Likastía 01 by Rubi Elhalyn - HTML preview

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Dúvidas, respostas e mais dúvidas

Eltar tinha sido enviado à uma aldeia pobre na região congelada do reino Tiger.

Tigrésius estava furioso porque a aldeia não estava pagando os pesados tributos e mandara o filho com um pequeno destacamento tocar o terror no lugar, saquear tudo que pudesse pra cumprir os valores do tributo e trazer mais escravos. O destacamento com 12 felinos, incluindo Eltar, seguia atrás dele com felinos de todas as idades, amarrados uns aos outros pelos pulsos em duas filas que eram puxadas pelos cavalos de dois tenentes. O caminho era muito longo. Pelo menos quatro dias de viagem. Os novos escravos, muitos feridos, caminhariam assim por todo o percurso, recebendo só um gole de água duas vezes ao dia e os restos dos alimentos dos soldados que eles jogavam para os novos escravos pegarem do chão. Sempre que algum pedaço era jogado, um osso meio mastigado, por exemplo, os felinos pulavam em cima e brigavam por aquilo, desesperados por alimento, se tornando a diversão dos militares e do príncipe.

Numa dessas vezes, após dois dias de viagem, os militares e o príncipe gargalhavam vendo os escravos pulando uns sobre os outros, se degladiando por um punhado de comida mastigada que um deles jogara no chão pedregoso. Um zumbido foi todo o aviso que tiveram antes que um dos tententes caísse de seu cavalo com um machado cravado no pescoço.

- ATAAAAQUE! – Eltar alertou, mas não ajudou em nada. Armas leoninas voaram das árvores atingindo um por um dos militares, ao mesmo tempo, sem chance de luta, sem mesmo perceber o que acontecia. Antes que os corpos caíssem dos cavalos, leoninos surgiram descendo das árvores que circundavam a estrada, com um grito de guerra insano e cortaram as cordas dos escravos.

- Fujam! – Rodan berrou pros escravos, assustados, temendo que os leoninos fossem devorá-los. O medo era tanto que eles se encolheram perto do cavalo de Eltar, pois o povo preferia enfrentar as crueldades do rei Tiger do que as coisas bizarras que diziam que os leoninos faziam. – AGORA, IDIOTAS! – Rodan gritou com aquela cara assustadora dele e o povo correu, alguns tropeçando no caminho, voltando em direção à sua distante aldeia.

- Você. Espere. – Lordok apareceu ninguém sabe de onde e segurou o mais velho que não corria muito, com um ferimento nas costas. – Pegue. Leve esses cavalos com você. Seu povo aproveitará melhor do que o meu.

O velho olhou pra ele boquiaberto, gritou pra alguns jovens que corriam mais atrás do grupo. Quando os jovens voltaram, o velho pediu que ajudassem com os cavalos, alguns ainda carregando mantimentos e objetos roubados, e correram sem olhar pra trás. Alguns

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soldados leoninos seguravam o cavalo de Eltar, enquanto outros mantinham ele preso, segurando em seus ombros, o colocando de joelhos no chão.

- Rei Lordok dos Leoninos. – Eltar disse, meio zombeteiro. – Mas a que devo a honra da sua visita no coração do reino Tiger?

- Não estou com humor pra suas gracinhas, rapaz. – Lordok disse. - Quero respostas e você vai me dar elas.

- Por bem, ou por mal. – Rodan acrescentou ameaçadoramente.

- Rodan, você parece bem. – Eltar disse, sorrindo. – Espero que a idade não esteja lhe causando...alucinações.

Um dos soldados que o segurava deu um soco em sua cabeça que o fez cuspir sangue.

Lordok levantou a mão, sinalizando para o soldado que já era o suficiente.

- Não teste minha paciência, menino. Eu não tenho muita neste momento. Pra começar, quero que me diga quem é o espião que ajudou Hunna a sair de Jubay. – Lordok perguntou de braços cruzados, Rodan parado com uma espada na mão ao lado do rei.

- Ela não te contou? – Eltar perguntou, sorrindo. – Mas que coisa, heim? Não sabemos em quem podemos confiar hoje em dia. – Ele disse, tentando semear um atrito entre o rei e Hunna, ao mesmo tempo olhando pra Rodan.

- Olhe pra mim, moleque! – Lordok rosnou. – Polpe essa língua venenosa pra quem acredite nela. Seja quem for esse maldito espião que aparentemente só você conhece, eu vou descobrir. Vamos à algo mais importante neste momento então, e não minta. Eu saberei se você mentir.

Até parece. Eltar pensou, ainda sorrindo mesmo com o sangue escorrendo de sua boca, manchando seus longos caninos de vermelho.

- O que aconteceu com meu afilhado na sua casa desgraçada? Porque ele está apático desde então? – Lordok perguntou e era visível o quanto aquilo o abalava porque Eltar nunca vira o rei leonino perder o autocontrole nem mesmo em batalha.

- Aquele imbecil... – Eltar foi interrompido por um soco que quebrou seu nariz.

- Cuidado, moleque! Muito cuidado como fala do meu afilhado! – Lordok tinha um olhar perigoso, sua juba eriçada de raiva.

Eltar balançou a cabeça pra aliviar a tontura. – Uau! Parece que meu pai acertou um nervo do rei leonino. A versão resumida, leonino, é que seu afilhadinho perdeu a namoradinha e o filhote dele. Meu pai matou ambos.

Lordok apertou tanto a mandíbula que ela estalou audivelmente. – Explique. Em detalhes. – Ele disse com dificuldade.

Eltar contou o que acontecera enquanto Rodan parecia feito de pedra ao lado do rei que tremia de raiva, seus pêlos eriçados, os olhos brilhando.

- E você ajudou... – Rodan disse. – Carya não vai apoiar você quando precisar.

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- Me polpe, Rodan. Leviatã pode ser burro, mas eu não sou. Sei que você e sua namoradinha abriram a boca e o rei merda aqui sabe do nosso acordo. Pra mim não muda em nada, desde que cumpram sua parte. – Eltar disse.

- E quem disse que ela vai cumprir depois que você causou a morte da cunhada e do sobrinho dela? – Lordok disse, trincando os dentes.

- Ela vai. Do contrário, posso muito bem alertar o papaizinho sobre o poder daquela...garota. Além do mais, eu tentei ajudar seu afilhado burro, mas ele não foi corajoso como um Tiger de verdade seria. – Eltar disse, cuspindo um pouco de sangue.

- Duvido. – Rodan disse.

- Eu precisei alertar meu pai sobre Nyela porque ele estava desconfiando do Leviatã.

Precisávamos de uma prova de lealdade que afastasse a suspeita. Eu avisei pra Hunna que ela precisava tirar o garoto de lá e rápido. Não podia correr o risco de dar mais poder ao rei Tiger. Mas ela não tirou. Alertei ao garoto pra ele não confiar nos escravos do palácio, mas ele disse algo sobre todos terem bondade no coração, ou uma dessas baboseiras. Avisei à ele enquanto ele estava preso que a mulher dele estava sofrendo e que ele precisava fugir, matar Tigrésius e levar a mulher embora. Ele me ouviu? Não! Ele ficou com medinho e não queria matar o papai que nunca deu a mínima pra ele. No dia seguinte levaram ele pro quarto, me aproximei pra sussurrar qualquer coisa enquanto colocava uma pequena adaga, que achei nas coisas da escrava, escondida na algema dele, uma última chance de pegá-la e matar Tigrésius. Carya nem mesmo precisaria usar a mágica dela pra matar o rei! Ele salvaria a si mesmo e à mulher que carregava o pivete dele. Mas, nããããõ. O garoto é bonzinho demais pra sujar as mãos de sangue. Deu no que deu. No fim, tudo que pude fazer pra não perder a aliança que fiz com vocês sabem quem, foi tirar todos os guardas do caminho pra não prenderem o garoto e mandar Lino seguí-lo e impedir que alguém na cidade o matasse. Se seu afilhado idiota não está morto agora é graças à mim e à Lino que o protegeu até ver Carya se aproximando pela estrada.

Lordok olhou pra ele fixamente, indeciso entre matar aquele garoto perigosamente astuto, ou libertá-lo porque ele ainda seria útil contra o rei Tiger. Por fim, ele disse: - Soltem esse saco de merda.

Os soldados soltaram ele e Eltar se ergueu sujo e sangrando, mas com a postura altiva como se estivesse em pé na frente do trono, coroado como rei. Ele realmente tentara ajudar o meio-irmão e ninguém poderia julgá-lo pelas escolhas erradas de Seth. Era incrivelmente revigorante não ser totalmente culpado de algo.

- Você pode não ter matado Nyela e o filho de Seth, mas foi você quem entregou ela de bandeja pro maníaco do seu pai e deu aquele touro desgraçado pra ele. Pra mim você é tão ruim quanto seu pai, talvez pior porque Tigrésius não esconde quem ele é. Você é

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dissimulado, mentiroso, incapaz de pensar em alguém além de si mesmo. – Lordok disse, olhando Eltar nos olhos.

- Que fofo. Você me ama. – Eltar brincou.

- Sua sorte é que você é mais útil vivo... Por enquanto. Mas vamos derrotar seu pai, garoto, e quando isso acontecer eu vou caçar você até o inferno pra que você pague pelos seus crimes. – Lordok continuou.

- Adorável, mas agora, se não se importa, eu tenho que pensar em uma forma de justificar seu ataque besta e a perda dos bens que eu trouxe. Lordok, você já foi mais civilizado. Bastava me enviar um convite pra um chá e nós conversaríamos. – Eltar disse, ainda sorrindo e Rodan sentiu um desejo quase incontrolável de arrancar dente por dente daquele garoto.

- Não abuse da sorte, rapaz. – Lordok disse, os punhos cerrados. – Vá embora e não se preocupe. Eu já criei uma distração pra justificar isso. Agora mesmo alguns dos meus leoninos estão atacando a cidade mais próxima. Você deve aparecer e todos vão fugir depois de uma luta falsa.

- Que meigo, você está me ajudando a parecer um herói. – Eltar disse.

- Não é útil pra nenhum de nós que seu pai comece a desconfiar de você. Agora vá antes que eu perca as gotas de paciência que ainda tenho. – Lordok disse.

Eltar subiu em seu cavalo e começou a se virar a caminho da cidade mais próxima. –

Ah... – Ele parou, olhou pra Rodan e disse: - Envie meus cumprimentos à minha adorável irmã pelo casamento de vocês.

Rodan tremeu de raiva e deu uma passo, pronto pra jogar a espada na nuca de Eltar e matá-lo. Mas Lordok colocou uma mão em seu ombro o parando.

- Esse....

- Calma. – Lordok disse. – Quando o momento chegar, se Seth não quiser matar esse garoto pra vingar sua mulher e filho, eu deixo você matá-lo. Por enquanto, vamos pra casa.

~o~

Lordok e seu grupo voltaram dias depois. Seth ainda não reagia. Passava dia e noite sentado na cama, sem dormir, sem comer ou beber, só tomando banho quando Hunna o levava pro chuveiro e dava banho nele, sem falar, olhando pro nada, abraçado com a adaga tão forte que ninguém conseguiu tirar dele, lágrimas caindo sem parar de seus olhos inchados. Lordok chamou a família toda, enquanto Vó ficara cuidando de Seth, e contou o que aconteceu. Hunna começou a chorar nos primeiros minutos do relato. Fagrir tinha um olhar sombrio. Carya deu um soco tão forte na mesa de madeira que a rachou e queimou ao mesmo tempo, quando seu poder emanou. Rodan a abraçou de lado, com a mão firme em sua cintura. Rádara estava pálida como a morte. Devon ficou quieto, pela primeira vez

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sem saber o que dizer. Quando todos se acalmaram, um silêncio pesado caiu sobre a sala, quebrado apenas pelos soluços de Hunna.

- Eu devia...devia ter trazido...eu...devia ter arrastado ele... – Hunna disse.

- Acha que aquela coisa disse a verdade? – Carya perguntou, rouca pela raiva.

- Sobre ter ajudado Seth? – Lordok perguntou. – Acredito que sim. Explicaria como a adaga foi parar na mão de Seth e como ele fugiu do palácio, passando por toda Smilon sem ser preso ou morto por alguém que quisesse uma recompensa do rei.

- Querida, acho que você devia falar com ele. Não sei...Vocês têm uma ligação poderosa... Talvez ajude. – Fagrir disse.

Desde que trouxera Seth, Carya não conseguira vê-lo, pois precisara ir lutar em uma cidade leonina atacada pelos Tiger. Ela encontrara Lordok no caminho e, mesmo insistindo muito, o rei se recusara a contar qualquer coisa antes de reunir a família toda.

- Claro... – Carya murmurou. – Mas preciso passar em casa antes.

- Tudo bem, querida? – Hunna perguntou.

- Sim, só suja. – Carya mentiu, não prestando muita atenção ao que dizia.

Sem olhar pra ela, Rodan decidiu que iria perguntar o que ela tinha, já que a alguns dias ela parecia sentir algo, sempre acordando tarde, com preguiça de levantar, quase não comendo e muito quieta. Sempre que ele perguntava ela dizia que era preocupação com os treinos, mas ele sabia que era mentira.

- O mago nos disse que a receita de Seth pode mesmo funcionar, apesar dos riscos altos. – Rádara mudou pro tópico seguinte.

- Significa... – Hunna enxugou as lágrimas, esperançosa.

- Sim. – Lordok disse. – Existe uma chance, mesmo pequena, de que Teira possa ser trazida de volta e curada.

- O que acontece se não funcionar? – Devon perguntou.

