataques de Scylla, o que só provava que Cassi estava muito mais poderoso.
Scylla estava cansada e sentiu Aine subindo os últimos degraus, a magia Tiger brilhando em sua mão.
Aine....Não... Scylla tentou, mas Aine não parou.
- O que foi, Scylla? Está fraquinha? Sua mãe ficaria decepcionada. – Cassi gargalhou. –
Ou não... Afinal ela era uma fraca inútil mesmo.
- Cala a boca, verme! – Scylla tentou distrair a criatura para facilitar o ataque de Aine.
- Aine, minha querida. – Cassi disse assim que ela pisou no último degrau, sem mesmo se virar. – É melhor você estar pensando em usar esse foguinho aí para destruir essa vadia manca ali. Ou vou ter que matar você, meu atual brinquedinho preferido.
Aine apontou a mão direita com o fogo para frente, mas seu outro braço apertou seu próprio pescoço. De relance, ela viu a marca de Erínio em seu dedo brilhando em uma espécie de energia escura e sua mão esquerda parecia ter vontade própria agora, apertando cada vez mais seu pescoço, fazendo sua magia oscilar sem a concentração dela.
- O que foi, brinquedinho? Achou mesmo que eu não teria uma garantia contra sua traição? – Cassi disse para Aine, sem olhar para ela, ainda atacando Scylla. – Querida, eu sou o mestre quando o assunto é traição, esqueceu? Confesso que estou um pouquinho decepcionado. Achei que a gente ia trepar muito antes. Mas... Bem, eu ainda posso levar você comigo.
- Deixa ela em paz, seu monstro! – Scylla gritou, percebendo o que Aine estava planejando.
- O que? Está com ciúmes, sogrinha? Quer dar pra mim também? Não se preocupe. Eu te levo e dou umas enfiadas em você também. Mesmo que faça isso com seu cadáver.
HAHAHAHAHAHA!
Aine aproveitou a distração e, quase sem fôlego, com sua visão escurecendo, ela enviou uma chama fraca que passou por Cassi, sem o atingir e por Scylla.
Cassi olhou de lado para Aine e riu quando ela caiu sem ar no chão. – Nem para acertar um alvo você presta mais. Errou, rainhazinha.
- Tem...certeza...? – Aine perguntou, com seu típico sorriso adorável no rosto.
Cassi olhou para Scylla e viu quando a chama do coração ardente da estátua e a vela do altar no caminho. O ar quente, muito quente, dominou a sala.
- Desgraçada... – Cassi murmurou.
- Erínio. – Kallisti disse como se a palavra fosse a coisa mais nojenta que ela já tinha dito.
Scylla saiu do caminho e Aine desmaiou.
- Você não pode... – Cassi começou.
- SAI DO MEU TEMPLO! – Com a ordem de Kallisti todas as enormes janelas explodiram e Cassi foi jogada escada abaixo.
Mas, em fúria, Cassi se transformou em uma onda de ar ácido antes de atingir o solo e voou para longe, fugindo da fúria da deusa que ele ainda não podia enfrentar.
Ainda. Cassi pensou, furiosamente, ao atravessar a passagem.
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Lich correu ao ver Aine caída na entrada da sala, se ajoelhou ao lado dela, em pânico.
Mas, de repente, seus olhos foram atraídos, extasiados, para a criatura etérea de longos cabelos vermelhos e olhos como brasas incandescentes.
- Grande Kallisti... – Lich murmurou, sem fôlego.
A mulher de corpo estranho, diferente, sem pelos e linda, sorriu, doce. –
Precisamente, meu pequeno. Se importa? – Ela sinalizou com o olhar para Aine, quase não respirando, nos braços dele.
- Por favor... – Lich implorou, seus olhos ficando embaçados com lágrimas.
- É uma pena... Não posso quebrar a aliança que ela fez de livre e espontânea vontade.
– Kallisti olhou para a mão esquerda de Aine. – Mas ela pode.
- Como? – Scylla perguntou um pouco atrás.
- Ela saberá como cortar a aliança quando o momento chegar. Por enquanto...
A divindade se aproximou flutuando a um palmo do chão e encostou um único dedo na testa de Aine. A ponta do dedo dela brilhou como uma fogueira quando encostou na jovem por um segundo e então ela sumiu no ar, deixando um rastro luminosos, como pequeninas, milhares, de estrelas rodopiando até sumir totalmente nos corpos de todas as sacerdotisas na sala, inclusive as que tinham morrido.
Aine abriu os olhos e automaticamente colocou as mãos na garganta para ter certeza de que estava tudo certo.
As sacerdotisas mais experientes começaram a despertar. Mas o que deixou Scylla à beira das lágrimas de emoção foi ver as sacerdotisas antes mortas sentarem vivas, confusas, passando as mãos por seus corpos para ter certeza de que realmente estavam vivas.
- Lich? – Aine olhou confusa e logo foi puxada em um abraço apertado, quase sufocante. Lich chorou desesperado, aliviado, incapaz de controlar as emoções.
Algum tempo depois, todos mais calmos, Aine disse para Scylla: - Me diz que você conseguiu.
Scylla olhou muito séria, fazendo Aine temer que tudo tinha sido em vão e que teriam que descobrir outra forma de encontrar a arma.
- Consegui. – Scylla respondeu.
- Isso! – Aine gritou e logo tossiu, sua garganta ainda sensível. – Sorria, tia Scylla!
Finalmente temos como acabar com esse monstro! Vencemos!
- Aine, Aine... – Scylla balançou a cabeça. – Não comemore vitórias antes da hora para que a hora de chorar não venha no lugar delas.
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O que? Não me olha com essa cara não! Até parece que iam invadir meu lugar, machucar minhas meninas, NO MEU LUGAR, e eu ia deixar por isso mesmo.
Capítulo 16
É como vocês na Terra aí costumam dizer: é importante não contar com o ovo na árvore de ovos antes dela dar frutos. Ou algo assim... Ah! Você entendeu.
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Quando Scylla contou, o silêncio reinou no ambiente até ser quebrado por um sonoro
“nem ferrando!”.
- A decisão não é sua, Alart. – Scylla disse.
- Eu já disse que não. – Alart repetiu de pé, seus pelos todos eriçados, sua magia emanando ondas de luz e uma espécie de névoa negra de seu corpo.
- Calma, Alart. – Sunny disse.
- Não. Eu posso ir... – Alart começou.
- Não adiantaria. – Aine disse. – Seu poder não é esse.
- Esqueçam. – Alart não ia aceitar.
- Querido... – Sunny tentou acalmá-lo.
- Não, Sunny. Vamos embora.
- Não podemos ir e deixar as coisas assim. – Sunny disse. - Precisamos decidir e se isso for necessário... Acredite. Também não estou feliz com isso. Mas precisamos aprisionar Erínio ou...
- EU QUERO QUE O PLANETA SE EXPLODA! – Uma onda de luz branca seguida por uma onda negra explodiu do corpo de Alart, atingindo uma estante atrás dele com diversos livros que viraram pó.
Aine formou um escudo com sua magia, protegendo a todos dos resquícios da poeira.
Scylla e Lich permaneceram calmamente sentados, cada um de um lado de Aine, enquanto Sunny estava ao lado do filho caçula com uma expressão nada amigável no rosto.
- Acabou? – Sunny perguntou, usando seu autocontrole para não perder a paciência. –
Vamos nos reunir com os meninos e Gaia, afinal ela também é da família, e vamos decidir.
Juntos.
- Não tem discussão, Sunny! – Alart saiu, batendo a porta atrás dele, fazendo um quadro na parede ao lado cair no chão.
- Até que ele reagiu calmamente. – Scylla disse e todas as cabeças se viraram para ela incrédulos. – O que? Achei que ele ia explodir todos nós.
Sunny se levantou e alisou a longa saia. – Vou falar com ele.
- Vamos continuar procurando opções, mas... – Aine disse.
- Eu sei. – Sunny deu um sorriso triste para Aine e seu filho.
- Não gosto disso... Mas a verdade é que eu quero que Raylla tenha um mundo pacífico para viver. Estou disposto a muita coisa pra isso, mãe. – Lich disse, triste, mas aparentemente já decidido.
- Filho, eu não queria que fosse assim. Mas concordo que o sacrifício é válido. – Sunny estendeu a mão e Lich a pegou.
Depois que mãe e filho saíram, Aine colocou a cabeça entre as mãos, apavorada. –
Tem que ter outro jeito.
- Eu queria que tivesse. Realmente queria. – Scylla murmurou. – Vamos levar Raylla para passar alguns dias no palácio leonino? Pelo menos a garota vai ter mais tempo de convivência.
- Sim... Vou enviar Nira com ela. Também não acho que seja possível separar aquelas duas. Raylla já se apegou muito à ela. – Aine disse, meio aérea ainda.
Scylla colocou uma mão no ombro de Aine. – Eu sei que não é fácil, mas, aproveite o tempo que vocês têm ao máximo. Não sabemos com isso vai terminar.
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- Vou matar todos... – Cassi tirou uma pétala da linda flor dama-da-noite laranja, símbolo de Kallisti, e amassou na palma da mão fechada. – Vou matar quase todos... – Ela tirou mais uma pétala e repetiu o gesto. – Vou matar todos... Vou matar quase todos...
Uma criatura cheia de feridas pelo corpo, com uma cauda pontuda, asas, dentes afiados, com olhos negros, se ajoelhou na frente dela e disse numa voz esganiçada: -
Fome....fome...
- Eles saíram? – Cassi perguntou, ainda ocupada em destroçar a flor.
- Sim, meu senhor. – A harpia respondeu. – O velho leonino saiu na frente e um tempo depois a velha com a cria mais nova deles. Fome...
- E a Rainha Tiger?
- Sozinha... Ela quer vê-lo, meu mestre... Ela emana desejo carnal... Hahaha. Fome....
- Tem certeza?
- Sim, mestre... Ela sentou na varanda, olhando para a sua marca, com desejo...desejo, mestre... Posso comer ela? Fome...
Cassi deu um chute forte no rosto da criatura que caiu de costas no chão. – Você, criatura imunda, não deve comer a comida de seu mestre! Será que você é burra demais para entender isso?