- Tirar minha mulher do sono é fácil. O problema é curá-la do grave ferimento quando tiramos ela de lá. Se não funcionar, ela simplesmente morrerá em minutos. – Lordok disse com um nó na garganta.

- Vocês são a família. – Fagrir disse. – O que vocês decidiram? Vão arriscar mesmo as chances sendo tão pequenas?

- Sim. – Rádara e Lordok disseram ao mesmo tempo.

- Sei que as chances são pequenas, mas é a única chance que temos. Não vou condenar minha mulher a viver daquele jeito pra sempre. Eu a amo, mas ela merece mais do que isso. Ou a vida ou o descanso nos braços de Kallisti. – Lordok disse.

- Queríamos que Seth estivesse aqui no momento que retirarmos ela de lá, afinal se ela tem uma chance hoje é graças à ele. – Rádara disse, olhando insistentemente pra Carya.

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- Quero esperar pelo menos alguns dias pra fazer isso depois que ele melhorar. Mas se não... – Lordok começou.

- Ele vai estar aqui. – Carya disse decidida.

- Se tem alguém que pode trazer ele de volta é você, amor. – Rádara disse com voz meiga. Carya ignorou, apertando a mão de Rodan.

- Querido, vamos? – Carya chamou com a voz mais doce possível.

Ambos se despediram e saíram. Seguiram para casa silenciosamente, um silêncio confortável, de mãos dadas.

- Precisamos conversar. – Rodan disse assim que entraram.

- Agora? – Carya perguntou, tirando a roupa com pressa.

- Agora. – Ele respondeu. – O que está acontecendo? Você está agindo...

- Nada. – Carya vestiu outra roupa como se estivesse fugindo de um exército inteiro. –

Melhor eu ir ver meu irmão. Conversamos mais tarde, querido. – Ela deu um beijo rápido nele e saiu.

- Mulher astuta do inferno. – Rodan murmurou, sem entender bem como ela se arrumara tão rápido, obviamente fugindo das perguntas dele. – O furacão Carya ataca de novo.

Mas a falta de respostas de Carya foi uma resposta. Tinha mesmo algo errado. Algo que ela não queria contar pra não preocupá-lo.

~o~

Lordok estava na casa de Hunna, aguardando pra conversar com Fagrir sobre o afilhado que ele visitava todos os dias, morrendo de preocupação e pena. Carya entrou quase sem fôlego e se sentou ao lado dele.

- Padrinho.

- Oi, querida. Como se sente? – Lordok perguntou, abaixando a voz.

- Melhor. O frio naquela cidade não ajudou muito. Parece que carregar a chama de Éris me deixou mais sensível ao frio.

- Faz sentido. Precisa pedir ajuda a algum mago. E rápido.

- Eu sei... – Carya murmurou. – Queria que fosse meu irmão. Ele que sempre cuidou de mim quando fico doente.

- Sim. Mas talvez você não...

- Filha. – Fagrir entrou, interrompendo a conversa murmurada e abraçou a filha. –

Pode ir, querida. Sua mãe está lá com seu irmão e discutindo com Vó sobre qual o sabor de bolo é melhor pra tentar fazer Seth comer.

- Pelo menos isso não mudou. – Carya sorriu e seguiu pro quarto do irmão.

- Teira iria gostar de Vó. – Lordok disse, triste.

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- Ela irá gostar de Vó. Tenha fé, meu amigo. As chances são pequenas, mas existem.

Teira é forte. Ela vai sobreviver.

- Ela é forte porque já sofreu muito. E se ela estiver cansada de lutar? E Rádara... –

Lordok esfregou a testa. – Rádara tem sido tão decepcionante... Eu devo ser um pai horrível por dizer isso da minha filha.

- Não. Filhos nem sempre são o que gostaríamos que fossem. – Fagrir disse. – Eu devia ter ensinado Seth a ser mais prático, não ver tanta bondade em tudo e todos. Mas, como pais fazemos o melhor que podemos. Não há manual embutido nos filhos, Lordok.

- Devia existir. – Lordok disse. Ele parecia extremamente cansado.

- Mas limão não é bom pro sangue... – Hunna disse, vindo tagarelando com Vó.

- E o que isso tem a ver com o sangue? Pior é essa coisa de ameixa que você fez. A velha aqui sou eu, não o menino. – Vó veio ao lado de Hunna.

- Senhoras, o que aconteceu? – Lordok perguntou, divertido.

- Esta senhora aqui, - Hunna disse de mau humor – não entende que ameixa é bom pra...

- Bom pra velho! – Vó disse. – Limão ajuda no bom funcionamento da mente. Minha mãe sempre dizia...

- Quando sua mãe existia o planeta não devia ter nada além de uns poucos limoeiros!

– Hunna disse impaciente. – Nem os anéis Anuin deviam existir ainda!

- Pelo menos minha mãe não tinha essa frescura de talheres certos pra comer bolo!

Bolo se come com a mão! – Vó entrou na discussão.

- Senhoras, por favor, acalmem-se. – Lordok disse. – O que quero saber é porque estão aqui e não no quarto...

- Carya nos expulsou. – Hunna e Vó disseram emburradas.

- Ela teve a ousadia de dizer que não fazemos nada além de discutir. – Hunna disse.

- Eu achei um absurdo! Nós nunca discutimos. – Vó disse e Hunna acenou com a cabeça.

- Essa menina precisa ter mais respeito por nós. – Hunna disse puxando Vó pra cozinha.

- Concordo. Deveríamos chamar ela pra conversar e lhe dar um castigo. – Vó disse, saindo de braço dado com Hunna.

- Você entende essas duas? – Lordok perguntou.

- Ninguém entende, meu amigo. Ninguém. – Fagrir disse, sorrindo, o clima um pouco mais leve.

~o~

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- Seth, sua besta! Olha pra mim! – Carya já tinha tentado ser gentil, mas o irmão não reagia, continuava olhando pra janela aberta, sem realmente ver nada. – Sua garota e seu filho morrem e você fica aí, feito um bundão, olhando pro nada ao invés de lutar contra aqueles que a mataram?!

Seth nem parecia ouví-la. Carya perdeu a cabeça. Ultimamente tudo a irritava com extrema facilidade. Ele pegou o irmão pelos ombros, o chacoalhou pra frente e pra trás com força e disse: - Olha aqui, seu idiota! Eu preciso da droga da sua ajuda pra enfrentar aquele assassino de merda! Ou você acorda pra vida e faz alguma coisa ou eu vou arrancar seus olhos com uma mordida!

A chacoalhada dela fez a cabeça dele ir pra frente e pra trás sem controle, até parar de frente pra ela. Seth olhou com seu único olho bom e pareceu ver a irmã pela primeira vez em anos. Seus olhos de repente perderam aquela aparência desfocada, brilhando com algo que parecia ser esperança.

- Você...está...grávida. – Seth disse.

- Não. Só estou doente com problemas de estômago e o frio na...

- Carya. Você está grávida. É uma menina. – Seth disse e abraçou a irmã que ficou chocada demais pra retribuir o abraço.

- Merda... – Carya murmurou. Não dava pra duvidar quando um mago, especialmente um tão poderoso, via a vida em uma mulher. Será que o tio Lordok viu e não quis me dizer?

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Fi...fi...fi....

Era alta madrugada. Até mesmo os anéis no céu estavam escuros àquela hora. Ela estava de plantão em um posto disfarçado na entrada da capital Jubay, suprindo um soldado ferido recentemente na vigia. Não era seu trabalho, mas ela precisava daquilo, de um momento longe de Rodan para pensar. Seth e Lordok prometeram segredo sobre sua gravidez até ela processar a informação e tomar coragem de contar pro marido. Será que ele ainda se sentiria atraído por ela mesmo quando ela não estivesse em sua forma física perfeita? Ele a amaria depois de ter tido um filho? Ele iria querer ter um filho naquele momento? Ela queria? Ela conseguiria criar outra criatura, educá-la e torná-la uma pessoa digna? E se, mesmo com toda a criação bem estruturada, se ela ensinasse todos os códigos de honra de uma felina digna, sua filha se tornasse uma cópia de Tigrésius? Todos sempre diziam que ela própria era parecida com o pai biológico na personalidade... E se fosse uma maldição que passasse no sangue dela? E se a filha dela se tornasse uma louca, assassina, uma versão feminina de Eltar? E se ela se tornasse mimada demais e se tornasse uma criatura disposta a quebrar qualquer código de honra pra ter o que quisesse, como Rádara?

- Eu não vou conseguir educar outro ser vivo... Eu mesma sou tão...imperfeita... O que poderia ensinar de bom pra outra criatura? – Carya murmurou pra si mesma. Ela nunca se sentiu tão insegura de si mesma, com tanto medo e sensível como naqueles dias.

- Carya! – Devon veio correndo, pulando entre os galhos.

- O que houve? – Carya perguntou estranhando a presença do espião. Devon tinha saído em missão à capital Tiger, Smilon, a dois dias. Ele só deveria voltar na semana seguinte.

- Eltar. Ele está a caminho daqui. – Devon disse, ofegante. – Ele raptou alguns jovens da fazenda Lhágua e está trazendo para cá exigindo que você e Rodan se entreguem em troca dos reféns.

- Mas que diabos! Porque ele faria isso?

- Algo sobre Tigrésius ter descoberto os planos dele. Não sei os detalhes. Mas a coisa fugiu do controle. Alguns reféns se rebelaram e ele vai matar os rebeldes.

- Temos que impedir. Vou avisar Rodan...

- Não dá tempo. Precisamos ir. Nem sei se chegaremos a tempo... Ele já vai matar os rebeldes na primeira hora após o nascer do sol.

- Vamos. Vou deixar uma mensagem pra Rodan aqui. Ele nos encontra no caminho. –

Carya disse, deixou uma mensagem escrita às pressas e correu com Devon ao lado o mais rápido que puderam, descendo a montanha e pulando nos galhos das árvores da floresta que cercava a estrada principal.

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A primeira hora após o nascer do sol chegou e eles haviam parado, ofegantes, na beira da estrada onde Eltar estivera com os reféns quando Devon saiu.

- Chegamos tarde... – Devon murmurou enquanto Carya dava alguns passos leves e em alerta total na estrada.

- Não. Me recuso a aceitar isso tão fácil. – Carya disse, quase saindo da floresta.

- Sinto muito. – Devon disse.

- Devon, tenha calma! Não vamos lamentar antes da h... – Carya se calou com uma dor na nuca.

- É pro seu bem, Carya. – Devon disse, segurando ela antes que atingisse o chão. Ele jogou fora o pedaço de madeira que usara pra bater nela, a jogou no ombro e assoviou.

Uma carruagem pequena e simples de mercadores de peles saiu do outro extremo da estrada, dentro da floresta, dirigido por um jovem mais ou menos da idade de Devon. Ele a acomodou na parte traseira, entre os montes de peles, se sentou ao lado dela a amparando e deu a ordem pro rapaz seguir.

~o~

- Finalmente! – Devon disse.

- Foi difícil sair de Jubay sem chamar atenção. A cidade está caótica. – Rádara disse, entrando na caverna, em trajes masculinos bem justos ao corpo. – Que ideia maluca foi essa de deixar uma mensagem pra idiota do comandante?

- Carya deixou e não pude impedir, não sem atrair a desconfiança dela. – Devon disse olhando pro corpo delineado de Rádara, disfarçadamente. Ambos caminharam pela caverna úmida, nojenta, até chegar ao fundo da caverna. Ele usou a ponta da própria adaga em um pequeno buraco quase imperceptível na lateral, pressionou e a grande rocha que formava a parede do fundo se moveu mais para dentro e depois rolou para o lado. Lá dentro havia uma casa muito bem arrumada, decorada, iluminada e quente. Haviam quatro quartos, sala, banheiros em cada quarto, uma cozinha pequena e aconchegante, uma espécie de jardim com um lago subterrâneo e as pedras azuladas encravadas nas paredes davam o toque final que deixavam o local belo e mágico. A rocha atrás deles se fechou enquanto desciam a pequena escada, Devon dando o braço elegantemente para Rádara.

- Como ela está? – Rádara perguntou. – Se você a machucou...

- Eu sou um espião, Rád. Sou especialista nessas coisas. Não se preocupe. Ela está bem. Já me jogou umas quinhentas maldições e tentou incendiar o quarto. Mas acho que ela prefere viver, mesmo presa aqui, do que se matar. Então não usou muito do poder das chamas pra não morrer sufocada. – Devon disse.

- Isso é estranho. – Rádara disse. – Não parece o estilo da Carya. Mas fico feliz que ela não esteja sendo suicida.

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- Não vai ficar feliz por muito tempo. Ela está uma fera.

Devon levou a princesa pelo corredor com dois quartos de cada lado e, antes mesmo de darem um par de passos, já se houvia os gritos de Carya dentro do último quarto à direita, mesmo com a porta fechada.

- Espero que você a convença. – Devon disse com pena.

- Eu vou. É pro bem dela. Não podemos mais deixar Rodan fazer o que quiser. Depois desse casamento absurdo, quem sabe do que ele será capaz? – Rádara disse.

- Rád... Você tem certeza...?

- Pare. – Rádara disse com firmeza. – Não comece a vacilar agora. Você mesmo percebeu que Vó trabalha pra ele e que ele matou aquele pobre coletor de mel. Sem falar que você ouviu do próprio Leviatã que Rodan é espião dele à anos.

- Eu sei... É só que... É difícil... – Devon não conseguiu terminar a frase. Algo em seu peito parecia estar se quebrando em mil pedacinhos.

Rádara colocou uma mão sobre o peito dele e o olhou nos olhos. – Eu sei que é difícil.