- Não, mestre. Perdoa eu, mestre. – A harpia se ajoelhou, beijando o pé que havia sido usado para chutá-la. – É que...fome...e como ela aprontou...pensei...
Cassi empurrou a harpia com o pé que ela beijava, até fazer ela ficar com o rosto na lama. - Você não pensa, criatura inferior! Eu penso aqui. Você apenas obedece. Fui claro?
- Sim, mestre. Perdoa, mestre... Fome...
- Você vai comer quando eu mandar e quem eu mandar. Agora some da minha frente.
– A harpia saiu com um olhar de pura fome, desejo, inveja de Aine e da flor que Cassi estava destruindo. – Então, a tola já está viciada em mim. Talvez ela possa ter alguma utilidade, afinal.
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Uma taça se quebrou na parede ao ser jogada por um Luc furioso.
- NEM FODENDO!
- Olha a boca, rapazinho. – Sunny olhou irritada. – Já conversamos sobre isso.
- Luc tem razão. Vocês estão loucos se acham que vou permitir isso. – Alart andou nervosamente de um lado para o outro, espelhando a raiva que emanava de Luc do outro lado da sala.
- Isso realmente vai resolver? – Gaia perguntou, tentando usar a sensatez.
- E QUEM SE IMPORTA? NÃO VAI ROLAR! JÁ PERDEMOS O LES, PORRA! – Luc parecia ter o dobro de seu tamanho com os pelos eriçados daquele jeito.
- Não grita que ninguém aqui é surdo, Lucius. – O tom de aviso na voz de Sunny foi o suficiente pra fazer Luc respirar algumas vezes, tentando se acalmar.
- Luc, você acha que gosto disso? – Lich perguntou calmamente.
- Não apoio essa merda e pronto. – Luc parou ao lado do pai, ambos de braços cruzados sobre o peito e a mesma expressão furiosa e desesperada no rosto.
- Vocês já sabem o que eu penso. – Alart disse.
- Eu não sei... – Gaia disse, olhando como se pedisse desculpas para o noivo. – Não quero isso também, mas não quero ver Erínio ganhando cada vez mais poder, quem sabe até destruindo nosso mundo.
- Ele não vai destruir! – Luc disse, mais desesperado para convencer a todos ali do que sendo racional.
- Mesmo? Acha que Kallisti vai permitir que isso continue sem acabar interferindo pessoalmente e causando uma guerra com ele? – Sunny perguntou.
- Sabemos que ele só quer destruir tudo com sua magia ácida e dominar toda vida possível. – Lich ponderou. – Kallisti não se envolveu para evitar uma guerra que sabemos bem como termina. Mas ela não vai se manter distante por muito tempo. Então ou ele vai afetar nosso mundo o destruindo ou vamos ser afetados pelo conflito destrutivo entre os dois seres mais poderosos do universo. O risco da arma é muito menor em comparação.
- Eu não ligo! – Alart disse teimosamente.
- Não mesmo? – Sunny o encarou. – Gaia e Luc nunca terão um reinado, uma família, em paz. A morte de Les e Ane terá sido em vão. Raylla nunca terá o mundo lindo em que
vivemos para crescer. E, no fim, Erínio terá nos vencido porque fomos covardes demais para pagar o preço e salvar nosso mundo.
Alart sabia que ela tinha razão. Luc também. Mas aceitar isso era muito difícil. Sunny se virou e saiu, seguida por Gaia e Lich, deixando os dois ali com suas próprias consciências.
Na manhã seguinte uma mulher que vendia legumes mostrou um passe na entrada do palácio e entrou com uma menina que usava um lenço esfarrapado amarrado como um turbante e roupas muito desbotadas. As duas entraram pela cozinha e a mulher colocou a cesta com legumes na mesa longa, desviaram das funcionárias atarefadas e mostraram outro passe, com uma seta azul no topo, para o guarda na porta. Ele ergueu uma sobrancelha, abriu a porta e entrou sozinho. Ao mostrar o passe e descrever a mulher e a menina para a rainha, ela abriu um sorriso e permitiu a entrada das duas na sala onde a família comiam em um silêncio tenso.
A mulher entrou com a menina quieta ao seu lado, visivelmente quieta com dificuldade. O guarda fechou a porta e voltou ao seu posto lá fora. Assim que a porta se fechou, a menina arrancou o turbante, liberando os cachos saltitantes, correndo e gritando feliz até pular no colo de Sunny, praticamente escalando a mulher.
- VOVÓÓÓÓÓÓ!!! – Raylla abraçou o pescoço de Sunny com uma força inacreditável naqueles braços finos.
- Raylla, calma. – Nira tirou o lenço da cabeça.
- Sente-se conosco, Nira. – Alart sinalizou para uma cadeira e Luc colocou mais um prato na mesa, sabendo que era inútil tentar colocar um lugar para Raylla.
- O que vocês fazem aqui? Aconteceu algo? – Lich perguntou, preocupado.
- Não, nada. A rainha Aine ordenou que eu trouxesse Raylla para vê-los e a pequena fornalha adorou a ideia. – Nira respondeu, calmamente.
- Fornalhinha da vovó, você está com fome? – Sunny deu um beliscão leve na barriga da menina fazendo ela rir.
- Muuuuuuinta fome, vovó! – Raylla disse, pulando no colo de Sunny. De repente, tempestuosa como sempre, ela se debateu até Sunny coloca-la no chão, passou por Gaia, Luc e Alart dando um beijo no rosto de cada um e pulando no colo de Lich. Ela sentou no colo dele tão naturalmente como se fosse uma cadeira, abraçou o pescoço dele. Lich esfregou de leve seu focinho escuro no da menina, ambos de olhos fechados.
Automaticamente ele pegou o bife em seu prato, arrancando pequenos pedacinhos e dando na boca de Raylla que comia naturalmente.
Todos viam isso sempre que Lich e Raylla estavam no mesmo lugar, sempre tão unidos e fofos, mas nunca se cansavam disso.
- Que fofinho. – Gaia não resistiu e deixou escapar.
Lich levantou a cabeça para olhar a cunhada, intrigado, enquanto limpava a boca de Raylla com um guardanapo de tecido. – O que é fofinho?
- O caralho dos anéis Anuin. – Luc debochou. – O que você acha?
Lich tampou os ouvidos de Raylla com as mãos e olhou furioso para o irmão. – Para de xingar perto da pequena, idiota.
- Olha só. Consegui tirar o intocável Lich do sério. Será que ganho um prêmio por esse momento histórico? – Luc comentou.
- Estou falando sério, Luc. Ela vai aprender essas coisas. – Lich parecia realmente irritado.
- Não seja chato, Lich. – Luc sabia que era verdade, mas não ia perder a chance de provocar o irmão. Les não perderia essa chance de sacanear o intocável. Essa é por você, mano. Luc pensou. – Acho que vou escrever um dicionário de xingamentos para ela.
Lich jogou uma uva na testa do irmão, com um olhar venenoso, fazendo Raylla rir enquanto tentava tirar a outra mão dele de sua orelha.
- Meninos... – Alart tentou parar a discussão, sem fazer muito esforço porque ele estava adorando o momento mais leve.
- EEEEE! A genti pódi jogá coisas do tíu Lúkiiii!!! – Raylla esticou o bracinho para pegar uma tortinha do prato de Lich pronta para jogar no tio.
- Não, Ray... – Luc tentou impedir.
- Isso mesmo, Raylla. – Lich disse com um olhar perverso e divertido ao mesmo tempo.
– Hoje é dia de jogar coisas no tio Luc.
- Seu... – Luc começou, mas foi cortado por uma tortinha acertando sua testa. – Ah, sua pilantrinha.... – Ele levantou, deu a volta na mesa rapidamente, agarrou a menina, tirou do colo de Lich e segurou ela na horizontal em seus braços.
- NÃUM, TÍU LÚKI..HIHIHIHI... – Raylla gargalhou prevendo o ataque.
- É GUEEERRAAAA!!! – Luc disse, ergueu os braços com a menina, colocou a boca na barriga dela e provocou cosquinhas.
- HAHAHAHAHA! PÁRA, TÍU!
- Renda-se, sua fornalhinha lançadora de tortas! – Luc disse, intercalando as cócegas.
- Não se renda, Raylla. Ele vai cansar. – Lich disse.
- EU NUM HAHAHAHAHA SI RENDHAHAHAHAHA!
- Isso mesmo, Ray! – Gaia apoiou.
Luc olhou para ela com um olhar que claramente dizia “eu vou cobrar essa mais tarde no quarto”, deixando Gaia vermelha e adorando a ideia.
- Pelo visto mais uma cama vai ser quebrada esta noite. – Sunny disse e Gaia facilmente podia ter explodido de vergonha.
- Amor... Sutileza, lembra? – Alart segurou a mão de Sunny por cima da mesa, sorrindo.
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Enquanto isso, em Tiger, as coisas iam bem...ou mal, dependendo do seu ponto de vista. Pela quinta vez nas últimas horas, Aine tinha ido para a varanda e aguardado ansiosamente. Ela sentia que era observada. Não por suas Sentinelas ou qualquer outra pessoa cujo trabalho era no palácio. De alguma forma ela sabia que Erínio estava atento à ela. Ela podia sentir a ligação entre eles mais forte a cada segundo desde o dia em que ela aceitou sua marca. Sem esperanças, ela voltou para dentro do quarto, deixando a porta da varanda encostada. Cansada, lidando com o governo, segredos e uma guerra mágica iminente, ela dormiu quase imediatamente. Em algum momento na madrugada ela acordou com a sensação de estar sendo observada. Inicialmente Aine pensou que era Lich.
Mas então, com aquela sensação inexplicável de união, ela entendeu quem a observava.
- Você voltou... Achei que nunca mais quisesse me ver. – Aine sentou na cama e acendeu uma chama pequena em sua mão para usar na vela ao lado da cabeceira.
Com um passo em direção à cama, sentando na lateral, Cassi olhou para ela com aqueles olhos totalmente negros. – Tire.
Cassi ordenou, testando seu nível de poder sobre ela. Aine obedeceu sem pestanejar, tirando a camisola curta sobre a cabeça, seu corpo coberto com uma colcha grossa da cintura para baixo.
- Muito bem.