Rodan era muito querido para mim também. Mas não podemos fingir que não vemos os crimes dele e deixar ele usar a Carya como quiser, destruir nosso povo...

Devon segurou a mão de Rádara sobre seu peito, tentando respirar melhor, perdido nos olhos amarelados da jovem. – É melhor você entrar. – Ele disse com dificuldade.

Rádara entrou no quarto e Devon fechou a porta, aguardando do lado de fora. Carya estava presa numa gaiola dourada, suspensa sobre uma piscina de água gélida que magicamente brotava do solo, inundando o quartdo quase todo, as paredes minando a mesma água fria, tornando o lugar tão frio quanto o topo das mais altas montanhas na cordilheira das Montanhas Amarelas. Dentro da gaiola havia um colchonete, uma coberta não muito grossa, comida, água e uma vasilha para ela fazer suas necessidades. Não havia magia no planeta mais poderosa do que as chamas de Éris, exceto os poderes das divindades. Carya poderia incendiar aquilo tudo, mas as barras da gaiola eram feitas de ouro e o gás tóxico emitido por um incêndio suficiente para derretê-las a sufocaria e mataria. Incendiar o quarto levaria boa parte de sua energia mágica por causa da magia gélida ao redor e acabaria com o oxigênio do ambiente, a matando sufocada. Nenhuma das opções era viável. Ela podia estar insegura sobre gerar uma nova vida, mas nunca a mataria deliberadamente assim.

Carya estava encolhida, segurando os joelhos com a cabeça entre eles, lutando contra o frio incômodo. Quando ouviu a porta se fechando, levantou a cabeça, piscou algumas vezes e reconheceu Rádara. – Porra. Eu torci pra que minhas suspeitas estivessem erradas e Devon tivesse agido sozinho.

- É pro seu b...

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- Se você disser que essa porra é pro meu bem eu juro que não respondo por mim! –

Carya gritou, um rosnado escapando.

- Eu sei que você está chateada, Carya. E entendo isso. – Rádara disse tentando manter a calma.

- Chateada? CHATEADA? Chateada eu fico quando minha cerveja vem sem espuma, quando a fivela do meu cinto quebra, quando minha mãe tenta pintar minhas garras com desenhos bobos, quando o garçom traz carne bem passada.... Eu não estou chateada por você me sequestrar e prender como um animal, Rád... EU ESTOU COM A DESGRAÇA DE

UMA RAIVA ENORME, SUA ESTÚPIDA DO INFERNO, MIMADINHA EGOCÊNTRICA!

- Será que você pode pelo menos me ouvir? – Rádara disse irritada.

- Aaah... Que fofo. A princesinha de merda quer que eu ouça ela. Tadinha...A menina incompreendida.

- Não dá pra conversar com você quando você começa com esse deboche. Eu só quero que você ouça e entenda meus motivos.

- Quero que você enfie seus motivos no meio do seu rabo!

- Ah, claro. Mas a besta do Rodan, aquele animal traiçoeiro, você adora ouvir!

- MEU marido tem muito mais dignidade nas poucas palavras do que você com todo seu vocabulário extenso, imbecil!

- Ele não é seu marido! – Rádara gritou.

- E isso aqui no meu braço é o que, sua estúpida? – Carya levantou o braço, exibindo a pulseira dourada, o símbolo que escolheram pro casamento.

- Ele só quer usar você, Carya. Será que você não entende? Ele não ama você. Eu sim.

E, você gostando ou não, é aqui que você vai ficar. Comigo. Não com aquele traidor que espero que morra em breve.

- Já tive muita paciência com a sua loucura. Estúpida.

- Eu posso provar que ele está mentindo! Ele não está amaldiçoado coisa nenhuma!

Foi tudo um truque! Os próprios aliados dele o querem morto porque ele não é de confiança! – Rádara gritou e um alerta soou na mente de Carya.

E se for verdade? E se Eltar mudou de ideia e quer matá-lo? Carya pensou e disse: -

Eles não o matariam porque sabem que eu não os ajudaria a vencer aquele monstro no trono Tiger.

Rádara ergueu a mão com a mesma mensagem que mostrara à Devon, com a letra de Rodan, tramando para conquistá-la e ter controle sobre o poder das chamas de Éris que ela carregava. Carya encarou a mensagem usando sua visão felina poderosa pra ler cada linha.

Era a letra de Rodan. Ela ficou alguns minutos calada, o rosto chocado, uma expressão magoada.

- Ele nunca... Não... – Carya murmurou.

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- Eu sei que dói, querida, mas é a verdade. Leviatã confirmou pro Devon que Rodan era o espião dele a anos... Eu lamento. Mas juro que vingaremos você. Fique aqui, descanse, e nós vamos falar com Eltar. Ele já garantiu que matará Rodan pra você se você mantiver sua parte no acordo e matar Tigrésius, sem assumir esse ato, deixando ele no trono Tiger.

Claro. Pra ele não importa se Rodan vive ou morre, apenas que eu cumpra minha parte no acordo. Carya pensou. – Rád... Eu... Eu não consigo acreditar... Devon é como um filho pra ele... Se ele confirmar, se...se ele... Eu ficarei do seu lado e Rodan pagará caro por ter brincado comigo. – Ela disse com chamas dançando em seu semblante cheio de dor e raiva.

Rádara chamou Devon que entrou e confirmou toda a história, visivelmente magoado.

- Vamos soltá-la. – Rádara disse.

- Não acho que seja uma boa ideia. E se... – Devon tentou ser prudente, embora Carya realmente parecesse magoada e até chorasse.

- Não perguntei o que você acha, Devon. Você é meu subalterno e vai fazer o que eu mandar! – Rádara disse, tão autoritária que deixou Devon magoado. Logo agora que ele achava que ambos tinham se aproximado... – Carya está do nosso lado. Ela finalmente ouviu a voz da razão. Agora, solte-a e nunca mais questione as decisões de sua futura rainha!

Devon olhou com visível mágoa pra ela. Ela percebeu, mas empurrou o incômodo pro fundo da mente. O que importava se ele estava chateado ou não? Ela tinha Carya de volta e isso era tudo que importava. Sutilmente Carya observou a cena com as mãos secando furiosamente as lágrimas que caíam sem parar. Devon caminhou até o centro do quarto, logo abaixo da gaiola, enfiou a mão dentro da água e tirou um amuleto de pedra com símbolos rúnicos desenhados. A água nas paredes secou e a do chão retrocedeu até formar apenas pequenas poças. Ele foi até a parede esquerda e puxou a alavanca. A corrente que segurava a gaiola no teto desceu cuidadosamente, colocando o enorme objeto no chão. Ele caminhou, ainda de olhos baixos, destrancou a porta e quase foi derrubado quando Rádara correu, trombando nele, e abraçou Carya antes mesmo dela colocar um pé fora da gaiola.

Ele se afastou triste e saiu, deixando a porta do quarto aberta, enquanto Carya o observava, abraçada à Rádara. Rádara a beijou tantas vezes que Carya ficou sem fôlego, sempre retribuindo os beijos e acariciando a princesa.

- Vamos. Você precisa se aquecer, amor. – Rádara disse, passando as mãos várias vezes pelos braços dela pra esquentá-la.

Carya seguiu, ainda chorando um pouco, até a sala. Devon não estava em lugar nenhum e ela imaginou que o rapaz tinha se escondido em um dos quartos que vira no corredor ou saído pra sofrer pela forma como Rádara o descartara. Sentada no sofá ela observou o ambiente. Era pequeno, bonito e aconchegante, havia uma pequena escada que

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com certeza dava pra saída. Carya começou a ofegar e Rádara que estava na cozinha veio correndo até ela.

- Meu amor, o que foi? Carya, por Kallisti, não me assuste, minha linda. - Carya continuava ofegando e Rádara entendeu que era um ataque de pânico. Talvez o baque de saber que o homem com quem se casou só a via como uma ferramenta tenha sido demais.

Rádara pensou. – Vamos... Você precisa de ar fresco. Vem comigo.

Dizendo isso, Rádara colocou um braço dela ao redor de seu ombro e a apoiou até a saída. Pegou uma adaga que Devon lhe dera, a adaga dos espiões, e colocou na abertura, pressionando-a. Carya estava de cabeça baixa, respirando com um dificuldade e soltando um ruído de sufocamento.

- Calma, querida. Calma. Já estamos saindo. Respira, Carya. – Rádara dizia e o medo era notório em sua voz.

Quando ouviu o som da rocha se movendo na saída, Devon se levantou da cama em um dos quartos e foi ver porque Rádara estava saindo. A ideia de que ela pudesse estar saindo com Carya nem lhe passou pela cabeça, até ele ver as pontas duas caudas sumindo na saída.

- Mas que diabos! – Devon gritou e correu. A porta já tinha se fechado e ele ainda precisou abrí-la.

Assim que saíram, Carya se soltou e deu uma rasteira, derrubando Rádara no chão. Ela poderia matar a jovem leonina, mas não queria se arriscar à uma decisão precipitada ou à Devon chegando e a surpreendendo. Além do mais, por pior que fosse a situação, Rádara era sua amiga e ela ainda tinha esperança de que a moça parasse de agir feito louca. Carya começou a correr, mas Rádara à segurou pelo calcanhar, fazendo-a cair de cara no chão.

Furiosa, Carya moveu-se e chutou o rosto de Rádara com o pé livre.

- Me solta, surtada do inferno! – Carya gritou. No susto, Rádara soltou a perna de Carya e colocou a mão no rosto dolorido.

- Pare... Você não pode acreditar nele! – Rádara gritou, correndo atrás de Carya que tentava correr pra saída.

A porta de pedra se abriu e Devon correu, passando pelas duas e parando na frente de Carya, entre ela e a saída.

- Pare, Carya! Eu sei que é difícil acreditar, mas eu não estaria contra meu pai se não tivesse certeza do que estamos falando. – Devon disse, sacando as adagas, rezando pra que Carya parasse e ele não precisasse usá-las.

- Sai da frente, Devon! Não quero machucar vocês, mas vou se precisar! – Carya parou ficando em guarda, suas mãos brilhando com chamas. Rádara se aproximou dela por trás, seu rosto arranhado pelas garras do pé de Carya. Carya olhou de canto pra ela com chamas

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emanando dos olhos e Rád parou, com medo de continuar e enfrentar aquela fúria controlada com dificuldade pela amiga.

- Carya, seja sensata! – Rádara gritou, pensando em alguma forma de imobilizá-la.

- Sensata? Que porra você acha que isso significa? Você não sabe o que é sensatez, sua tola! Você ME PRENDEU! – Carya gritou e seu corpo inteiro emanava ondas de calor tão intensas que a umidade na caverna começou a virar vapor e sumir lentamente.

- Carya, eu sei que... – Devon começou.

- Cala a merda da boca, Devon! Você é mais tolo do que Rádara por ter caído na loucura dela! É do SEU PAI que estamos falando! O leonino que, sem nenhuma obrigação, nenhum parentesco, salvou sua vida e te adotou como filho e amigo!

- Amor...

- NÃO ME CHAMA DE AMOR, RÁDARA! NÃO SOU SEU AMOR! SOU CASADA E AMO O

MEU MARIDO! ACEITA ISSO DE UMA VEZ, DROGA! – Carya estava tão irada que só assim pôde perceber que seu autocontrole sobre seus poderes realmente era bom, ou ela já teria incendiado a caverna toda.

- Você não ama ele! Você me ama! Você está tão iludida que não consegue nem pensar direito...

- Eu não sou burra, sua estúpida! Sei muito bem o que e quem eu quero. Agora afastem-se ou vou matar os dois!

- Carya ainda há tempo! Você não precisa ir até ele... Ele vai sumir das nossas vidas e você vai perceber que não gosta dele, só está confusa...

- Você é surda, caralho!? – Carya gritou.

- Carya, vamos conversar com calma. Apague as chamas e vamos conversar. – Devon disse, o calor começando a queimar seus pêlos negros que se encolhiam com a temperatura.

- Isso. Vamos lá vamos conversar. Tenho certeza que você só precisa aceitar que não tem nenhum compromisso real com ele e que a morte dele vai ser sua liberdade. – Rádara disse, lágrimas caíam de seus olhos.

Carya sorriu e disse num tom ácido que ela nunca usara com a amiga, que ela só usava com inimigos, um tom mais venenoso que qualquer veneno conhecido. – Eu casei com ele.

Eu amo o Rodan. E você não vai ferí-lo, nem que eu precise matar você pra evitar isso...

Você nunca vai matar o pai da minha filha.

Rádara e Devon ficaram chocados enquanto Carya tinha um sorriso perverso no rosto, um que fez os dois se lembrarem de Tigrésius. Naquele momento Carya parecia uma versão feminina do rei Tiger, o mesmo prazer cruel nos olhos. Ela se aproveitou da distração dos dois e correu pra fora da caverna, derrubando Devon no processo. Enquanto Carya corria

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pra longe, Rádara caiu de joelhos chorando violentamente, uma única frase se repetindo em sua cabeça....

Carya vai dar um filho à Rodan... Carya vai dar um filho à Rodan... Carya vai dar um filho à Rodan...

Devon se aproximou, trêmulo, se ajoelhou e abraçou Rádara. Ambos ficaram ali, num silêncio cortado apenas pelo choro quase histérico, doloroso, dela.

~o~

Carya correu sem parar por horas, se orientando pela posição do sol até ver a cordilheira das Montanhas Amarelas ao longe. O cansaço começou a cobrar seu preço e ela quase se arrependeu de não ter comido nada enquanto estivera presa, a raiva a impedindo de engolir até mesmo água. Mas ela não queria parar, ela só queria ver Rodan, se jogar nos braços fortes dele e relaxar com aquela calma absurda dele. Ela subiu tão rápido a montanha que ficou tonta e enjoada com a chamada ‘doença da montanha’ que confundia e causava vários sintomas quando se subia enormes alturas muito rapidamente. Mas, alimentada pela raiva e adrenalina, ela continuou subindo. Quando alcançou o topo percebeu que subira pela encosta da floresta à oeste da capital. Com as pernas trêmulas, enjoada, tonta, cansada e com sede, ela correu e, meia hora depois, saiu na parte de trás de uma taverna famosa, correu pelo beco na lateral e saiu na frente do lugar que ficava na praça central.

A taverna e todos os comércios que geralmente estariam lotados à essa hora estavam fechados. Um grande número de soldados leoninos, civis e alguns nobres, incluindo o rei, estavam reunidos na praça acertando os detalhes de alguma missão. Carya não sabia, mas metade daquele grupo havia voltado de um dia inteiro de buscas por ela e a outra metade estava pra sair. Rodan, ao lado do rei e de Hunna que chorava abraçada à Vó, parecia esgotado. Carya tentou gritar pra chamá-lo, mas nenhum som saiu de sua boca, a garganta seca demais pra emitir qualquer som. Seth e Fagrir estavam mais distantes e Carya só viu o topo de suas cabeças ao longe, parecendo entregar algo aos soldados enquanto Lordok falava.

Ela tentou gritar de novo, suas pernas não respondendo mais, sentindo que ia cair.

Mais uma vez o som não saiu. Sem saber o porquê, Rodan se virou na direção dela e viu parte dela, com a mão apoiada na parede da taverna. Ele pensou que era mais uma alucinação, mas não se importou. Correu feito louco, derrubando acidentalmente alguns felinos em seu caminho e só parou quando a tocou, agradecido por ser ela mesma e não outra visão.

- Ca...Carya... Deuses! Carya, é você mesma? – Rodan tremia a amparando e tocando seu rosto, braços, a abraçando... Ele estava sentado no chão com ela deitada em seu colo.

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Ele conhecia bem os sinais da desidratação e gritou pra que trouxessem água. Um grupo já corria até eles, atraídos pela corrida insana do comandante. Alguém lhe entregou uma caneca com água e ele colocou nos lábios dela.

Carya nem prestou atenção, nem mesmo se lembrou que tinham mais pessoas ao seu redor, ela só percebeu que Rodan estava ali e, assim que um pouco de água caiu em sua garganta, ela murmurou: - Rodan...Eu te amo...

- Eu também te amo, sua doida. – Rodan respondeu beijando seu rosto repetidas vezes, não dando a mínima pro fato de estarem sendo observados pela cidade quase toda.

- Eu...espero....espero que nossa filha seja tão doida quanto eu...pra você sofrer duplamente... – Ela disse sorrindo, colocando a mão dele sobre a barriga dela e praticamente desmaiou de cansaço.

- Fi...fi...fi.... – Rodan estava tão eufórico que não conseguia falar.

- Filha, Rodan. Você vai ser pai, meu amigo repentinamente gago. – Lordok disse sorrindo com uma mão no ombro do amigo.

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Talento diplomata

Rádara voltou para casa, temendo o castigo pelo crime que cometera. Mas, para sua surpresa e de Devon, Carya acusou um grupo espião de ter tentado matá-la, mas ela conseguira escapar deles sem problemas quando eles se distraíram à caminho de Tiger.

Segundo a história de Carya, esse grupo queria vendê-la ao rei Tiger e ela se safou os queimando até as cinzas, depois fugindo com medo de ter mais algum aliado deles por perto. Mas Rodan e Lordok não acreditaram nessa história, apesar de não disserem nada sobre essa desconfiança. Quando Rádara e Devon apareceram horas depois de Carya, a princesa visivelmente tensa e com olhos vermelhos, Lordok sentiu o estômago embrulhar com a leve suspeita que passara por sua mente. A suspeita piorou quando Rádara tentou visitar Carya e ela negou... Não. Ela proibiu terminantemente que Rádara entrasse para vê-la. Rodan ficou cismado, perguntou, mas a esposa apenas justificou dizendo que estava cansada do desrespeito da ex-amiga por seu casamento. Rodan não acreditou, mas não quis insistir. Ela falaria quando estivesse pronta.

Mas Lordok não estava com um humor tão compreensivo. Quando Carya proibiu a entrada da princesa em sua casa, ele chamou a filha numa reunião à portas fechadas com Devon.

- Vou perguntar e espero a verdade. – Lordok disse tão sombrio quanto nos campos de batalha. – Vocês dois têm algo a ver com o sumiço de Carya aquele dia?

- Porque acha isso, pai? Como pode pensar isso de mim? O senhor por acaso não me conhece? – Rádara entrou na defensiva, o que só aumentou a suspeita incômoda de Lordok.

- Conheço? Não sei mais se te conheço, Rádara. O que eu sei é que Devon voltou cedo demais de sua missão e não veio se reportar a mim e você sumiu naquele dia, só voltando horas depois de Carya, como se tivesse enfrentado todos os demônios juntos. – Lordok disse.

Devon olhou pra ele como se visse um fantasma.

- O que? – Lordok olhou diretamente pra ele como se seus olhos pudessem fuzilar o jovem espião. – Achou que eu não sabia que você tinha vindo aqui aquele dia? Acha mesmo que eu e Rodan não sentimos seu cheiro no posto de vigia onde Carya estava? O que, por sinal, só o torna mais suspeito já que você a vira naquela maldita manhã. Agora vocês vão me contar a verdade ou terei que prender os dois sob suspeita de alta traição à uma jovem da nobreza leonina e militar de minha confiança?

- Majestade, Rádara não tem nada a ver com isso. Fui eu sozinho que fiz tudo. Foi tudo que fizemos foi pro bem... – Devon começou, já pensando nas punições que sofreria.

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- Não é verdade. Decidimos juntos, Devon. É preciso dois pra namorar. – Rádara disse pegando a mão de um Devon que nem conseguiu disfarçar a surpresa.

- Você quer mesmo que eu acredite que você, logo você que vive atormentando Carya, está namorando com ele? Sem ofensas, rapaz, gosto de você, apesar de estar embarcando nas loucuras da minha filha. Mas não sou idiota, Rádara. – Lordok disse, lembrando principalmente do quão preconceituosa sua filha andava sendo com classes sociais mais baixas.

- Eu não gosto do fato da Carya estar com Rodan porque não confio nele. Não nego isso. Mas eu e Devon estamos juntos a algum tempo. Ele tem mostrado pra mim como essas coisas de classe são bobas e até me propôs casamento e me deu esta adaga como símbolo da nossa união poderosa. Ele tem uma igual. Estávamos comemorando aquele dia e pensando numa forma de contar. – Rádara disse mostrando a adaga que Devon lhe dera pra abrir a porta oculta da caverna onde Carya ficara.

- Eu queria pedir sua aprovação senhor, mas Rád queria esperar até sua esposa ser trazida de volta. – Devon disse, tentando tornar a mentira mais crível, mostrando a adaga igual à de Rádara.

Lordok reconheceu o objeto como uma das adagas que espiões carregavam, muitas delas contendo compartimentos secretos para venenos e antídotos, algumas até servindo como chaves secretas. Ele os encarou, de mãos dadas e soube que Rádara estava mentindo, mas, vendo o olhar realmente apaixonado que Devon tinha e talvez nem soubesse disso, viu na mentira uma oportunidade de ensinar uma valiosa lição à ela. Depois de um tempo, Lordok sorriu e disse: - Eu espero que você esteja falando sério sobre se casar com minha filha, rapaz.

- Sim senhor. Estou. – Devon disse e percebeu que ele realmente tinha um interesse em Rádara que não era apenas físico.

- Muito bem. Eu apoio esse casamento, mas com uma condição. – Lordok disse. –

Você, meu rapaz, deve fazer as pases com seu pai. Quem não é bom filho, não pode ser bom marido.

Devon pensou em rejeitar isso, mas levantaria novamente as suspeitas do rei que poderia começar a investigar a fundo e descobrir o que eles fizeram. E, por outro lado, ele estava realmente cansado de brigar com Rodan, queria conversar com alguém sobre seus sentimentos confusos em relação à Rádara, queria mais do que nunca ter um pai.

- Eu farei isso, senhor. Pela minha noiva faço qualquer coisa. – Devon disse, galantemente dando um beijo na palma de Rádara.

Rádara, por outro lado, amaldiçoou sua habitual lealdade que a fizera dizer a primeira coisa que pensou só para evitar que seu aliado fosse punido sozinho. Agora teria que

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pensar numa forma de evitar esse casamento com um jovem muito abaixo dela em termos de classe social.

Maldito, Rodan. Sempre atrapalhando a minha vida. Rádara pensou irada, andando de mãos dadas com Devon pelo palácio, morta de vergonha por estar assim com alguém que tão pouca coisa pra ela. Mas, levantar suspeitas do pai sobre o casamento seria uma péssima ideia.

~o~

Naquela mesma noite, Lordok foi visitar a afilhada. Rodan, observador como sempre, percebeu que o rei queria falar a sós com a mulher e saiu com uma desculpa boba. Apesar de toda a sua vontade gigantesca de ficar e espionar, seu respeito ao rei e à esposa, a privacidade de ambos, venceu e ele foi pra cozinha separar mais uma discussão sem sentido de Vó e Hunna.

- Minha neta está crescendo bem. – Lordok disse todo bobo com a energia da criança se formando dentro da afilhada.

- Pode falar. Não precisa amenizar não. – Carya disse, conhecendo bem aquele olhar no leonino que conhecia tão bem quanto seu próprio pai. Com um sorriso gentil, ela acrescentou: – Sabe, tio, eu posso ser irmã do seu adorado Seth, mas não tenho a mesma frescura sensível.

- É. Você não tem, minha querida garotinha afiada como uma lâmina de batalha. –

Lordok segurou a mão dela, respirou fundo se preparando. – Sei que você está mentindo, querida. E não, por favor, não negue. Estou cansado de mentiras. Não sei como, não sei os detalhes, mas minha intuição de pai não mente. Sei que Rádara te fez algo muito ruim, talvez, quase com certeza, com a ajuda de Devon.

Carya ficou séria, sabendo que mentir pro rei agora seria como dar um tapa na cara dele. Mas não iria entregar Rádara. Aquele antigo instinto de proteção entre elas e Seth era mais poderoso do que imaginava.

- Ela mentiu que estava namorando com o rapaz, que comemoravam uma proposta de casamento dele. – Lordok disse e riu amargurado. Carya tinha os olhos arregalados, mas não comentou nada. – Eu dei minha bênção ao casamento.

- Mas... – Carya começou a perguntar, confusa pela decisão do rei.

- Vai ser bom pra ela. Ela pode aprender na prática o quanto classe social não importa.

Ele gosta dela. Estou ficando especialista em perceber amores ocultos, querida. – Lordok disse, e Carya sorriu lembrando de Rodan. – Além do mais, impus uma condição que acho que você vai aprovar. Mas, o que quero dizer é que você pode me contar o que aconteceu.

- Não. – Carya disse simplesmente. – Está tudo bem, tio. Essa relação pode ser realmente a melhor coisa pra Rád. Espero que ela melhore e volte a ser minha amiga.

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- Você pode não ser sensível como seu irmão, querida, mas tem um coração muito bom. – Lordok disse, aliviado pela enteada não odiar sua filha. Ele as via como filhas e era muito difícil ver as duas assim. – Você não precisa mais falar com ela, mesmo em reuniões.

Sei que não é muito, mas acho que é o melhor por enquanto pras duas e prefiro evitar qualquer incômodo pra você.

- Não vou ficar sem falar com ela, tio. Isso é criancice. Mas vou evitar ao máximo. Não confio em mim mesma quando fico irritada.

- Eu sei. Amo você querida. – Lordok disse e deu um beijo carinhoso na testa dela, ainda segurando sua mão. – Amo como se fosse minha filha e farei até o impossível para ver você bem.

- Ta bom, tio. Mas para com isso. Vai infectar minha filha com essa melosidade toda. Já basta minha mãe com essa frescura sentimental. – Carya disse sorrindo.

- Ah, querida. Deixa um velho leonino babar por sua querida afilhada e a netinha. –

Lordok riu.

~o~

Dois dias tinham se passado e Devon apareceu na porta da casa, procurando Rodan.

- Oi. – Devon disse.

- Oi. – Rodan respondeu, fechando a porta atrás dele, mantendo os dois na varando, cruzando os braços e observando Devon com um olhar frio.

- Podemos, conversar?

- Estou ouvindo.

- Eu...lamento...por...você sabe...tudo. – Devon disse e era verdade. Ele realmente lamentava. – Eu quero acreditar em você...

- Então acredite.

- Você também é espião, Rodan. Sabe que não é tão simples.

- Sei. – Rodan murmurou, ainda de braços cruzados.

- Olha, eu sei que estamos meio abalados, mas eu decidi que você merece um voto de confiança, pai. E não me olha com essa cara de “eu não sou seu pai, garoto” – Devon fez uma imitação horrível da voz dele – você sabe que é meu pai, sim. E, como seu filho, eu decidi que não vou mais brigar com você e vamos descobrir essa história juntos.

- Decidiu isso antes ou depois de Lordok impor isso como condição pra você se casar com Rádara? – Rodan perguntou.

- Ele te contou?

- Não, mas conheço bem meu amigo e suas táticas diplomáticas. – Rodan disse.