- Eu nunca iria desobedecer você. Sabe que eu gosto de você. – Aine disse em um sussurro enquanto uma lágrima escorria por um olho.
- Sim. Você provou isso naquele templo ridículo. – Cassi puxou lentamente a colcha, exibindo o corpo de Aine. – Por um segundo pensei que você ia usar esse foguinho em mim.
- Nunca. Fiz o possível para não chegar lá em cima rápido.
- Eu sei. – Cassi abaixou até seu rosto quase tocar o de Aine.
- Mantive eles achando que estou do lado deles, como você mandou. Fiz direito?
- Fez muito bem, bonitinha. Tão bem que se eu não soubesse antes até teria acreditado. Você é sem dúvida uma aliada preciosa.
- Então você vai me dar o que prometeu naquele dia quando me deixou pela idiota da Maia? – Aine perguntou, fazendo beicinho.
- Sou um deus de palavra, menina perfeita. – Cassi fechou a distância entre elas, beijando Aine e terminando o que tinham começado na cabana.
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Semanas se passaram com cada um se preparando para o inevitável. Aine encontrava Lich sempre que podiam em segredo. Scylla ajudava quando podia, abrindo portais para eles, mas estava muito ocupada fortalecendo a si mesma e outras sacerdotisas. Sunny e Alart ficavam juntos o tempo quase todo, agora que Luc estava praticamente pronto para assumir o trono, aguardando apenas a cerimônia oficial de coroação que aconteceria em breve. Luc e Gaia....como vou dizer....quebraram algumas camas. Onze, para ser mais exata.
O palácio leonino estava empolvoroso com os preparativos da coroação de Luc, mas, principalmente com a pequena garotinha, filha da de uma vendedora de frutas que vivia no palácio agora, amiga da rainha. Muitos cochichavam pelos corredores que a pequena Raylla, a menina que havia cativado o coração de todos, era uma Tiger com o mesmo jeito de olhar do falecido rei leonino Arman, pai de Alart. Alguns até achavam que ela podia ser uma prima distante de Alart, descendente de algum filho perdido de Arman.
Fosse como fosse, a menina que já era a líder das crianças filhas dos funcionários, criadora de planos mirabolantes e causadora de pequenos incêncios aleatórios, era adorada pelos funcionários que não tinham coragem de reclamar com a menina pelas travessuras por causa daqueles olhinhos adoráveis e aquele rostinho de boneca. Não passava desapercebido o carinho e união da menina com Lich, o mais assustador dos irmãos, o que começou a gerar fofocas sobre ele ser pai da menina. Claro que ninguém ia dizer isso na frente da família real. Mas a fofoca corria solta.
Uma tarde, Aine apareceu no palácio, criando expectativas nos servos de que finalmente a aliança entre os reinos fosse retomada, apesar do jeito diferente, mas distante da rainha Tiger que parecia tensa, até mesmo triste. No entanto, muitos atribuíram isso a recente perda da mãe dela. Aine entregou os documentos para Gaia, encontrou Raylla e aproveitou um tempo com ela. Depois foi embora sem falar com mais ninguém.
A verdade é que, apesar da aparente naturalidade, todos estavam nervosos com o silêncio de Erínio, sem saber o que ele estava planejando ou como encontra-lo. Scylla estranhava o monossilabismo de Aine que estava mais quieta e menos sorridente do que o habitual, mas atribuía isso a morte da mãe dela, ainda recente.
- Claro que ele não vai te procurar depois que ele viu como você não é aliada dele. –
Scylla disse. – Mas se ele tentasse te contatar pelo menos teríamos uma chance de enfrentar aquela coisa ou seguir ele...
- Ele não me procurou mais. Nem tentou contato. Mesmo se tentasse, seguir ele seria bem difícil. Ele sabe se esconder. Tem feito isso a séculos. – Aine comentou, meio distante.
- Sim. De qualquer forma, quando tivermos tudo pronto, espero que dê certo ou não vai adiantar nada termos a arma se ele não aparecer.
- É.
- Pelo menos Raylla está feliz e segura.
- Sim.
- Gaia me disse hoje que Raylla tentou fazer bolinhos para Lich, ajudando a cozinheira, mas acidentalmente queimou tudo.
- Sei.
E pelo jeito a Aine monossilábica está de volta. Scylla pensou, revirando os olhos.
Então perguntou pela milésima vez naquela semana. – Você está bem?
- Sim.
- Aine, sabe que pode conversar comigo, não é? Você não vai ser menos digna se pedir ajuda e eu...
Aine se levantou. – Preciso trabalhar. Feche a porta quando sair. – Então ela saiu do próprio quarto, indo para o gabinete de trabalho sem dar um único sorriso de cumprimento para as pessoas por quem passava, diferente de seu habitual jeito, mas muito comum nas últimas semanas.
Scylla ficou no quarto de Aine, sentada na mesma poltrona. Então se levantou e saiu, fechando a porta. Tudo bem é uma porra! Eu vou descobrir o que há de errado ou mudo meu nome para Jubiscrecivânia! Scylla pensou, decidida enquanto caminhava para seu quarto no templo.
~o ⭐ o~
Pelo menos Jubiscrecivânia...er...quer dizer, Scylla, percebeu ne. Amo meus felinos, mas ô povo lerdo às vezes viu!
Capítulo 17
Eu amo festas. Mas sabe o que amo mais?
Vingança.
~o ⭐ o~
O dia da coroação de Lucius amanheceu quente e abafado. O evento aconteceria a alguns metros do palácio, em uma área especialmente contruída como um campo aberto, um tipo de praça enorme, afastada das residências e comércios. O local tinha sido decorado com as cores do reino leonino, azul e preto, flores plantadas ao redor, árvores tinham sido decoradas com fitas de tecido colorido em seus galhos. Em uma extremidade, de frente para o sol nascente, estava um enorme palco alto, com assentos para a família real, nobres próximos, a rainha Tiger que não havia confirmado presença até o momento, magos de alto escalão e os principais conselheiros e generais de guerra. A guarda pessoal do rei estava a postos nas laterais de acesso ao palco, enquanto guardas de outros setores da segurança da cidade faziam a segurança do local.
Aine deveria aparecer antes do início do evento, suas sentinelas assumindo o posto nos mesmos lugares que a guarda do rei. No entanto, nas últimas semanas ela estivera distante e reticente com a família real leonina. Depois de uma discussão com Lich sobre a arma para enfrentar Erínio, ela o evitava também. O isolamento dela não passou despercebido para o povo, tão nítido era aquilo. Dias antes Nira cumpriu a ordem de Aine para levar Raylla para longe como era o combinado. Se tudo desse certo, Raylla devia estar o mais longe possível.
A cerimônia seria simples, como geralmente era naquele reino. Luc passaria por uma cerimônia no templo de Kallisti, voltado ao culto das luas e sua relação com a divindade. O
templo era mais uma capela no subsolo do palácio, simples, decorada em tons de laranja e azul cristalino. A cerimônia era muito antiga e tradicional, sendo presenciada pelo mago chefe e seu assistente, o próximo rei e pelo rei anterior em caso de transferência de coroa pacífica, além da próxima rainha caso já tivesse sido escolhida. Nenhum dos presentes poderia mencionar no que consistia a cerimônia, sendo um dos segredos leoninos mais bem guardados da história. Saindo da cerimônia, Luc, religiosamente, já seria considerado um rei. A próxima reunião era com os nobres e possíveis novos conselheiros. Esta era apenas uma formalidade onde os nobres que já haviam feito acordos políticos, econômicos e militares se ajoelhariam perante o rei, reconhecendo seu poder e jurando fidelidade ao casal real. A terceira cerimônia era a mais celebrada. O rei, agora religiosa e politicamente, devia se apresentar perante seu povo em uma reunião pública onde ele juraria fidelidade ao seu povo, priorizando seu bem-estar e a prosperidade do reino. O juramento era
normalmente seguido de uma dança onde o rei levaria sua rainha, ou uma mulher previamente escolhida para tal honra, até o centro palco e teria a primeira dança do reinado, simbolizando o movimento rítimico e preciso da natureza. Sentado em seu trono, o rei observaria seu povo aproveitar o banquete, a música, enfim, a festa até que metade tivesse decidido ir embora sem ninguém ordenar sua saída. O rei precisava ser aprovado na tríade, mas, a principal era a cerimônia religiosa.
Até aquele momento, Luc havia passado pelas duas primeiras cerimônias. A religiosa de madrugada com seus pais e Gaia de madrugada, a segunda estava quase terminando com Luc anunciando seu casamento oficial com Gaia realizado na mesma capela, minutos depois de sua coroação religiosa. Não era comum, mas também não era proibido. A verdade é que ele não queria mais adiar seu casamento e deixar ela sem o amparo legal como rainha leonina. Lich dera a ideia, não querendo perder a chance de ver seu irmão casado. Aine então chegou discretamente e sentou em seu lugar. Luc e Gaia saíram de braços dados, ambos já coroados, e assumiram seus postos no palco. Alart e Sunny passaram um cetro simbólico para as mãos de Luc e Gaia, respectivamente, na frente do público. Depois do juramento, o casal abriu a dança. Lich estava incomodado enquanto Aine não olhava para ele de jeito nenhum. Seu foco estava à frente, olhando para nada em específico, a mandíbula travada. Lich olhou para seu irmão e sua cunhada sorridentes enquanto dançavam e uma pontada de inveja o atingiu. Ele adoraria estar assim com Aine ou só saber que ela ainda o amava. Mas sua frieza quase agressiva nos últimos dias era dolorosa e o confundia.
Luc e Gaia não diziam uma palavra, apenas se olhando apaixonados, felizes. Naquele momento, ambos tinham esquecido todo o resto, toda a preocupação, a angústia, a incerteza do futuro.
Foi quando explosões foram ouvidas, seguidas de gritos. Pessoas começaram a correr desesperadas enquanto harpias surgiam de árvores próximas, pulando e rasgando corpos como se fossem feitos de papel. Uma nuvem escura e azulada surgiu se transformando em Cassi com corpo mais masculino, poucos traços ainda femininos.