- Ele só me deu a desculpa que eu procurava pra vir falar com você. Não aguento mais essa briga, essa desconfiança. Você é o único parente, meu melhor amigo, a única pessoa

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em quem confio... – Devon disse e se surpreendeu com o que saiu de sua boca antes mesmo de pensar. – Droga...Eu confio mesmo em você, seu velho chato do caramba.

- Não sei como Rádara conseguiu aquilo, garoto, mas aquela mensagem é falsa. Vamos provar isso.

- Você já tem uma ideia de como?

- Não, mas se tem uma coisa que a vida me ensinou é que a verdade sempre aparece.

– Rodan disse.

- Então, até lá, vamos parar com essa bobagem? Eu preciso do meu velho pro casamento. – Devon perguntou.

- Não sei, rapaz. Você pode ter ficado desconfiado comigo, mas eu agora não confio em você. Porque você não começa me contando o que aconteceu com o velho Javier?

Devon sentiu o sangue congelar. Pelo visto havia uma razão poderosa pra Rodan ser uma verdadeira lenda nas escolas de espionagem. Ele respirou fundo. – Eu o matei pra pegar a mensagem.

- Imaginei. – Rodan disse.

- Você vai me entregar, não é?

- Não sei. Por enquanto vou lhe dar uma chance de viver sua vida com sua noiva por me dizer a verdade. Quanto ao resto, eu sei que você teve algo a ver com o sumiço da minha esposa. – Rodan disse e ele realmente parecia assustador. – Mas, Carya me fez prometer que pensaria em te dar uma chance. Sendo assim, vá falar com ela e peça perdão.

Se ela aceitar, então podemos tentar. Mas não prometo fazer mais do que isso.

- Rodan, sei que não é desculpa, mas eu não sabia que ela estava grávida. Eu mataria qualquer um antes de colocar sua filha em risco. Ou mesmo a Carya.

- Diga isso à ela. Se não fosse minha promessa pra minha mulher, eu teria chutado sua bunda daqui até o reino Tiger. – Rodan disse.

Rodan chamou Carya na porta. Ela saiu e assim que viu Rodan encarando com um olhar mortal pra Devon que parecia um garoto pego aprontando na escola, ela abriu um sorriso gentil.

- Entre Devon. Não fique parado aí fora nesse sol escaldante. – Carya disse, abrindo a porta, enquanto Rodan rosnava baixo quando o rapaz passou por ele. Carya olhou feio pro marido que parou o rosnado entrou atrás de Devon.

Carya ouviu tudo que Devon disse séria, segurando a mão de Rodan sentado ao seu lado.

- Devon, mais do que tudo, eu entendo porque você fez tudo isso. Eu sei como é triste se decepcionar com quem a gente mais ama. Você não pode se deixar levar pelas loucuras da Rád, por mais que você a ame. E não negue. Seja a boa influência pra ela, não o trampolim pra loucura dela. Pode me prometer que fará isso?

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- Sim.

- Então vamos deixar isso tudo de lado. Vocês são pai e filho. Dêem as mãos. – Carya disse, se levantou e pegou a mão de Devon, o levantando e levando pra mais perto do sofá.

Ela estendeu a outra mão pra Rodan, mas o marido estava enfezado, encarando Devon. –

Rodan! Deixa de ser um velho ranzinza e vem aqui. AGORA.

Rodan rosnou, levantou de braços cruzados e, olhando como um predador pro rapaz que olhava corajosamente, apesar de trêmulo. Carya olhou feio pro marido até ele dar a mão pra ela. Ela colocou as mãos dos dois juntas, sob as dela.

- Muito bem, crianças. Agora sejam bonzinhos e parem com essa porra. – Carya disse e sua mente pareceu oscilar, uma voz diferente, mais infantil, surgindo e falando sozinha por seus lábios, sem seu controle: - Fiquem de bem. Eu gosto de vocês, não briguem, por favorzinho.

- Carya? – Devon perguntou.

- Não é a Carya. – Rodan disse chocado. – É...

- Nossa filha.... – Carya disse com sua voz normal, quase sem fôlego.

- Mas que magia é essa nessa criança? – Devon disse.

- Eu prometo que vou tentar. – Rodan disse, olhando pra Devon.

- Eu também. – Devon disse. – Prometo por... Qual o nome dela? Vocês já escolheram.

- Rania2. – Carya respondeu.

- Prometo pela pequena Rania. – Devon completou.

Gritos e correria do lado de fora chamaram a atenção dos três que saíram às pressas.

Do lado de fora haviam dois Tiger, vestidos como pescadores comuns. Cercados de soldados leoninos, ambos estavam com os braços erguidos em sinal de rendição, um deles com algo enorme nas costas embrulhado em tecido.

- Olá, irmãzinha. – Eltar disse e Carya quase não o reconheceu com aquelas roupas. –

Poderia pedir aos seus amiguinhos pra abaixar suas armas e chamar nosso irmão tolo?

2 Rania- nome da princesa (em 1993) e rainha consorte (desde 1999) da Jordânia. Formada em ADM de empresas, foi funcionaria da Apple, que inspirou o uso desse nome.

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A poderosa magia dos Tiger

- O que isso aí está fazendo aqui? – Rodan perguntou, colocando-se à frente de Carya.

- Oi pra você também, Rodan. – Eltar disse sorrindo.

- Abaixem as armas! – Lordok disse em tom claro e firme. Os soldados abriram caminho para o rei passar, vindo de um dos lados de Eltar e o outro felino que o acompanhava.

- Olha só, nosso rei preferido. – Eltar zombou. – Finalmente.

- Corte a conversa fiada, garoto. Que diabo você está fazendo no meu território? –

Lordok perguntou.

- Que é isso? Onde estão seus modos, reizinho? Nem mesmo um abraço pra cumprimentar seu visitante? Parece que meu pai tem razão ao te chamar de bárbaro. –

Eltar brincou, mas os soldados levaram isso bem à sério. O mais próximo lhe deu um soco no estômago e outros começaram a ofendê-lo e ameaçá-lo pela forma como falara com o rei. Seu companheiro, um Tiger jovem, tomou a frente do príncipe, pronto para sacar o que parecia ser uma adaga longa, mas o príncipe o conteve com um único olhar.

Lordok deu um único rugido tão alto que fez os pêlos de todos os presentes se eriçaram, o som ecoando por metros de distância. – JÁ CHEGA! Última chance, moleque, e pense bem no que vai dizer. Da próxima vez eu posso não ter tanta disposição em polpar sua vida miserável.

Eltar cuspiu no chão e disse: - Bem, bem, certo. Já que vocês não têm senso de humor... Vim falar com você e com o idi.. – o príncipe parou e se corrigiu sob o olhar furioso de Lordok - ...o seu afilhado. Temos assuntos urgentes à tratar.

- Você e sua família não vão encostar, nem mesmo olhar, pro mago Seth. – Lordok disse muito sério.

- Tudo bem. Estou aqui. – Seth disse, aparecendo quase ao lado de Rodan tão quieto que até o comandante se surpreendeu quando o notou ali. Ele deu alguns passos em direção à Eltar.

- Rapaz, você não precisa... – Lordok disse.

- Tudo bem, tio. – Seth disse e isso causou um onda de inveja em Eltar. O rapaz que nem era parente de sangue tinha liberdade pra tratar seu rei como um parente em público, enquanto Eltar, um príncipe, filho de sangue do rei Tiger não podia chamá-lo de pai... – O

que você quer?

- Abrigo. Pelo menos, por uns dias. – Eltar disse e Carya gargalhou tão alto que atraiu a atenção de todos. – Não estou brincando, menina do fogo.

- Porque eu lhe daria abrigo? – Lordok perguntou.

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- Porque você precisa da minha ajuda pra salvar sua mulher. – Eltar disse.

- Você não é mago... – Carya disse, já se irritando porque Devon e Rodan insistiam em ficar na frente dela como um escudo.

- Não, mas seu irmãozinho também não é um mago completo. – Eltar disse sorrindo e se voltou pro meio-irmão. – Não esqueceu de nada, garoto medroso?

- Não acredito... – Seth murmurou – Você trouxe. Mas....porque?

- Porque nosso pai ficou louco.... Mais louco. Ele tentou matar a mim e Leviatã.

- Deixa eu advinhar... – Devon disse olhando pra Lordok como se pedisse permissão pra falar. O rei acenou com a cabeça. – Ele tentou matar você porque descobriu suas armações... Não... Ele descobriu seu outro segredinho, não é?

Eltar deu de ombros com relativa indiferença.

- Que outro segredinho? Esse idiota tem tantos... – Carya comentou, forçando sua passagem entre o marido e Devon.

- Ele tem um filho recém-nascido que anda escondendo. – Devon disse.

- Coitada dessa criança... – Seth murmurou. – Tio, por favor, deixe ele ficar protegido aqui por alguns dias. Não por ele, mas por essa criança que não tem culpa de nada e não merece crescer sem um pai.

- Talvez seja justamente por essa criança que eu deva deixar esse verme morrer. –

Lordok disse com uma fúria surpreendente.

- Seth não pode curar sua mulher. Não com os feitiços que ele conhece, não sem isto.

– Eltar disse e acenou pro enorme embrulho nas costas. – E mais uma coisinha que eu guardei...

- É meu cetro mágico. Posso sentir. – Seth disse.

- Ótimo. Matamos esse idiota e pegamos seu cetro. – Carya disse.

- Não! – Seth disse.

- Não mesmo, menina do fogo. Leviatã está cuidando daquela coisa chorona e ainda tem a poção de cura pro seu maridinho aí. Além do mais, se me matarem suas chances de salvar a escravinha acaba. – Eltar disse.

Lordok deu alguns passos, fervendo de raiva. – Escute bem, garoto. Se tratar minha mulher ou qualquer um aqui com esse preconceito de merda eu juro que seu pai vai parecer um santo perto do que vou fazer com você.

O jovem Tiger deu um passo mais perto de Eltar e ficou claro que, o que quer que o príncipe tivesse dito, com certeza era mais poderoso do que o medo da morte. Ele preferia morrer à enfrentar a fúria do príncipe Tiger ou de Leviatã se Eltar fosse ferido. O príncipe deu um sorriso perverso.

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- Vamos, Lordok, não precisamos dessa cena toda. Basta me dar sua palavra de que vai me proteger aqui até que eu possa voltar pro meu reino e eu entrego a varetinha do meu irmãozinho e ajudo na cura da sua es...posa.

- E quanto à seu filho e o mago? – Rodan perguntou.

- Eles não precisam de proteção. Cada um está cuidando bem de si mesmo.

- Seu filho é um recém-nascido, sua besta! – Carya gritou.

- A mãe dele não é. Acredite, menina do fogo, aquela ali sabe se cuidar muito bem, aquela puta mentirosa. – Eltar disse quase trincando os dentes. – E então? Temos um acordo?

- Se você realmente tiver algo que possa ajudar minha mulher e se você realmente entregar o cetro do meu afilhado, então eu manterei você seguro até darmos um jeito no seu pai. – Lordok disse, a raiva brilhando em seus olhos.

- Me dê sua palavra, rei.

- Você tem minha palavra. – Lordok confirmou.

- Muito bem. – Eltar levou a mão às amarras que prendiam o embrulho em seu ombro.

Os soldados deram um passo à frente, com armas sacadas. Eltar parou a mão no meio do caminho, sempre olhando o rei nos olhos. Lordok ergueu uma mão com a palma aberta e todos os soldados deram um passo pra trás. O clima estava tão tenso que se uma agulha caísse no chão e fizesse um pequeno ruído poderia ser motivo pra todos atacarem e iniciarem uma batalha sangrenta. Eltar tirou o embrulho das costas, devagar, deixando claro que não tinha intenção de atacar ninguém ali. Ele colocou o embrulho no chão, desfez os nós e o cetro ficou à mostra no chão. Ele deu dois passos para trás, sempre mantendo o olhar de Lordok. Seth se aproximou e a pedra opaca começou a emitir uma luminosidade suave, como se viesse de dentro da pedra, como um coração pulsando. Quando o mago pegou o cetro e respirou fundo, foi como se tomasse uma injeção de vitaminas, seu corpo inteiro reagindo à proximidade com o objeto.

- Como você vai ajudar? – Seth perguntou, de olhos fechados, aproveitando a sensação revitalizante.

- Com isto. – Eltar disse, apontando para uma puseira de cobre com uma pedra laranja.

A pedra tinha uma espiral de energia interior, sempre se movendo lentamente.

~o~

O dia de desepertar e testar a cura de Teira chegou. Ao lado do rei, Rádara e seu noivo Devon estavam de mãos dadas. Do outro lado, Rodan e Carya de mãos dadas que nem olhavam pro lado de Rádara, embora ela olhasse pra Carya insistentemente. Hunna estava ansiosa de mãos dadas com Fagrir perto de Carya, quase sem respirar, tensa. Uma tela de vidro separava o grupo do local onde Seth, Eltar e outros magos estavam preparados para

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tirar Teira daquela joia gigante e tentar a receita de cura de Seth. O medo da rainha não se recuperar era muito grande. Apesar de Seth ter estabilizado ela, de aparentemente só precisar dar calma à ela, mesmo naquele estado a ferida dela não parecia retroceder, pelo contrário, a ferida só piorava. Lentamente, mas piorava. Seria preciso tirá-la dali e tentar a cura ou ela morreria, ali dentro, sem nem mesmo ter a chance de ver a filha e o marido uma última vez.