O ar se tornou tóxico, ardendo nos pulmões, olhos e gargantas. O céu antes claro e sem nuvens estava gradualmente escurecendo conforme a nuvem tóxica de Erínio se elevava no ar, deixando a luz do sol cada vez mais bloqueada. Luc empurrou Gaia para seu chefe da guarda que tinha recebido ordens prévias de leva-la para longe assim que o plano de atrair o monstro desse certo. Seguindo as ordens de seu rei, o Capitão Justino tirou uma poção em forma de pó branco do bolso e soprou no rosto de Gaia. Imediatamente, ela parou de se debater, seu corpo foi ficando mole, sem forças, até que ele a pegou no colo e correu para longe.
- Uma coroação... Perfeito para me coroar o deus deste mundinho patético. – Erínio disse, algumas gotas de sua saliva pingando no chão e corroendo o solo onde caía.
Alart e Luc já tinham sacado suas armas, um escudo de magia branca brilhante cercando eles. Lich tentou assumir a frente, mas Luc o impediu.
- Seu monstro! Vá embora! – Luc gritou.
- Ou o que? Vão me matar? Me aprisionar? Como? – Erínio debochou. – Vocês não têm força contra mim.
- Esqueceu do poder Tiger? – Lich gritou ao lado de Sunny, ambos ainda atrás de Luc e Alart. Lich olhou de relance para Aine enquanto observava também os guardas leoninos e as sentinelas Tiger tirando as pessoas dali e tentando evitar o ataque das harpias. Muitos dos militares não conseguiram, mas boa parte do povo já tinha sido evacuado.
Aine caminhou até a frente, ficando entre Alart e o escudo, encarando Erínio decidida.
- Mate-o. – Erínio disse.
Sem vacilar um milissegundo, Aine se virou e atingiu Alart no peito com uma bola de fogo, o jogando metros para trás, com ele caindo pela parte de trás do palco.
- ALAAAAAAAAAAAAAAAART! – Sunny gritou e correu para onde ele tinha caído, mas Aine a atingiu pelas costas, fazendo com que Sunny caísse no mesmo lugar que o marido.
Lich olhou para Aine, confuso, ferido. Luc estava confuso, mas logo a raiva assumiu o controle. – Sua....VERME TRAIDORA!
Aine desviou facilmente do golpe da espada de Luc e deu um chute em sua perna, fazendo ele perder o equilíbrio e cair. Com um pé sobre o pescoço do agora rei leonino, ela olhou para Lich que deu um passo em direção a ela. – Um passo a mais e quebro o pescoço dele. – Aine disse calmamente.
- Aine... Você não precisa...
- O que, Lich? Não preciso matar vocês? – Aine disse. – Isso não é você que decide.
Querido, o que devo fazer com eles?
Erínio que observava satisfeito por ela não só ter matado Alart como combinaram, mas também Sunny e estar disposta a exterminar os dois irmãos, flutuou um pouco mais baixo, ficando bem perto do chão do palco. Ele se aproximou, olhou para Lich com um sorriso cruel, ergueu o queixo de Aine com um dedo e a beijou de uma forma voraz, de olhos abertos focados na reação de Lich. Ver ela retribuir apaixonadamente quebrou o coração de Lich em mil pedaços.
- Eu mato esses. – Erínio disse para ela.
Aine tirou o pé de cima do pescoço de Luc e deu um passo para o lado de Erínio.
- Aine... – Lich quase não tinha voz naquele momento. Focando eu seu poder, ele se transformou em uma névoa negra e avançou para salvar o irmão, mas a névoa tóxica de Erínio em contato com a sua fez com que o veneno se espalhasse mais rápido pelo corpo de
Lich. Ele caiu no chão, a metade superior de seu corpo materializado enquanto a de baixo ainda era uma névoa. Seus pulmões queimavam e seu coração doía pela traição de Aine.
Luc se levantou, mas logo recebeu um chute na barriga, jogado quase em cima de Lich.
- Porque você fez isso, Aine?! – Luc perguntou e só ficou mais confuso com a resposta.
- Ela me ama. – Erínio disse, passando a língua pelos dentes com olhar divertido e cruel.
- Quer que eu mate logo ele? – Aine disse, impaciente. – Assim podemos trazer logo meu pai nesse corpo e ele vai ajudar.
- Claro. – Erínio disse, caminhando devagar para os irmãos que já se levantavam com dificuldade pois pensar sem conseguir respirar direito estava muito mais difícil agora.
- Aine ele não tem poder para... – Lich começou, mas uma onda ácida emanou de Erínio e o atingiu no rosto, arrancando boa parte dos pelos ali, deixando uma pele branca exposta abaixo. Aine não esboçou nenhuma reação a isso, apenas olhou para suas unhas da mão esquerda onde Lich pôde ver a marca de Erínio muito maior, tomando toda a palma da mão dela, muito mais negra e intensa do que antes.
Com os olhos ardendo pelo veneno que parecia se fortalecer a cada segundo, harpias atacavam várias pessoas que ainda estavam no local, algumas caídas aparentemente mortas apesar de não haver sangue em suas roupas, provavelmente mortas pela falta de ar, outras correndo de um lado para outro, outras ainda corajosamente jogando pedras e usando armas improvisadas para ajudar em uma luta claramente perdida.
Não. Luc enviou a mensagem telepática para o irmão que erguia-se pronto para se transformar de novo.
Lich olhou para ele irritado. Não era hora de tentar protege-lo de outro ataque. Porém a mensagem tinha um claro tom de ordem e agora Luc era não apenas seu irmão mais velho, mas também seu rei. Obedecer uma ordem direta era sua obrigação e ele não sabia agora se obedecia ou lutava.
- Você não tem como vencer! – Luc disse.
Erínio parou e gargalhou. – Você acha mesmo? Olha ao seu redor, molecote. Eu já venci.
- Nunca se deve cantar vitória antes da hora. – Aine disse e Luc se abaixou, puxando o irmão para baixo, protegendo sua cabeça e a de Lich com um braço em cada. Não respire.
Luc ordenou e Lich obedeceu automaticamente.
O calor lancinante passou sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que uma onda de ar venenoso mais intensa passa por eles. Lich não entendeu nada, mas ouviu Erínio rosnar. Ele tinha sido jogado longe por uma gigantesca rajada de fogo, rodopiando sem controle no ar, até parar a alguns metros de onde ficava o palco. Parado no ar, ele levou alguns segundos
para entender o que aconteceu. Aine correu para o fim do palco onde Sunny e Alart tinham caído. Luc puxou o irmão de pé e correu pouco atrás dela.
- Não fiquem aí parados! Me ajuda aqui! – Aine gritou enquanto tentava puxar algo.
Alcançando a borda alta do palco, Lich e Luc quase desmaiaram de alívio ao ver Sunny e Alart de pé sobre um colchão inflável, confusos, mas vivos. Rapidamente, os três puxaram o casal para cima do palco. Havia uma queimadura enorme na parte superior de suas roupas, um claro cheiro de carne queimada e pele realmente queimada abaixo.
- Como? – Luc perguntou.
- Agradeça à sua esposa. – Aine disse enquanto Alart tirava o forro macio do tórax de seu casaco, arrancando um pedaço de carne escondido ali, enquanto Sunny tirava o mesmo da parte de trás de seu manto real tradicional pesado.
- As roupas pareciam mais pesadas do que o habital, mas achei que era só minha velhice. – Alart murmurou.
- Gaia é um gênio, mas não temos tempo pra isso. – Aine disse, acendendo a chama em sua mão direita de novo.
Em um reflexo, Lich e Luc se assustaram, temendo outro ataque quando ela esticou a mão na direção deles. O fogo brilhou e passou entre os irmãos, na altura de suas cabeças, acertando Erínio ao longe que voava feito louco até eles.
- PEGUEM ELA! – Erínio gritou ao longe e as harpias se moveram como um só ser, se voltando para Aine e se preparando para voar até ela.
- AGORA! – Aine gritou e as pessoas mortas por sufocamento na enorme praça se levantaram bem menos mortas do que parecia. Mais estranho foi todos os meio-mortos arrancarem seus mantos, tirarem o rosto que na verdade era uma máscara e sacarem espadas, arcos, machados, foices e magias brilharem em mais de 1000 mãos nenhum pouco mortas.
Um desses não-mortos veio para frente, tirando o resto de seu disfarce para liderar o exército que se erguera ali. Com um estalar de dedos, um portal se abriu ao lado do líder e sacerdotisas mais velhas surgiram em suas vestes tradicionais. – Matem essas harpias e protejam o povo! – Scylla ordenou e o caos se seguiu.
Gritos de harpias se misturaram a gritos de guerra dos militares, do povo, das sacerdotisas de todas as idades que tinham lutado para não abandonar o disfarce antes da hora e dar um fim naquelas coisas. As harpias, pegas de surpresa e com seu líder focado no palco, lutaram e outras tentaram fugir. Algumas fugiram sem nem tentar ajudar suas aliadas. Outras lutaram e mataram vários de seus atacantes.
Scylla abria portais ininterruptos e os fechava em seguida para ajudar cada felino ali a se movimentar. Suas adagas cortavam o ar, lançadas com precisão nas asas das harpias, as
forçando a lutar no solo. Mas seu foco ainda precisava ser dividido, aguardando o momento.
Enquanto isso, no palco, Erínio chegava perto, sua raiva deixando o ar ainda mais tóxico, o céu tão escuro quando a noite, porém sem nenhuma estrela visível. Nem parecia que era perto do meio-dia ou que algum dia o sol brilharia naquela escuridão tóxica.
- VOCÊ PODIA TER TUDO! – Erínio gritou.
- Mas eu TENHO tudo. – Aine sorriu e esticou a mão direita para Sunny que a pegou.
- Sunny! Nem pense nisso! – Alart tentou correr para ela, mas Sunny desviou.
No momento de distração Erínio lançou outra rajada de ar tóxico, acertando o grupo que rolou para longe, quase caindo do palco.
- DESÇAM! – Luc gritou e todos seguiram sua ordem, descendo pela lateral até o solo onde o caos estava acontecendo. Bem, quase todos.
Sunny e Aine ficaram para trás, a mão esquerda de Aine segurando o pescoço de Sunny contra sua vontade e apertado a ponto dos olhos de Sunny já estarem esbugalhados.
Aine nem pensou em correr, tendo uma ideia mais eficiente e difícil. Sacando a espada afiada e sua cintura, ela gritou de pura adrenalina enquanto erguia a lâmina e descia sem pena sobre o meio de seu antebraço esquerdo.
- AAAAAAAAAAAAAAINE! – Lich se virou ao ouvir o grito dela e viu quando o braço de sua esposa jorrou sangue no rosto de sua mãe, se separando do corpo da moça.
- Merda... – Luc e Alart murmuraram também vendo a cena.
A mão esquerda de Aine ainda segurava o pescoço de Sunny, mas foi facilmente solto agora pelas duas mulheres.
- Sua estúpida! Eu ainda sou seu dono! – Erínio berrou e se voltou para Alart. – Você quer mesmo que sua mulherzinha morra? Vamos, podemos evitar isso.
- Vá se danar! – Alart gritou. – Sunny... Eu te amo.
Erínio fez um gesto com a mão e Sunny caiu de joelhos, com as mãos na cabeça, gritando de dor. – Achou mesmo que eu não ia dar um jeito nessa fraca? – Erínio disse.
Scylla viu aquilo e o sinal de Aine, então abriu um portal e saiu em cima do palco justamente quando Sunny tirava o colar relicário e tirava uma poção em forma de comprimido roxo. Engolindo, ela sentiu o relaxamento parcial, suficiente para evitar que seu cérebro explodisse literalmente.
- Essa coisinha não vai evitar sua morte, sua idiota. – Erínio rosnou. – O veneno que uso em gentinha como você foi potencializado pelo chazinho daquela Maia burrinha.
Maia... Scylla sentiu mais uma facada de decepção.
- Eu sei que vou morrer a meses, seu escroto narcisista! – Sunny riu.
Erínio, percebendo onde aquilo ia dar, voou até Sunny com suas garras à mostra, pingando um veneno negro gosmento.
- SAI DE PERTO DA MINHA MULHER! – Alart correu, ficando de frente para Sunny, entre ela e o ataque fatal.
- PAAAAAAAAAAAAAAAI! – Os irmãos gritaram e correram para cima.
Com olhos arregalados, em choque, encarando os olhos dele, Sunny viu o corpo do marido ser atravessado por garras e metade da mão de Erínio. O sangue escorreu pelo ferimento e pelos lábios dele. Alart sorriu levemente e murmurou: - Me perdoe pelo que aconteceu na mansão.
Sunny sempre soube que o abuso, mesmo ela não o considerando assim, perturbava a mente de Alart a vida toda. – Eu te amo, seu bobo. Eu... Alart... – Sunny chorou quando Erínio puxou a mão para trás, tirando do corpo de Alart que caiu no colo dela.
Lich e Luc atacaram Erínio em perfeita sincronia, intercalando seus ataques para dar tempo às três mulheres. Sunny olhou para o caos na praça onde a luta parecia não ter fim, olhou para o braço de Aine cortado no chão a meio metro, olhou para seus filhos lutando com aquela coisa... Scylla entregou uma joia em forma de coração vermelho na mão de Aine.
Sunny beijou os lábios sangrentos de Alart e sussurrou: - Descanse, meu protetor.
Ela se levantou e Aine estendeu a mão decididamente para ela, com o cristal em forma de coração na palma. Sunny sorriu, se aproximou, sussurrou no ouvido dela e pegou a mão de Aine, fechando o cristal nas mãos delas. Sem soltar suas mãos, Aine se posicionou atrás de Sunny, a mão com o cristal à frente de Sunny sobre o coração dela. Sunny sentiu o poder que emanava daquela joia, forte, quente, intenso, tão poderoso que nublava o raciocínio.
Atrás das duas, Scylla sussurrou um encantamento que não era pronunciado a séculos, cujo único trecho conhecido era tratado apenas como uma cantiga de ninar, seu verdadeiro significado perdido no tempo. Até agora.
Erínio ouviu aquilo e foi em direção às mulheres, mas os irmãos o atacaram para distraí-lo. Poucos segundo foram o suficiente. Sunny não lutou contra aquele poder, sentindo o fogo varrendo seu raciocínio, sua personalidade, forte demais para ser retido por um simples mortal. A joia pulsou em suas mãos, esquentou a ponto de queimar a mão de cada uma, deixando uma marca de queimadura no perfeito formato dela. Aine sentiu o poder como uma versão muito maior e incontrolável do poder Tiger, mas também como algo obscuro, furioso, vingativo. Aine e Sunny gritaram quando o poder foi demais, suas gargantas chegando a ferir com o grito. Ao seu redor uma energia densa, negra, rodopiante, violenta se formou, mais escura do que a coisa mais escura que qualquer mortal já viu. Até que, a joia mudou de forma, se esticando, crescendo, se transformando em uma energia que rodopiava e pulsava, emitindo feixes de luz branca, dourada e vermelha, a única coisa que escapava daquela energia negra poderosa. Naquele momento, tudo ficou assustadoramente silencioso, como se nem o som pudesse escapar do poder
daquela energia negra. Erínio tentou voar para longe. Aine agora não sabia o que era
“aine”, não sabia separar o que era vida e morte, era como se sua mente estivesse em tudo e em nada ao mesmo tempo. Sunny caiu no chão enquanto Aine andou dois passos para frente em direção a Erínio. Luc e Lich já tinha se jogado no chão a muito tempo, como Scylla tinha explicado antes. Scylla até tentou abrir um portal e tirar os irmãos e Sunny dali, mas seu poder parecia fraco diante daquela força divina.
De trás de Aine uma forma luminosa, transparente e etérea se elevou. Kallisti ficou de pé enquanto Aine emanava a energia pulsante. No solo felinos e até as harpias se jogaram no chão de joelhos.
- Sai daqui! Eu venci! – Erínio gritou para Kallisti em desespero.
- Você não é ninguém para vencer nada. Meu mundo não será destruído por você. Este não. – Kallisti disse e Aine copiava todos os movimentos labiais, todos os gestos dela, como se tivessem ligadas.... E estavam mesmo.
Kallisti ergueu a mão direita, com Aine fazendo o mesmo. A energia pulsante e luminosa atingiu Erínio que começava a voar para longe aos berros.
- NÃO! DE NOVO NÃO! EU NÃO VOU! VOCÊ NÃO PODE! VOU MATAR TODOS! TUDO!
EU JURO!
A energia se fechou ao redor dele como espirais que logo assumiram a forma de uma corrente grossa gigante, se fechando de tal forma ao seu redor que nenhum centímetro de seu corpo podia ser visto. Kallisti fez um gesto estranho, Aine fazendo o mesmo, e a energia negra sugou a forma acorrentada de Erínio para dentro dela. Aine caiu no chão e as harpias fugiram gritando, muitas sendo mortas antes de se afastar, mas muitas também fugindo.
Kallisti olhou ao redor com uma expressão triste ao ver tantas mortes, as plantas e árvores mortas pelo veneno de Erínio, prevendo doenças e má formações que viriam no futuro, sentindo o efeito desse veneno no mundo todo agora. Seu olhar caiu sobre Alart e Sunny que tinha caído perto dele.
- Scylla. – Kallisti chamou.
- Sim, minha Mãe Suprema. – Scylla quase chorou com uma emoção eufórica.
- Não deixe o conhecimento se perder de novo nem chegar em mãos erradas. – Kallisti disse e tocou a testa de Aine. Kallisti se elevou, seu corpo se desintegrou em forma de luz e pontinhos brilhantes. A névoa de Erínio desapareceu quando essa luz a tocou, o céu azul e limpo brilhou apareceu, os anéis Anui cortando o céu perto do horizonte, o ar parecendo mais puro e leve.
Scylla se aproximou de Sunny e tocou seu pescoço, em uma vã esperança.
Infelizmente, Sunny estava mesmo morta, porém com um semblante calmo e relaxado com Scylla nunca tinha visto. Os gêmeos se aproximaram dos pais, cada um segurando a cabeça de um deles no colo. Lich deixou a mãe com seu irmão e andou devagar, temendo o que
veria. Aine estava ferida, partes de sua roupa tinham sido rasgadas e exibiam antigas queimaduras ácidas cicatrizadas. Erínio com certeza vinha perturbando ela a semanas... A mão dela estava fechada, segurando firme o cristal, o coração da estátua de Kallisti no templo. O braço cortado tinha sido cauterizado pelo fogo, parando a hemorragia. Mas ela parecia tão fraca, tão sem vida... Lich ajoelhou ao lado dela e rezou por um milagre enquanto tocava em seu pescoço.
~o ⭐ o~
Quatro meses depois, Aine acordou. Por dias ela não conseguiu falar, sua garganta ainda cicatrizando. Sua única mão tinha uma marca de coração e às vezes ela podia jurar que ainda sentia aquele poder inenarrável passar rapidamente por suas veias. Ela olhou com um misto de carinho e tristeza porque, como Scylla avisara antes, o uso daquele poder, mesmo que por pouco tempo era letal ou, na melhor das hipóteses, mataria as joias da vida como eram conhecidos os órgãos reprodutivos. Ou seja, Aine nunca poderia ter filhos.
Raylla corria pelo palácio sem roupa, fugindo de outro banho, deixando as servas loucas correndo atrás da menina com tolhas e sabão nas mãos. Nira entrou e agarrou Raylla pela cintura, a levantando do chão.
- Ray, o que conversamos? – Nira falou.
- EU VOU MORRÊ! KÉREM ME MATÁ!
- Raylla. – Aine chamou, rouca, e Nira levou a menina até ela. – Você quer matar seu pai?
- NÃUM! – Raylla arregalou os olhos.
- Então já pro banho que você está com cheiro de porquinha no lixo. – Aine fez uma careta exagerada.
- Mamããããim! – Raylla revirou os olhos, rindo do exagero de Aine.
- Banho. – Lich surgiu de uma sombra.
- AAAAH! – Todas, exceto Aine, gritaram de susto.
- CÓÓÓRRI, NÍA! – Raylla gritou, ainda no colo de Nira. – PAPAI TROUXE BOLO!
Nira saiu com Raylla e servas visivelmente alividas. – Como você sabe disso? – Nira perguntou.
- Vi na cabéssa, né Nía. – Raylla disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, já sinalizando sem querer um possível dom mágico.