Os magos, liderados por Seth, formaram um semi-círculo, com Seth no meio e a enorme joia branca suspensa com Teira lá dentro, tão serena como se estivesse apenas dormindo. Seth ergueu o cetro com a mão direita, os outros magos posicionaram os cetros no chão, à frente deles, os segurando com as duas mãos e os olhos fechados. Seth fechou os olhos, respirou algumas vezes bem devagar e de repente os abriu. Seus olhos estavam branco luminosos, bem como a pedra em seu cetro. Ele desceu o braço, a base do cetro batendo no chão com firmeza. Uma luz clara emanou abaixo dos pés de cada mago, seguindo como feixes de luz que se centravam na base do cetro de Seth e se acumulava como um círculo gigante. Com a mão esquerda, Seth apontou para frente. O círculo se transformou na forma de uma seta. Seth apontou para frente e a flecha seguiu o caminho pelo chão, parando logo abaixo da joia gigante. Ele ergueu o braço esquerdo, a mão com o indicador apontando para cima, a flecha seguiu o caminho, se elevando no ar até atingir a pedra com um golpe forte. A joia pareceu absorver toda aquela luminosidade, ficando cada vez mais brilhante, a luz tomando todo o cômodo.

Eltar e a família e amigos de Teira colocaram uma mão na frente dos olhos para se proteger da claridade. O brilho diminuiu e a joia se transformou numa névoa branca com Teira sendo mantida no ar, descendo devagar, pela magia dos magos atrás de Seth que entoavam cânticos baixos e suaves, uma espécie de hipnose das nuvens. O brilho nos olhos de Seth sumiu, seguido pelos magos. Um deles foi até Teira rapidamente, a pegou no colo, ainda descendo no ar, e a colocou numa cama alta ali do lado. Eltar se aproximou e Seth pegou a poção que aguardava na mesa ao lado da cama. Seth deu a poção lilás para ela engolir, um dos magos apoiando sua cabeça um pouco mais alta para que ela não engasgasse. A ferida começou a se fechar, mas parou logo em seguida.

- Posso? – Eltar disse já do lado do irmão. Seth apenas acenou com a cabeça e Eltar colocou a mão centímetros acima da ferida de Teira que já estava enegrecida, começando o processo de necrose. O fluxo em espiral lenta dentro da pedra de sua pulseira girou mais e mais rápido, brilhando suavemente como um pequeno lago de fogo. Suas mãos brilharam com uma luz alaranjada e a ferida começou a clarear e se fechar, aumentando o poder da poção. A ferida fechou completamente e Eltar parou o encanto, ofegante.

Seth passou as mãos sobre Teira, sem tocá-la, sentindo a energia do corpo, com a testa franzida em pura concentração. Lordok, Hunna e Rádara praticamente nem

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respiravam do outro lado do vidro. Seth levantou a cabeça olhando pra eles e fez sinal pra que todos entrassem, os magos se afastando para ir descansar antes que desmaiassem pelo excesso de magia gasta. Eltar ia sair também, mas Seth sinalizou pra que ele ficasse.

- Porque isso aí tem que ficar? – Rodan perguntou.

- Porque ele ajudou e é justo que saiba o que vai acontecer. – Seth disse, calmo.

- Minha mãe está bem ne? – Rádara perguntou, a voz quase sumindo.

- Eu lamento, Rád. – Seth disse o mais calmo que pôde.

Rádara começou a chorar, Devon a abraçando silenciosamente.

- Maje... Tio... – Seth se voltou pra Lordok que estava na cabeceira da cama, acariciando a cabeça de Teira com um olhar de partir o coração. – Por fora a ferida se fechou, mas os danos internos são profundos demais, nem mesmo com ajuda de Eltar poderíamos restaurar os órgãos danificados. Eu posso colocar ela de volta...

- Não. – Lordok disse, firme, mas ainda sim calmo. – Eu não vou deixar minha amada Teira viver sem realmente viver. Isso não seria justo com ela. – Ele secou uma lágrima furtiva. – Ela...Ela merece o descanso, se assim Kallisti deseja.

Hunna abraçou Fagrir, incapaz de controlar o choro silencioso. Rodan tentou segurar a mão de Carya, mas ela estava rígida como uma pedra. Ele olhou pra ela confuso.

- Amor... – Rodan chamou baixo e Seth olhou pra eles. De repente os olhos do mago se arregalaram.

- Pelos anéis no céu... – Seth murmurou.

- Meu...leonino...fofo... – Teira abriu os olhos, atraindo a atenção de todos, menos Seth que se aproximou de Carya e colocou uma palma em sua barriga já protuberante.

- Oi, minha rainha... – Lordok disse, a tristeza em sua voz.

- Ei...venham aqui, suas choronas... – Teira chamou, estendendo as mãos levemente pra Hunna e Rádara. As duas se aproximaram e cada uma segurou uma mão, Lordok ainda na cabeceira. - ...Eu sei que vou morrer...

- Mãe, não fale... – Rádara começou.

- Está tudo bem, Rád. Você está segura e isso....valeu a pena... – Teira respirou com dificuldade. – Eu tive você....querido....e você me deu....nossa princesinha....e tenho minha amiga....minha irmã de coração....e meus sobrinhos....eu...sou feliz pelo que recebi....na vida...

Enquanto isso, Seth sussurrava algo entre Rodan e Carya, mas só Eltar prestava atenção neles.

- Mesmo sendo tão pequena.... – Seth dizia - ...pode funcionar...

- É arriscado? – Rodan perguntou.

- Sim. Se o gasto for grande demais... Na verdade é difícil dizer. Nunca vi uma criatura tão poderosa tão cedo...

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- Eu ajudo. – Eltar se aproximou, ganhando olhares desconfiados. – Olha, minha segurança aqui estará mais garantida se ela viver. Se existe uma chance, tenho que ajudar.

Só me diga quando parar, assim a energia dela não será tão gasta.

Depois de um tempo, eles se aproximaram de Teira.

- Pode ter um jeito. – Seth disse, inseguro.

- Do que está falando? – Lordok perguntou.

- Carya, ela e Eltar... – Seth começou.

- Carya tem as chamas, garoto, mas não o dom da cura. – Lordok disse.

- Carya é guardiã das chamas?! – Teira perguntou surpresa e sorriu. – Claro... O mito é real. Kallisti nos abençoou... Carya, lindinha...vem aqui.

Carya saiu de trás de Seth e se aproximou até a cabeceira.

- Deuses....Você está grávida... – Teira disse, com lágrimas de emoção.

- É uma menina. – Carya disse.

- E muito poderosa. – Seth completou. – Tão poderosa que seus dons já aparecem fortemente mesmo no ventre da mãe. É a criança, tio. Ela que tem o dom da cura. Eltar vai ajudar e assim podemos curar tia Teira, sem esgotar a criança.

- Não. – Teira disse. – Eu já vivi e fui feliz, meu docinho. Não posso arriscar essa preciosa vida...

- Mas ela quer. – Carya cortou. – Acredite, tia, é meio difícil não perceber o que essa pestinha quer.

- Eu também não quero colocar minha filha em risco, mas é impossível fazer as mulheres Tiger obedecer, majestade. Elas são muito teimosas. – Rodan disse.

- Oh...claro... – Teira disse, feliz por ver que a relação de Rodan e Carya ia tão bem.

Seth afastou todos, deixando só Carya e Seth no quarto com eles. Ele mandou Carya e Eltar darem as mãos e colocar a mão direita, uma sobre a outra, em cima da cicatriz da ferida de Teira. Os meio-irmãos relutaram em dar as mãos, afinal os dois se odiavam, mas obedeceram. A pedra de Eltar brilhou novamente e, segundos depois, sem precisar de nenhuma concentração ou intenção de Carya, sua mão emanou um brilho tão intenso que foi visto até do lado de fora do palácio, saindo por todas as frestas, janelas e portas. Em sua mente Carya podia ouvir aquela voz infantil cantarolando uma canção que Vó cantara pra ela várias vezes nas últimas semanas. Era uma cantiga de roda que irritava Carya, mas a velha dizia estar cantando pra criança e não pra mãe. Carya, e até mesmo Eltar, sentiu a euforia da criança que carregava, emanando naquela magia, como se ela estivesse brincando e muito feliz. Os órgãos internos de Teira começaram a se resconstituir. As manchas enegrecidas sumiam dando lugar à um vermelho saudável, as perfurações causadas pela necrose sumiam deixando os ógãos inteiros novamente. Seth sinalizou para que parassem, pois os dois já tinham gasto muita energia. Eltar parou, voltando ao normal

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e caindo no chão desacordado com a fadiga. Mas Carya, ou melhor, sua filha, não parava. A menina estava realmente se divertindo com aquilo e não tinha consciência dos perigos, afinal ela era só uma criança que nem tinha nascido ainda. Carya tentou parar, mas era como tentar controlar a mente e o corpo de outro ser vivo só com a própria mente.

Seth percebeu o perigo. Ele tentou acalmar a euforia da criança, mas a menina estava achando aquilo tudo divertido, como se a ordem dele fosse uma brincadeira, algo pra desafiar. Sem pensar muito no que aconteceria, Rodan invadiu o quarto, colocou a mão na barriga de Carya e disse bem calmo em seu ouvido: - Rania, o papai quer falar com a mamãe. Você deixa? Só um pouquinho?

A criança pareceu ouvir e se acalmar. Carya retomou o controle de seu corpo e sua mente. A luz diminuiu e apagou do nada. Carya caiu pra trás, apoiada no peito forte do marido.

- Como fez isso? – Seth perguntou.

- Fácil. Carya é desobediente por natureza. Nunca obedece algo que mando. Nossa filha parece ser igual. Só....sabe...não mandei. – Rodan disse, pegando Carya no colo.

Rodan não era um mago, o máximo de magia que ele tinha era uma intuição muito boa, mas, naquele momento ele podia jurar que a filha dormia no ventre da mãe tão profundamente quanto ela. Minhas duas garotas lindas e teimosas. Vocês vão me deixar louco. Ele pensou com um sorriso bobo enquanto levava a mulher no colo até a casa deles.

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Decisões

- Muito bom! – Carya disse quase num gritinho histérico.

- Carya! – Hunna chamou sua atenção.

- Qual o problema? A menina está certa. Esse moleque nojentinho tem mais que ficar preso mesmo. Ta certa, querida. – Vó disse, mesmo sob o olhar feio de Hunna.

- Não é certo comemorar o sofrimento dos outros, Vó! Pare de ensinar coisas erradas pra minha bebê! – Hunna reclamou.

- Que bebê, menina boba e inocente?! Ela é uma mulher que já deu muito na vida e tem um machão delicinha com ela! Ela vai até ser mãe! – Vó respondeu.

- Não dá pra conversar com essa mulher! Muito deselegante. Me recuso a continuar ouvindo isso. Carya, quero você longe dela! – Hunna disse.

- Mãe... – Seth tentou acalmar as duas.

- Você não quer ninguém longe de ninguém! Eu fico onde eu quiser, fresquinha! – Vó gritou. – Carya, fala pra ela que eu posso ficar. Fala que eu quero ver ela de cara no chão.

- Vó... – Carya tentou dizer algo pra acalmar as duas.

- Você não conhece minha filha. Eu conheço. Ela é MINHA filha. Carya fala pra ela que você concorda comigo, pra essa mulherzinha sem classe aprender uma lição! – Hunna gritou.

- Senhora, por favor, parem de brigar. – Lordok interveio.

- Quem aqui está brigando? – Vó perguntou espantada.

- Lordok, você está muito sensível, querido. Ninguém aqui está brigando. – Hunna disse espelhando o espanto da outra mulher. – Você está brigando, Vó, querida?

- Eu não, florzinha. E você? – Hunna perguntou.

- Eu também não. – Vó respondeu.

- Deuses... Eu vou acabar enlouquecendo com essas duas. – Lordok disse com a mão na testa. – Fagrir, me ajude aqui, por tudo que é mais sagrado.

- Ignore, meu amigo. Só, ignore, ou você vai mesmo enlouquecer. – Fagrir respondeu.

- Então, voltando ao assunto, você vai mesmo dar abrigo ao príncipe Tiger, mas... –

Rodan controlou uma risada - ....ele vai ficar na prisão?

- Eu disse que o protegeria de seu pai e lhe daria abrigo. Não descumpri minha palavra.

Vou fazer isso...deixando ele preso. – Lordok disse disfarçando o sorriso.

- Tio... – Seth disse – Eu tenho que admitir... O senhor foi muito sábio, mas não posso dizer que estou feliz. Apesar de tudo, ele é nosso irmão...

- Meio-irmão. – Carya corrigiu.

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- Nosso irmão... – Seth ignorou a correção. - ...e me tratou muito bem enquanto estive no palácio dele.

- Quer dizer, preso antes dele torturar você e participar daquela coisa grotesca com sua namorada e seu filho, não é? – Carya disse.

- Carya! – Hunna chamou.

- Mãe, tá na hora dele acordar pra vida. Aquela gente matou a mulher e o filho dele!

Mentiram pra ele! Tentaram roubar a magia dele até matá-lo! – Carya se voltou pro irmão.

- Do que mais você precisa pra perceber que nem todo mundo é bonzinho?

- Eltar pode não parecer, Carya, mas tem um bom coração... – Seth começou.

- Ah, me polpe! – Carya perdeu a paciência.

- Seth, meu rapaz, eu sempre admirei sua bondade, filho, mas sua irmã tem razão.

Qualquer um que se alie ao seu p...ao rei Tiger não pode ser bom. Qualquer dúvida sobre essa “bondade” do seu meio-irmão deixou de existir quando ele entregou sua mulher grávida pro monstro que senta no trono Tiger. – Lordok disse, tentando ser gentil o máximo que podia.

- Mas... – Seth tentou dizer.

- Viu o que você fez? – Vó disse, dando um tapa leve na nuca de Hunna.

- AI! – Hunna gritou. – O que foi que eu fiz, sua velha maluca?

- Você não educou o rapazinho direito! Ficou com essa bobagem de “seja bonzinho” –

Vó fez uma imitação ridícula de Hunna – e agora ele nem sabe dizer quando tem um pilantra na frente dele! Garota fresca que não sabe nem educar um menino!

- Você educou um maluco viciado em trabalho! – Hunna respondeu.

- Você criou um bobo! – Vó gritou.

- Você criou um...um... AAAARGH! Velha insuportável! – Hunna disse e saiu irritada.

- Você não sabe nem discutir, sua tola boboca! – Vó gritou indo atrás dela, enquanto discutiam.

- Não é melhor alguém ir atrás dela? – Lordok perguntou.

- Não. – Fagrir disse, dando de ombros, indiferente. – Elas se entendem.

- Não importa o que Seth diga, tio. – Carya disse olhando feio pro irmão. – Eu não me sentiria segura com aquele lunático andando pelas ruas.

- Concordo. – Rodan disse olhando pro Seth. – Desculpe, garoto, mas sua irmã tem razão. Eltar é traiçoeiro, arma até contra o pai e os poucos aliados que tem. A decisão de Lordok foi a mais sábia.

- Eu só acho que tratar mal não vai lhe ensinar nada de bom. É preciso ser gentil pra receber gentileza. – Seth disse.

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- Não se preocupe, afilhado. A cela onde coloquei o príncipe da podridão é tão luxuosa e bem mobiliada quanto qualquer quarto no palácio do pai louco dele. – Lordok disse, dando um tapinha no ombro de Seth.

~o~

- Você precisa me tirar daqui! Eu não sou um marginal. – Eltar disse, rangendo os dentes.

- Eu não posso fazer nada. – Rádara respondeu. – Meu pai disse que vai manter você aqui pra sua segurança...

- Segurança uma merda! Ele quer rir de mim, aproveitar que tem um Tiger em seu poder pra humilhá-lo! Aquele merdinha...

- Olha como fala do meu pai! Pelo menos ele não tortura e mata como um louco qualquer um!

- Aaaawn...Eu magoei os sentimentos da filhinha do papai? – Eltar zombou.

- Babaca! Você devia agradecer por estar numa prisão que é limpa e tão bem mobiliada que parece um quarto de hóspedes! – Rádara respondeu.

Eltar se aproximou das grades num pulo, furioso. – Escuta aqui, sua princesinha de quinta categoria.... É melhor você me tirar daqui logo antes que eu resolva contar pro seu papaizinho como exatamente Seth foi levado pro meu palácio.

- Você não se atreveria...

- Não? – Eltar deu um sorriso sádico. – Paque pra ver, princesinha.

Rádara virou as costas e saiu irritada antes que fizesse uma besteira. Quando chegou no corredor onde ficavam seus aposentos, Devon estava lá, encostado na parede, de braços cruzados.

- Não vou perguntar onde você estava. – Devon disse, olhando em seus olhos. – Mas imagino. Só... Tenha cuidado. Se seu pai souber quem você anda visitando, vai somar dois mais dois e sabemos no que vai resultar.

- Você não é ninguém pra me dar ordens, idiota.

- O idiota aqui é seu noivo, caso você tenha esquecido, querida. E não estou te dando ordens, estou te dando um conselho.

- Você está se achando, não é? Só porque pensa que vamos nos casar. – Rádara disse irritada com o assunto do casamento e as ameaças de Eltar. – Mas nunca me casaria com você, um zé ninguém, um mero espiãozinho imbecil que mal consegue perceber mentiras óbvias, um felino que não é nem mesmo um leonino, que não tem descendência nobre como eu! NUNCA! Eu prefiro morrer a ser esposa de um ninguém!

Devon ouvia à tudo, a mágoa brilhando em seus olhos, mas o rosto impassível como pedra. Parecia que seu coração tinha se partido em mil pedaços. Grato por seus anos de

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treinamento árduo, ele disse com a voz inacreditavelmente controlada: - Você devia dizer à seu pai que não quer se casar comigo. Ah, espera. Se fizer isso ele vai confirmar o que já sabe sobre você, sobre o que nós fizemos e duvido que ele seja tão compreensivo desta vez. O que? Sem planos, sem armações? Então, minha cara princesa, parece que você vai mesmo ter que casar com esse ninguém aqui amanhã.

Rádara abriu a boca pra responder, mas Devon já estava indo embora. Ele caminhou pelo palácio, quase sem ver para onde ia, seu peito tão pesado que parecia que ele ia parar de respirar a qualquer segundo. Ele sempre soube que Rádara não morria de amores por ele, mas sabia que ela tinha um interesse sexual nele, algo que ela quase não percebia por causa daquela obcessão pela Carya. Ele sabia que podia conquistar o amor dela com o tempo. Mas nunca tinha imaginado que ela sentisse toda aquela repulsa por ele. Ele já tinha sido rejeitado por outras mulheres, não muitas claro, mas tinha. Só que nenhuma expressara aquele nojo, como se ele não fosse mais do que um verme nojento em suas solas.

- Devon? – Teira chamou.

Devon quase deu um pulo de susto. Ele nem percebera que tinha caminhado até o jardim da rainha. – Maj...Senh...

- Ei, sente-se aqui. – Teira bateu no sofá ao lado dela. – Eu já disse isso semana passada, mas, não me canso de repetir. Você será um bom marido pra minha filha.

- Não tenho mais tanta certeza. – Devon deixou escapar, não se importando com as consequências.

- Oh. Entendo. Problemas com minha filha. – Teira disse gentilmente. – Rádara não é fácil, mas é uma boa menina. Só se deixou levar por emoções confusas. Não leve à sério as bobagens que provavelmente ela disse, querido. Você a ama e isso é evidente até no ar que você respira. Sei que ela não é indiferente à você e confia em você. A confiança é o principal em uma relação e vocês têm isso.

- Talvez não seja suficiente...

- Será. Rád só precisa de um tempo, de uma opção diferente que não envolva Carya. –

Teira disse e pegou a mão de Devon. – Olhe, querido, sei que as coisas são incertas agora, mas estou dando um salto de fé. Não creio que não se amem, afinal você a pediu em casamento e ela aceitou, não foi? A situação entre vocês é completamente irremediável?

Você não quer mais se casar com minha filha?

- Quero. Na verdade, acho que não quero mais nada além disso. Acho que só precisamos de tempo. – Devon disse, não querendo ser o responsável pelo fim do plano que Rádara iniciara. – Deve ser nervosismo por causa do casamento.

- Deve ser. – Teira disse. – Seja paciente, querido. E saiba que se precisar de conselhos, estou aqui.

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Eu vou me casar com ela, quer ela goste, quer não. Vamos ver quem vence essa batalha, alteza. Devon pensou, repentinamente decidido.

~o~

Rádara passou semanas tentando criar um plano, tentando até mesmo armar pra que Devon fosse pego abusando dela ou a agredindo, e, assim se livra do casamento. Mas Devon era um perfeito cavalheiro, nunca nem mesmo levantava a voz pra ela, embora ela fizesse de tudo pra provocar a ira dele, nunca tocava nela nem com um pouco de força. Era frustrante! Pior era a animação de sua mãe com seu casamento. Teira precisava ficar sentada boa parte do tempo e fazer o mínimo de esforço, mas vivia empolgada com cada detalhe da festa, as roupas, a ala do palácio organizada exclusivamente para o casal, falando do quanto Devon era um felino educado, gentil, bonito, charmoso, cavalheiro, inteligente... Às vezes ela só queria gritar pra que a mãe se casasse com ele já que achava ele tão perfeito! Mas também não queria estragar a felicidade da mãe, não depois de tudo.

E Lordok... Bem, o rei parecia ter acreditado em sua mentira, e tão feliz com o casamento que Rádara se sentia aliviada e sufocada ao mesmo tempo.

Ela não voltara pra ver Eltar, mas sabia que não poderia adiar por muito tempo. Por enquanto a desculpa de estar ocupada com o casamento ajudaria muito. Mas casar com Devon? Não. Isso não dava pra aceitar. Ela tinha que se safar daquilo, mas como? Como fazer isso sem se dedurar? Será que o pai ainda duvidaria de sua mentira sobre o pedido de noivado se ela se recusasse? Ela não tinha coragem de arriscar. Assim, o dia do casamento chegou e Rádara, com um belo vestido verde claro, típica cor das noivas leoninas, ainda se olhava no espelho pensando desesperadamente em uma forma de fugir disso.

Likastía não tinha cerimônias de casamento. Os noivos apenas entregavam o símbolo escolhido por eles para um mago que abençoava-os com magia de ligação, devolvia aos noivos e um entregava seu símbolo pro outro. Ambos usariam isso pelo resto de suas vidas.

Depois os noivos encontravam seus amigos e conhecidos num banquete festivo que poderia durar horas, dias e, às vezes, até uma semana. Se Rád fosse se livrar desse casamento tinha que ser antes da bênção do mago. E ela buscou na mente por uma fuga. E

como ela buscou. Devon estava lindo em uma roupa de gala militar e um quepe pretos, cheio de medalhas e condecorações no peito, uma espada prateada na cintura, luvas negras nas mãos e a chave presa por uma corrente ao cinto. Como mandava a tradição, ele devia esperar Rádara na porta do templo e ambos seguiriam o caminho sozinhos, de mãos dadas até o mago. Ele sabia que ela não fugiria. Rádara não tinha coragem pra viver fugindo sem o status de princesa. Na hora marcada, ela apareceu na frente do templo com Seth ao seu lado.

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Devon sentiu como se a raiva e a humilhação tivessem sumido no ar quando a viu tão bonita, naquele vestido verde claro, decotado e esvoaçante. Haviam borboletas rosas feitas de um tecido leve, presas ao vestido nas bordas do decote.

Teira. Devon pensou com um sorriso. Ela se lembrou de como ele amava borboletas na infância e tinha vergonha de contar isso e todos pensarem que ele era menos macho por isso.

Enquanto Rádara tinha um sorriso falso, mal disfarçado, Devon tinha um sorriso tão grande que poderia ser visto até das nuvens. Seth deixou Rádara com Devon e ambos seguiram o caminho de mãos dadas. Cada passo parecia mais difícil que o anterior, mas Rádara continuou, sua mente pensando nas fugas mais absurdas e as descartando imediatamente.

- Podemos desistir dessa farsa. Você pode pensar em alguma mentira. – Rádara sussurrou.

- Tem razão. Eu posso. Mas não vou. – Devon disse ainda sorridente.

- Porque? – Rádara estava furiosa por saber que ele tinha alguma ideia pra salvar ela daquele castigo, mas não dizia.

- Porque eu queria mesmo me casar com você.

Eles chegaram na frente do mago e o feitiço da bênção do símbolo foi feito. Devon colocou a corrente com sua chave no pescoço de Rádara e ela colocou a dela no pescoço dele se sentindo como se tivesse morrido naquele segundo. Os dois saíram e do lado de fora seus amigos e parentes aguardavam gritando felicitações diversas. O casal sorria como se fossem os mais felizes do universo.

Rádara sussurrou, ainda mantendo o sorriso: - Eu nunca mais vou poder ter a Carya porque agora estou amaldiçoada a ficar com você. Mas, garanto, Devon, você vai lamentar por sua decisão de não me ajudado a fugir desse maldito casamento. Eu juro.

Devon sentiu a mágoa voltar a florescer, mas sustentou o sorriso e focou em apreciar o momento. Afinal, ele se casara com Rádara, com quem ele amava.

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Os parentes de Lino

No final do primeiro dia de festas, Devon e Rádara saíram para seus aposentos, enquanto a festa continuava (e continuaria por mais dois dias) para consumar o casamento.

Durante a festa inteira, o casal parecia o mais feliz, mais apaixonado, mas quando a porta do quarto se fechou a história foi outra. Rádara pegou uma faca de carne que havia roubado da mesa do banquete e escondido na meia, na altura da coxa.

Apontando a faca pra Devon ela disse ferozmente: - É melhor você não encostar em mim! Se tentar qualquer coisa eu vou começar a gritar e dizer que você foi violento! Ou eu corto sua garganta ou me corto toda pra todo mundo pensar que foi você!

- Eu nunca tocaria em você sem sua vontade. – Devon disse sério e cada vez mais magoado com a esposa.

- É bom mesmo! Vou pensar em uma forma de me livrar desse casamento com um ninguém como você, mas até lá, nunca, escute bem seu imbecil, NUNCA vou ser sua mulher! E é melhor você dormir no chão.

- Não acha que os servos vão estranhar e comentar por aí que o casal real dorme em locais diferentes, querida? – Devon disse ironicamente. – Imagine isso chegando aos ouvidos do rei... O que ele pensaria sobre a história de estarmos apaixonadamente comemorando nosso noivado quando Carya sumiu?

- Muito bem... – Rádara disse, ainda apontando a faca pra ele. – Você dorme na cama, afinal um pobre que nem você nunca deve ter tido uma cama luxuosa como esta e não vou negar esse comodismo pra você. Mas não me toque. Você não sabe do que sou capaz, Devon, mas vai descobrir se ousar me tocar!

- Na verdade, acho que sei sim. – Devon disse, agora com um tom bem frio.

- Toque em mim e vou fazer um inferno até você ser executado por abuso sexual. Fui clara?