- Meu amor. – Lich beijou Aine.
Ela correspondeu, mas ainda vivia se sentindo culpada, apesar de já terem conversado sobre o assunto várias vezes. Erínio precisava acreditar na lealdade dela ou não apareceria na festa e mataria Sunny antes que o poder dela e de Aine ativassem a joia. Infelizmente, ele sabia do ritual para contatar Kallisti e encontrar a magia e sabia que havia outro possível
herdeiro de um leonino da família real. Com Erínio chegando perto da verdade e de Raylla, Aine teve que pensar rápido e fazer a escolha mais difícil de sua vida.
Lich a amava demais e tinham perdido demais para não entender ela.
- Pare. – Lich disse, puxando ela para sentar em seu colo.
- Com o que?
- Está se culpando de novo. – Ele disse o que o rosto dela estampava. – Aine, você é uma Tiger e um Tiger é forjado para a guerra, faz de tudo para vencer uma. Você fez o que precisou, sozinha, e vencemos por isso. Não lamente pelo sucesso.
- Eu já disse que te amo?
- Não nos últimos minutos.
~o ⭐ o~
Horas depois, Raylla brincava no tapete em frente à lareira, enquanto Luc, Gaia, Lich, Aine e Scylla estavam sentados nos sofás ao redor do tapete, uma mesinha baixa na frente deles cheia de bebidas. Nira entrou trazendo mais brinquedos, sempre mimando Raylla que pulou no colo dela, só não derrubando a mulher musculosa e guerreira por sua vida de treinamentos e o hábito que isso já tinha se tornado.
- E tinha uma casa bonita. Meu pai falava tanta bobagem como nunca vi. – Aine contou mais detalhes de sua experiência no coma. – Foi divertido.
- Fico feliz que tenha escolhido voltar. – Lich disse, com Aine no colo dele.
- Que irmão mais egoísta eu tenho. – Luc brincou, alisando o cabelo de Gaia que só não estava em seu colo, mas sim recostada ao lado dele, por causa da enorme barriga, perto de dar a luz.
- Eu não sei se Kallisti me daria esse presente de ir encontrar minha mulher nesse mundo também. Então sim, quero ela aqui do meu lado. – Lich disse.
- Nesse caso, em cima, ne amor. – Aine brincou.
- Embaixo também é bom. – Lich não resistiu.
- Meu irmão cuzão tem bom humor, quem diria. – Luc riu e recebeu um beliscão na coxa dado por sua esposa.
- Você tem que parar com isso. – Lich encarou o irmão com raiva.
- Cuzão não é xingamento. É só uma descrição do tamanho de um...
- LUC! – Lich olhou pra Raylla, rezando para ela nã ter ouvido. A menina parecia surda às conversas dos adultos. Até sair um palavrão. Aí parecia que o radar auditivo dela era atraído automaticamente.
- Não posso falar nada nessa porra também. – Luc disse, emburrado, sem perceber que tinha xingado de novo.
Lich jogou uma uva na cara do irmão.
- Ai! – Luc disse. – Isso é uma declaração de guerra! O Rei Tiger atacou o Rei leonino.
- Só porque o Rei leonino é um idiota de boca suja. – Lich disse de cara amarrada.
- Se seus filhos puxarem ao pai e ao tio... Já imaginou? – Scylla brincou.
- Mãe, nem brinque com uma coisa dessas. – Gaia fingiu espanto.
- Que Kallisti nos livre de ter outro Luc e Lich aqui. O mundo não vai aguentar esse caos não. – Aine entrou na brincadeira.
- Eu sou quieto. – Lich se defendeu.
- Só é doido e assustador. – Aine disse com um olhar bem safadinho. – Uma delícia, por sinal.
- Eu também sou quieto, ne amor? – Luc perguntou.
- Quieto como uma bomba de fúria e de inúmeros xingamentos gratuitos por segundo.
– Gaia disse.
- Puta merda... – A voz de Nira atraiu os olhares de todos. Nira nunca xingava, muito menos perto de Raylla. Todos os adultos se levantaram em choque.
- Merda.... – Gaia tampou a boca.
- Caralho! – Luc quase gritou.
Pela primeira vez, Lich não reclamou com o irmão, focado na cena à frente.
- Hihihihhi... – Raylla se divertia enquanto chamas se moviam ao seu redor em formas bípedes flutando, parecendo dançar em volta dela como seres vivos obedecendo, agradando ela. Algumas até a tocavam sem gerar nenhuma queimadura, nada. – Olia, papái. Amigus.
- Eu...eu....to....eu...euto... – Lich estava chocado demais para falar. Um poder desse sobre o fogo, em tão pouca idade, era impossível. – eu....estou...eustou...
- Vendo. – Luc completou, hipnotizado com a imagem à frente.
- Vendo. Estou vendo. – Lich disse.
- É lindo... – Aine murmurou, encantada.
- Lindinha, como você faz isso? – Scylla perguntou, encantada, mas seu lado grã-sacerdotisa falando mais alto.
- Eu pedí, claru. – Raylla respondeu como se fosse simples e óbvio. – Eu vou chamá você de... – Raylla conversou com uma chama que parou sobre seu focinho e parecia estar acenando para ela.
Lich sentiu o peito inflar de orgulho e carinho por aquela garotinha que ele adorava. E, surpreendemente para todo mundo ali, algo que ninguém acreditaria aconteceu. Lich sorriu sem nem perceber. Os outros na sala não sabiam para o que olhar, a cena insana da menina encantadora de chamas ou a cena inacreditável de Lich sorrindo como um pai bobo e orgulhoso. Até que Raylla escolheu o nome para aquela chama em seu nariz.
- ....Vou chamá você de....Calálio. – Raylla disse e o sorriso de Lich foi substituído por uma carranca irritada. – Em menagem ao tío Lúki, você vai si chama Calálio. Você gostou, Calálio? – Raylla perguntou para a chama.
Lich se virou para o irmão com um olhar assassino. Luc já deu um passo para trás e planejou mentalmente sua rota de fuga. – Corre. – Lich disse simplesmente e se transformou em uma névoa.
Luc correu gargalhando, por um instante sentindo-se como quando ele e Les brincavam e se atazanavam nessas corridas. – UUUI, CORRE QUE O SINISTRO TA PUTO!!!
AHAHAHAHAHAHA!
- Idiota! Vou te ensinar a não xingar! – A voz de Lich soou mais divertida do que brava, mas ele morreria negando isso.
- Críanças. – Raylla disse, com as mãozinhas na cintura, balançando a cabeça negativamente, enquanto via os irmãos indo para fora em sua perseguição.
As mulheres na sala riram. Tanto as mortais visíveis e a imortal invisível na sala riram.
~o ⭐ o~
Divirtam-se, sorriam e aproveitem seus momentos de paz. Assim os de guerra valerão a pena serem lutados.
Premiando a Lealdade e a generosidade
Às vezes, só às vezes, é bom quebrar algumas regras naturais para recompensar a lealdade de alguém que abriu mão do que mais desejava pelo que é certo.
~o ⭐ o~
Em algum lugar, à margem do tempo, em um jardim gigantesco indo até onde os olhos alcançavam e além, havia uma cabana feita no tronco de uma árvore larga e muito alta. As paredes pintadas de branco, uma varanda cercada por uma cerca baixa repleta de trepadeiras onde flores amarelas se abriam e fechavam como o pulsar de um coração. A porta vermelha com guirlanda de ervas se abriu e um som de risinhos emanou das ervas na guirlanda, tão vivas quanto tudo o mais ali.
Aine não sabia como tinha ido parar ali, nem como suas roupas tinham sido substituídas por aquele verdito leve de tons amarelos e esverdeados, as cores parecendo mudar o tempo todo como batidas cardíacas. Aine só se lembrava da batalha, seu corpo perdendo forças e caindo até perder a consciência. Então ela acordou em um jardim gigante de flores altas, coloridas, as luas se movendo entre os anéis Anuin de formas impossíveis. Ao longe, a fumaça branca emanava de uma árvore gigante e, sem saber o porquê, ela caminhou até lá, só então percebendo que estava descalça.
Agora, com uma mão no corrimão, prestes a subir o primeiro degrau, ela parou quando a porta da cabana abriu. Um Tiger jovem e sorridente, muito bonito, saiu limpando as mãos em um pano que imediatamente sumiu. Aine não precisava que ninguém lhe dissesse quem ele era. Ela tinha visto imagens desse felino em quadros, imagens mágicas, nas mensagens que Scylla mostrava em sua mente, em seus sonhos...
- Pai... – Aine disse sem fôlego.
- Uau! Eu sabia que você era linda, mas de perto é estonteante. – Done sorriu. – Não vai entrar e dar um abraço no seu pai?
Ele esticou os braços e Aine correu escada acima, se jogando contra ele o abraçando apertado enquanto lágrimas de um choro convulsivo escapavam de seus olhos sem que ela tivesse controle. Done a abraçou forte, lágrimas silenciosas escorrendo de seus olhos.
~o ⭐ o~
- Porque ninguém me dá notícias? – Lich estava tão nervoso andando de um lado para o outro que, no meio dos passos, ele se transformava em uma névoa negra e se materializava alguns passos à frente, mal percebendo isso.
- Scylla não pode parar o trabalho para vir te dar notícias. – Luc comentou, preocupado com a demora que já se estendia por horas. As chances de Aine eram míninas e
ele já se preparava para consolar o irmão pela morte dela. Gaia também tinha passado por um procedimento urgente ao passar mal e logo as sacerdotisas descobriram que ela estava grávida e havia sofrido um aborto por causa da batalha com Erínio e todo aquele veneno no ar. Gaia depois que acordou revelou que desconfiava disso a alguns dias, mas estava com medo de confirmar. A dor dela ao descobrir que tinha perdido o filho que nem tinha desenvolvido seu gênero sexual ainda, foi ainda pior do que a perda do filho em si para Luc.
Tantas mortes em um dia.... E logo teremos mais uma... Raylla... Como vamos contar para aquela pequena fornalha? Luc se sentia de repente quarenta anos mais velho e emocionalmente cansado.
Depois de mais algumas horas, Scylla, visivelmente esgotada pois não parara para descansar depois da batalha que acontecera a 28 horas. Primeiro enviando os mortos e feridos para os locais pré-organizados por ela e Aine para atende-los, depois enviando Gaia por um portal com urgência para ser atendida, depois indo liderar a equipe de cura de Aine que estava praticamente morta, tendo ficado sem sinais vivais 18 vezes e sendo reanimada por Scylla com massagens cardíacas todas as vzes. Luc admirou ainda mais a força da felina que, mesmo esgotada, se mantinha em pé, altiva, com as mãos trêmulas apoiadas na bengala à sua frente.
- Fala! – Lich foi até ela quase correndo. – Ela vai ficar bem, não é? Eu quero vê-la.
- Calma, irmão. – Luc tentou controlar Lich que parecia prestes a explodir de ansiedade, os olhos vermelhos de chorar escondido.
- Lich, eu lamento. – Scylla começou e controlou um bocejo, sentindo o esgotamento de sua magia a derrubando. – Ela não reagiu bem e seus órgãos internos estão muito enfraquecidos. Sua magia também está praticamente toda drenada. Coloquei ela em coma em um cristal de suspensão. Mas não podemos fazer mais nada. Apenas esperar que o corpo dela se recupere.
- ESPERAR?! – Lich só não avançou na garganta dela pelos anos de respeito, mas a vontade era enorme. – VOCÊ TEM QUE FAZER ALGO!
- Lich... – Luc disse e pegou uma bebida para Scylla que parecia a beira de um desmaio.
- Lich, nós fizemos tudo que era felinamente possível. Já é um milagre Aine estar viva e você sabe disso. – Scylla disse, mais dura do que pretendia. Então, vendo o desespero dele, ela acrescentou mais suavemente. – Olha eu sei que é difícil aceitar, mas não temos controle sobre a vida e a morte. Use sua magia para tentar manter a alma dela neste mundo e converse com ela. Mas...preciso ser sincera. Não tenha esperanças. As chances são quase nulas.
- EU NÃO VOU PERDER MINHA MULHER! – Lich chutou uma mesa de madeira pesada com tanta raiva que a mesa voou longe, bateu contra a parede e se espatifou. No fundo ele sabia que tudo que ela e seu irmão disseram era verdade, mas ele não estava pronto para
se despedir dela. Lich saiu do palácio Tiger e correu pela floresta, gritando, urrando por horas.
- Ele vai voltar. – Scylla se jogou na poltrona e aceitou a bebida oferecida por Luc.
- Nunca vi meu irmão tão desnorteado. Mas entendo. Perdemos tantas pessoas... –
Luc comentou.
- É compreensível. Todos estamos esgotados em todos os sentidos.
- A destruição da natureza é...triste.. – Luc olhou pela janela onde via-se árvores secas, mortas pelo veneno de Erínio. – E aquela coisa só ficou no ar por alguns minutos.
- Sim. – Scylla olhou para fora, triste com a visão. Até as pedras estavam esfarelando sozinhas, sem ninguém nem tocar, tamanho era o envenenamento nas células de...bem, tudo. – Os magos das Duas Coroas que estão encarregados de analisar a destruição já estão trabalhando. A magia dos necromagos será essencial para dar forças de renascimento às células. Mas vamos precisar de alguém muito poderoso com a magia de fogo Tiger para restaurar a vida e a beleza da natureza.
- Alguém mais forte do que Aine. – Luc comentou. Não era segredo que Aine era poderosa, mas não era a mais forte das detentoras do poder Tiger.
- Mais forte do que Carya. – Scylla esclareceu.
Luc arregalou os olhos, chocado e temeroso. Carya era uma das mais poderosas detentoras da magia Tiger da história, Tigrésius era outro. Se precisava ser mais forte do que ela... – É tão grave assim?
- Sim. Por enquanto só podemos remediar a situação o melhor possível, parando o avanço da destruição. Mas curar e trazer tudo de volta como era? Só podemos rezar para Kallisti e torcer para que algum futuro rei ou rainha Tiger seja tão poderoso assim.
Luc se arrepiou todo. – Que Kallisti nos proteja.
~o ⭐ o~
Na cabana os dias passavam. Bem, pelo menos Aine achava que eram dias. Não dava para saber porque o sol nem sempre se punha no horizonte, às vezes dançando horizontalmente onde devia se por até chegar ao leste e voltar a se erguer, outras vezes anoitecia, mas era rápido ou muito longo.... O tempo parecia insano, sem rotina, e ela nem tentava contar. Não importava.
Ela e Done sentavam por horas dentro da cabana conversando, passeavam de braços dados pelo jardim, sussurravam palavras aleatórias para as flores na cerca ou piadinhas bobas para as ervas da guirlanda que riam de tudo. Agora ela e o pai estavam deitados no chão, entre as flores altas, olhando distraidamente pa o céu, lado a lado.
- Pena você não gostar de caçar. – Aine comentou. – Mas eu gosto mais de nadar.
- Eu sei. Vi você nadar inúmeras vezes. – Done comentou, sorrindo com a lembrança.
- Você viu? – Aine perguntou.
Aine, amor...se esforça....por favor... O desespero naquela voz inconfundível ecoou parecendo vir de todos os lados, embora não tivesse mais ninguém.
- Lich? – Aine sentou, de repente se lembrando de seu marido. Não que ela não tivesse lembrado antes, mas era uma memória tão distante...
Done suspirou. Ele vinha se perguntando quanto tempo mais demoraria para isso acontecer. O egoísmo de querer manter sua princesinha ao seu lado, finalmente tendo aquilo que sempre desejou nesse tempo ali, batalhava dentro dele com o desejo de ver sua filha viver com a família por anos e anos.
- Vamos ver os pássaros de fogo descendo das luas? – Done se levantou e estendeu a mão para ela.
Aine sorriu e ele adorava ver como o sorriso dela era idêntico ao dele. – Vamos. Eles nascem nas luas?
- Não. Na estrela solar. Depois descem para viver nas luas. – Done comentou e, de braços dados, eles flutuaram no ar, parando a metros do chão. Seus corpos voaram para longe, como se soprados pelo vento, tudo ao redor se distorcendo pela velocidade inominável. Quando pararam estavam flutuando a cerca de 20 metros acima de um lago de água alaranjada, cristalina, com cristais vivos nadando...ou caminhando...dentro da água. O
perfume e as cores desses cristais e da água imediatamente fizeram Aine se lembrar das Fontes Termais Sagradas em Likastía.
- São interligados. – Done esclareceu, entendendo o pensamento dela.
- Uau! – Ela exclamou.
- Olhe. – Done apontou para o céu onde uma nuvem laranja, amarela e vermalha saía de cada lua, descendo em direção ao mundo. Quanto mais se aproximava, mais a nuvem se mostrava ser um monte de pássaros de tamanhos diversos, feitos de fogo. Quando parecia que eles iam se chocar com as nuvens douradas no céu, eles voaram horizontalmente, em um bando enorme, passando sobre suas cabeças e seguindo seu caminho até sumir no horizonte onde o sol se aproximava.
- Foi....incrível. – Aine murmurou. – Saber do mito é uma coisa, mas ver é... – Ela parou, sem palavras.
- Eu sei. Já vi incontáveis vezes e sempre é uma experiência mágica. Como tudo aqui é.
– Done disse, querendo manter ela ao seu lado.
- A paz aqui é fora do comum. Ter você aqui é ainda mais perfeito. Eu sempre...senti sua falta... – Aine disse, meio sem graça por admitir em voz alta.
Done se virou para ela, segurou seu rosto entre as mãos e disse emocionado. – Eu sei, princesinha. Eu também senti a sua falta. Não sabe como lamentei cada momento que você
passou sem mim. Eu queria te dar tantos conselhos, aprender com você, ser seu amigo, rir com você, te colocar de castigo quando você fizesse algo errado, brincar com você...
- Pai...
- E ela óuve a genti? – A vozinha de Raylla veio de todos os lados como um sussurro no vento.
- Aine... Eu te amo, filha. Muito. Me perdoe por não ter morrido antes de termos qualquer momento juntos. – Done tentou manter o foco dela ali, com ele. Ele não queria perder ela de novo.
- Não foi sua culpa, pai. Mas foi tão difícil...
- Ninguém sabe, mas não custa tentar, não é? E Scylla recomendou. – A voz de Lich soou como a de Raylla tinha feito antes.
Aine fechou os olhos e deixou que o vento levasse ela e seu pai de volta para a cabana.
Os dois colocaram os pés no chão e correram em uma brincadeira de pega-pega, rindo, aproveitando a companhia um do outro como sempre faziam.
- O que é “récomenou”? – A vozinha de Raylla soou de novo, mas Aine ignorou.
Done parou, fez uma reverência e estendeu a mão. Aine pegou a mão dele e ambos começaram a dançar como eles queriam ter feito em todos os bailes que ela foi na vida e, principalmente, no casamento de Aine.
- Eu pensei em cada detalhe da festa. Acho que puxei minha mãe nisso. – Done sorriu.
- E como seria? Nunca fui muito adepta de festas chiques. – Aine riu.
- Um baile externo, como os dos leoninos, em uma praça gigantesca, toda decorada em dourado e branco, você linda como sua mãe no casamento dela com a minha, aquele rapaz usando as vestes negras tradicionais da magia dele... Aliás, eu sempre preferi você com Lesath. Felinos risonhos são os melhores. – Done sorriu, inflando o peito. – A festa duraria dias. Quando o baile externo acabasse, teríamos mais um banquete dentro do palácio onde todos os nobres deviam mostrar o quanto te adoram, depois outro baile interno...
- Por Kallisti! – Aine riu. – Desse jeito quando eu ia aproveitar meu marido?
Done riu e a rodopiou na dança. – Não dá para negar de quem você é filha, minha pequena de mente suja.
Os dois riram. – Pai, você não gosta do Lich?
- Claro que gosto. Ele te ama, te adora. Qualquer um que tenha bom gosto desse jeito é uma boa pessoa.
- Pai... – Aine riu.
- Sério. Gosto dele. – Done sentiu uma pontada de culpa.
- Mamãe Aine... O papai nãum dormiu de novo. – A voz de Raylla soou. Aine não sabia, mas a menina estava sozinha com ela, alisando o cristal na altura de seu cabelo como se pudesse acaricia-lo. – Ele tá feio.
Aine ignorou a voz como vinha fazendo, mas com o final ela não resistiu a um sorriso.
- Aine... – A voz de Done chamou, mas estava em segundo plano na atenção dela e nem mesmo percebeu que ele tinha parado a dança, ainda a segurando nos braços.
- Se papai nãum dormí, ele vai ficar mais feio e dodói. – A vozinha de Raylla soou triste e preocupada. – Tío Luki disse “calálio” pro papai que não quer dormir. Aí eu coloquei a poçãum de nanina da tia Scylla na bebida dele agora a pouco.
- Raylla! – Aine exclamou, de olhos fechados, com um sorriso nos lábios.
- Eu núm rôbei, mamãe. Eu pedi emprestado, mas a tia Scylla num tava lá e num disse que nãum....Então podia pegar ne... Ela num disse que nãum.... Tomára que ele dúrma. Mas a sinhóra tem que acordá também né mamãe! Eu estou mantendo o papái bunitinho pra senhora, mas não pode demorá!
Uma lágrima escorreu pelo olho fechado de Aine. Ela não queria voltar.
- Sinto sua falta, mamãe...
Aine não sabia, para ela se passaram segundos, mas em Likastía passaram horas.
Raylla ficou ao lado do cristal onde Aine estava e acabou dormindo.
Done secou a lágrima do rosto dela com um dedo e Aine abriu os olhos.
- Você tem que ir, filha. – Done disse as palavras mais difíceis que já pronunciou, uma lágrima escorrendo por seu olho esquerdo.
- Pai...eu não quero ir. Mas....eu quero ir... Isso nem faz sentido... – Aine chorou.
- Eu sei, amor. Mas Kallisti deu o que ambos mais desejávamos, quebrando uma das leis mais fortes da natureza... Também te deu uma escolha. Você sabe que não pode ficar aqui sem que seu corpo acabe morrendo em breve...
- Eu não quero ir, pai.
- Aine, minha garotinha impressionante, você ainda pode viver por décadas com sua família.. – Done queria segurar ela com todas as forças para ela não ir, mas também sabia que Kallisti lhe dera quase 100 anos de vida se ela quisesse voltar. Ele não queria tirar ela de sua família, de sua filha.
- Raylla, o que está fazendo aqui? – A voz de Lich soou extremamente preocupada.
Não era para menos. Ele dormira sem perceber enquanto brincava de chazinho com Raylla e quando acordou no quarto dela, a menina tinha sumido. O pânico de perder mais alguém foi tão grande que ele nem pensou em perguntar nada a ninguém, apenas correu pelos corredores, desesperado até pensar em olhar no quarto de cura onde Aine estava. Quase gritando ele acordara Raylla que dormia apoiada no cristal, com a mãozinha sobre o cristal na direção da única mão de Aine.
- Papái...? – Raylla esfregou os olhinhos sonolenta.
Lich se aproximou do cristal e olhou para o rosto de Aine, uma dor atingindo sem peito como sempre acontecia ao vê-la. – Aine... – Cansado e já sem esperanças, Lich não conseguiu evitar o desespero que se abateu sobre ele. Chorando profusamente enquanto se irritava por não conseguir se controlar, ele caiu de joelhos do lado do cristal.
- Papai...num chora nãum... – Raylla pulou da cadeira que a mantinha um metro acima do chão para alcançar o topo do cristal. Ela correu até Lich e o abraçou de lado, sem saber como ajudar ele.
- Aine...eu não...não aguento... – Lich nem conseguia falar, chorando alto.
Algumas sacerdotisas que estavam sempre avaliando o cristal de Aine viram a cena e chamaram Scylla para dar algum calmante para ele que estava beirando um colapso nervoso. Quando Scylla chegou na porta e captou o pensamento dele, ela entendeu o desespero. Ele tinha tomado a decisão mais difícil que um familiar de alguém à beira da morte pode tomar. Então ela decidiu deixar ele extravasar e só depois medicá-lo, ficando parada na porta, seu coração apertado pela cena e pelo estado de Aine que só piorava.
- Calma, papái. Ráilla tá aqui pra ajuda seu coraçãum, papai. – Raylla chorava em pânico por que não conseguia acalmar Lich.
- Eu não quero... – Aine chorou e colocou as mãos nos ouvidos tentando não ouvir as vozes que ecoavam no ar... Não. Não no ar. Em sua alma. Ela não podia evitar ouvir...
- Querida... Você pode ficar comigo. Eu adoraria isso. Mas eu acho que no fundo você quer estar com eles. Criar Raylla com pai e mãe... – Done acertou o ponto que mais doía. -
Não quer que ela sofra como você sofreu sem um dos pais não é?
- Aine...Meu amor...Minha vida... – Lich se forçou a se acalmar um pouco e falar o que doía, mas ele sentia que era o certo. – Não quero mais te ver presa a um corpo... Você sempre foi tão cheia de vida e agora... Se você tiver que ir... Vá em paz, amor.
- Lich... – Aine sabia o quanto custava para Lich deixar ela partir. Ela desejou voltar, mas perder a chance de conviver mais tempo com o pai era doloroso. – Pai.. Não quero...
Logo agora que finalmente posso ter você comigo...
- Você não entendeu, minha menina impressionante? – Done sorriu aquele sorriso sedutor que Aine herdara. – Eu sempre estive com você. Sempre acompanhei sua vida daqui. Cada conquista, cada aprendizado, cada queda... Vi você sofrer à noite sozinha pela minha ausência e sofri junto. A única coisa que te acalmava eram as visitas secretas de Lich que nem você sabia. E eu agradeci à esse rapaz todas as vezes por isso. Eu tomei ele como meu protegido em seus feitiços necromantes, até guiei ele em muitos, embora ele não soubesse quem eu era. E tudo porque eu sou grato a ele por te fazer bem. Eu estive em seu casamento, eu vi você ser forte em momentos que eu não teria sido, vi sua dor, vi seus sorrisos, eu sempre estive com você aqui. – Done colocou um dedo sobre o coração dela.
Aine abraçou o pai uma última vez. – Eu te amo, pai.
- Eu te amo mais, menina impressionante. – Ele beijou a testa dela e olhou para trás de seu corpo onde Kallisti tinha um sorriso doce e gentil no rosto, parada a meio metro de Aine.
Kallisti se aproximou e sussurrou no ouvido de Aine: - Hora de ir, menina de lindo sorriso.
Aine sentiu um calor reconfortante e uma luz cegante que a derrubou em uma espiral dourada.
~o ⭐ o~
Raylla estava no colo do pai que estava calado, mais do que o habitual, desde que acordara a cerca de uma hora, depois de dormir quase 12 horas com o calmante que Scylla lhe deu. Níra estava por perto, como sempre estava de Raylla, mas havia tentado em vão tirar a menina do colo de Lich para ela almoçar e ele descansar. Raylla estava sentada de lado no colo, com os braços firmes ao redor do pescoço dele, a cabeça apoiada em seu ombro.
Luc enviara uma mensagem para Lich, mas ele estava tão apático que Scylla foi quem atendeu o comunicador e estava explicando a situação e perguntando sobre Gaia, cuja gravidez já estava avançada. Lich ouvia a conversa sem prestar atenção, sentindo-se anestesiado, sem vontade de reagir a nada, sentindo seu coração batendo tão sem vontade que parecia estar parado, embora ele soubesse que isso era apenas emocional e não físico.
Sem motivo aparente, seu coração deu uma batida forte repentina quase dolorosa, fazendo ele arregalar os olhos. Outras batidas fortes vieram e ele se sentiu vivo, como não se sentia a quatro meses. Até sua visão pareceu clarear, as cores ficaram mais vivas... Lich deu um pulo do sofá, colocando Raylla no assento ao lado sem dar muita atenção.
- Papai? – Raylla perguntou confusa e Nira, sempre protetora, correu para a menina.
- O que foi? – Luc perguntou do comunicador, vendo apenas um vulto do irmão correndo e saindo da sala como se tivesse possuído.
- Lich? – Scylla se virou e perguntou enquanto o leonino saía.
- AINE! – Lich gritou apenas, não se importando em explicar nada.
Sua prioridade era chegar na ala onde ficava o quarto de cura. Ele ouviu passos correndo atrás dele, a voz de seu irmã falando qualquer coisa no comunicador. Chegando perto da sala ele trombou em uma sacerdotisa que caiu no chão e, diferente do seu jeito normal, ele nem ajudou ela a se levantar, Nira fazendo isso no lugar. A sacerdotisa contou rapidamente o motivo de sua pressa e Scylla, Nira e Raylla correram para a sala que Lich tinha entrado.
Lich parou por dois segundos na porta, sem voz, quando viu Aine sentada na poltrona ao lado do cristal. A mesma que ele, Gaia, Luc, Scylla, Nira e Raylla tinham ficado por horas falando com ela, pedindo à Kallisti para que Aine se salvasse. Aine estava envolta em um xale pois, apesar de ser meio-dia, seu corpo precisava de mais calor depois de sair da suspensão. Ela ergueu a cabeça e Lich correu para ela, caindo de joelhos à sua frente, abraçando a cintura dela e chorando de alívio. Aine acariciou os cabelos escuros dele e o levantou um pouco para depositar um beijo em seus lábios.
- ECA! – A voz de Raylla soou na porta, no colo de Nira, com Scylla ao lado e o visor do comunicador exibindo Luc e Gaia de olhos arregalados. – Que noxentu!
Aine não conseguia falar ainda, então apenas sorriu e sinalizou para Raylla ir até ela. A menina desceu do colo de Nira e correu para abraçar Aine e Lich ao mesmo tempo.
- Am...u...vo...eis... – Aine disse quase sem voz, muito rouca. – Uinto...
Assim, Aine percebeu que, apesar de precisar se despedir dos mortos, aqueles que nos amam em vida nunca deixarão de nos amar e sempre estarão vivos em nossas memórias e corações.
Sentir saudades é bom, significa que amamos e somos amados na vida. Mas viver preso à saudade não é viver.
~o ⭐ o~
Viva e aproveite os vivos ou sempre vai viver preso ao passado e lamentando o que não viveu quando e com quem podia.
Bônus da Autora
Arte de capa (1400 x 788)