- Clara como veneno de escorpião. – Devon disse e começou a se despir sem dignar mais nenhuma atenção à Rádara. Ela se arrumou pra dormir e ambos deitaram, um de costas pro outro, Rádara ainda segurando a faca embaixo dos cobertores e chorando baixinho de raiva. Devon ouviu e ficou tentado a se virar e confortá-la com um abraço, mas ela não merecia.

Os dois dias de festa passaram sem nenhuma mudança, até a noite do terceiro dia quando guardas dos pontos de observação na fronteira vieram correndo até o rei. Um deles se aproximou e disse algo baixinho no ouvido de Lordok. O rei apertou o punho na taça com tanta força que poderia tê-la quebrado, mas, além disso, não deu nenhuma demonstração de que algo estava errado. Ele pediu licença, todo sorridente, e se afastou chamando

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Rodan, Fagrir e Seth com um aceno. O grupo seguiu até o escritório pessoal do rei. Quando Rodan fechou a porta Lordok começou a andar de um lado pro outro, os pêlos todos eriçados, murmurando e passando a mão nervosamente pela juba.

- Majestade? – Fagrir chamou.

- Aquele...aquele... – Lordok disse e começou a rugir, mas se conteve pra não atrair atenção. – Quem em toda Likastía não respeita a Lei da Trégua da Vida? Quem atacaria um lugar em festa de casamento???

- Tigrésius. – Rodan respondeu calmamente.

- Exatamente! Aquele...aquela coisa, aquele diabo disfarçado de Tiger está vindo com um exército enorme pra capital!...NO MEIO DE UMA FESTA DE CASAMENTO! – Lordok mal respirava de tanta raiva.

- É possível que ele esteja vindo atrás de Eltar? – Seth perguntou.

- Não só possível, mas também provável. – Fagrir respondeu. – Se o rapaz falou a verdade, então o rei Tiger o vê agora como um inimigo abrigado sob o teto de seu pior rival.

Se o que ele disse foi mentira, então o rei está vindo atrás de seu herdeiro aprisionado por seu rival.

- E essa pode ter sido a grande jogada. – Rodan comentou. – Eltar vem até nós, depois mente em público dizendo que foi capturado e preso e que Tigrésius atacou a capital leonina para resgatar e proteger seu filho.

- É possível. O príncipe Tiger é conhecido por suas armações. – Lordok disse. – Não queria fazer isso, mas terei que acabar com a festa de casamento de minha filha horas antes do planejado. Seth prepare os magos pra um possível ataque e organize os curandeiros nos setores médicos para atender os feridos. Fagrir cuide dos civis. Todos devem estar em segurança em suas casas, prontos para qualquer coisa. Rodan, meu amigo, prepare os soldados, exceto Carya. Quero ela fora disso.

- Senhor, quer mesmo tirar minha irmã de uma batalha? – Seth perguntou. – Acho que o senhor conhece bem minha irmã...

- Sim, filho, sei que Carya vai resistir à isso, mas ela está grávida. Faltam pouco mais de 15 dias pro nascimento e não vou arriscar. – Lordok respondeu.

- Concordo. – Rodan disse.

- Acho que vocês não entenderam. – Fagrir disse. – Conheço minha filha. Ela vai lutar.

A grande questão é se vai ser com ou sem a permissão de vocês.

- Ela vai ficar em casa nem que eu precise trancá-la lá dentro. – Rodan disse. – Ela vai me obedecer pelo bem da nossa filha de qualquer jeito.

- Boa sorte. – Seth e Fagrir disseram ao mesmo tempo.

~o~

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Lordok fez um anúncio rápido, acalmando e informando à todos sobre a ameaça. Logo toda a cidade fervilhava com preparativos de barricadas e armadilhas pré-produzidas e jogadas nas ruas. Todos os civis que não podiam ou não queriam lutar, foram para suas casas. Rodan organizava os exércitos quando viu Carya se aproximando com sua roupa de combate. Apesar de sua barriga não ter crescido muito, a roupa ainda ficava um pouco apertada demais, mas ela não se importava. Rodan olhou pra esposa se aproximando, suspirou, deu ordens ao terceiro na linha de comando, e foi até ela se preparando mentalmente pra conversa difícil que teria. Os dois seguiram para casa onde ele decidira conversar. Do outro lado da rua, Vó vinha com sua bengala de madeira escura em uma mão e um machado de amaciar carne na outra, enquanto Hunna vinha atrás dela aparentemente discutindo. Lordok, curioso, se aproximou.

- Vó, Hunna. Algum problema, senhoras?

- Sim. Essa louca que enlouqueceu de vez! – Hunna quase gritou.

- Se eu sou louca como posso enlouquecer? Eu já não teria enlouquecido pra ser uma louca? Garota besta. – Vó disse e se virou pro rei. – Eu vou pra lá, juntos daqueles felinos bonitões ali.

- O exército? Mas porque? – Lordok perguntou.

- Pra trepar com todos eles. – Vó disse impaciente com a pergunta. – Eu vou lutar ne, menino cabeludo! Cada pergunta estúpida que preciso ouvir. Deve ser porque você anda muito com essa menina chata aqui.

- Chata é você, sua velha surtada! – Hunna disse. – Você quase não fica em pé com essa bengala e vai lutar?!

- Ainda tenho dentes fortes e um braço no lugar! Se qualquer inimigo chegar perto eu dou uma marretada no saco dele! – Vó disse chacoalhando o machadinho.

- Ai minha santa Kallisti, dai-me paciência. – Hunna revirou os olhos. – Eles vão te comer viva!

- Ótimo. Adoro quando os bonitões me comem. – Vó zombou.

- Tenha decência, sua velha maluca!

- Senhoras, senhoras, por favor. – Lordok chamou. – Vó eu aprecio muito sua ajuda, mas já tenho soldados suficientes em campo. Vou precisar de seus serviços em outro posto mais importante.

- É só falar, bonitão cabeludo. – Vó disse e piscou pro rei enquanto Hunna revirava os olhos.

- Preciso que fique de olho em Carya e em sua amiga Hunna. Proteja as duas enquanto a batalha durar. Sabemos que Tigrésius – Lordok disse, cuspiu no chão e pisou em cima, como virou hábito quando qualquer um pronunciava o nome do rei Tiger em voz alta. -

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pode tentar se vingar de sua amiga e dos gêmeos. Eu cuidarei de Seth em campo e você cuida das duas por mim aqui. Combinado?

- Combinado, bonitão. – Vó disse.

- Vamos ficar com Teira e Rádara no palácio. – Hunna disse. – Pode deixar que cuido pra essa velha sem vergonha não sair.

- Você ficou surda? Eu que vou proteger vocês. O gostosão cabeludo aqui que falou. –

Vó disse, ambas já se virando pra sair.

- Ah, e Lordok... – Hunna chamou.

- Sim?

- Essa indecente não é minha amiga. – Hunna disse emburrada.

- Isso mesmo, gostosão. Essa boboca não é minha amiga. – Vó disse e as duas saíram de braços dados, como boas amigas, reclamando porque o rei dissera que elas eram amigas.

Lordok voltou ao trabalho, rindo da relação maluca entre as duas felinas. Minutos mais tarde Rodan se juntou ao grupo, suando como nunca. Os dois se olharam por meio segundo e o rei entendeu que Rodan tinha conseguido manter a esposa em casa. Pouco depois pedras flamejantes voavam e caíam nas ruas desertas. Depois da primeira leva de bombas, uma voz estridente ecoou, vinda da subida leste da montanha que dava pra entrada principal da cidade de Jubay, capital das Montanhas Amarelas. Ao longe via-se o exército numeroso em fila estreita, mas muito longa. À frente, o rei Tiger com seis guardas à sua frente gritava numa espécie de megafone de chifre de touro negro.

- Lordok, seu corno desgraçado! – Tigrésius disse e sua voz soou como a de um louco, mais que o habitual. – Devolva aquele traidor do Eltar, a cria bastarda dele e o mago de merda! Traga os três aqui, vivos ou mortos, e irei embora sem ferir ninguém nessa merda de lugar congelado! De preferência vivos pra que eu possa me divertir um pouco.

Lordok usou seu megafone de chifre de cabra-das-águas e respondeu: - Vejo que você descobriu que seu filho e seu braço direito não são tão leais à você, rei Tiger. Mas não os vejo a meses, então sugiro que você vá jogar seus brinquedinhos de guerra em outro lugar se não quiser enfrentar a fúria leonina.

- Não brinque comigo, leonino de merda! Sei que eles estão aí! Vai proteger aqueles merdinhas ao invés de salvar seu povo? Que rei bosta Jubay tem viu!

Lordok até pensou em entregar Eltar, mas nada garantia que Tigrésius fosse cumprir sua palavra. Além do mais, ele prometera proteger o rapaz do pai enquanto estivesse em seu reino e quebrar uma promessa em Likastía era pior do que matar um bebê.

~o~

Enquanto isso, na prisão leonina...

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- Oi, alteza. – Rádara disse com toda a educação que tinha.

- Até que fim, sua piranha traidora! – Eltar quase pulou na grade, fazendo Rádara dar um passo pra trás.

- Eu te daria uma resposta à altura, mas... Você não tem a mesma classe que eu.

Então, vim apenas trazer essa coisa. – Rádara sinalizou e uma criatura felina, sem pêlos, de pele vermelha, com inúmeras cicatrizes saiu das sombras. – Esse...rapaz...estava me espionando da varanda do meu quarto, indelicadamente. E disse que é seu aliado e veio te salvar do seu pai imbecil que está armando uma guerra lá fora.

- Lino! Finalmente, idiota! Lordok me contou sobre o ataque Tiger. Onde diabos vocês estava? E o garoto? – Eltar perguntou. Rádara saiu, subiu as escadas e ficou lá em cima vigiando.

- O garoto está bem. Mas, temos alguns problemas. – Lino disse. – Leviatã descobriu tudo. Sobre mim e sobre o garoto.

- Eu falei pra você não aparecer na frente dele, idiota! – Eltar gritou.

- Achou mesmo que ele iria acreditar que a desculpa de ter um filho era só uma história pra amolecer o coração do velho rei leonino? Faça-me o favor ne.

- Se você não tivesse fingido ser homem eu não teria tido vontade de trepar com você, não teria descoberto e ficado fulo a ponto de pegar você na raiva mesmo!

- Se você não tivesse me drogado pra abusar de mim durante o sono eu poderia ter te contado quem eu era. – Lino respondeu. – Achei que já tínhamos nos entendido sobre isso.

Não reclame, Eltar. Agora você tem um herdeiro com sangue real tanto meu quanto seu, um nobre, e eu finalmente terei um filho no trono Tiger. – Lino disse já abrindo a cela com a chave que Rádara roubara do guarda.

- Vamos logo. Não confio em Leviatã com uma criança.

- Kursk só tem um ano e meio, Eltar. É jovem demais até pro maníaco Leviatã. E, por mais incrível que pareça, o velho se preocupa com aquele chorão mais do que eu e você juntos. Vamos pelo jardim.

- Quer aproveitar a chance pra se acertar com ela, não é? – Eltar perguntou, um sorriso maquiavélico no rosto.

- Você não aproveitaria? – Lino disse sorrindo.

Rádara mostrou o caminho para os dois e Lino a amarrou na cadeira do quarto, a amordaçou e levou a chave embora pra parecer que havia ameaçado e prendido a princesa.

Carya a essa hora já tinha fugido do quarto onde Rodan a trancara e escalava a parede do lado de fora, seis andares acima de um pequeno jardim com um lago cheio de flores e patos. Ela iria lutar de qualquer jeito. Lá embaixo ouviu passos e prendeu a respiração.

Qualquer um que olhasse pra cima a veria. Não havia nada pra se esconder e estava ainda longe da varanda do primeiro andar, não dava nem pra pular na varanda e se esconder. Lá

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embaixo, Hunna estava estressada com a relativa proximidade de Tigrésius, seu pior pesadelo, se afastara das mulheres e fora pra cozinha fazer um chá pra todas. Nem as loucuras de Vó, contando seus inúmeros casos picantes pra Teira, a acalmavam. Ela ouviu vozes sussurradas do lado de fora da cozinha, pegou uma faca de cerra e saiu trêmula.

Aquele era o lado oposto à área onde os exércitos estavam, bem longe na verdade. Mas ela estava com medo demais, temendo demais por suas amigas, sua filha, sua neta e sua afilhada. Se algum espião Tiger estivesse ali pra ferí-las ela o mataria, mesmo que morresse junto.

Hunna abriu a porta silenciosamente, tremendo e rezando. Tudo vazio. Ela suspirou de alívio, mas o suspiro foi interrompido quando uma mão Tiger tampou sua boca e a puxou pra fora. Hunna se debateu, a faca caiu e ela foi levada pra longe da porta ainda aberta. O

Tiger que a segurava por trás, tampando sua boca, a soltou e, quando ela esboçou um grito, ele lhe deu um soco no rosto a fazendo cair no chão.

- Se der um pio eu entro e mato todo mundo. – Eltar sussurrou.

O outro felino estava perto da porta se abaixando pra pegar a faca que Hunna deixara cair. Hunna o viu de costas e imaginou que fosse o tal Lino porque ninguém mais devia ter aquela pele esquisita, sem pêlos, vermelha... Lino se levantou, rindo com a faca na mão.

- Deuses acima! Que estrupício! Ela ia nos atacar com uma faca de cortar pão! – Lino riu e se virou pra Eltar, mostrando a faca.

O príncipe riu e Hunna se perguntou de onde conhecia aquele rosto e aquela voz estranha e deformada. Lino se aproximou rindo com a faca na mão.

- Deuses... Você sempre foi fraca e ridícula. – Lino disse, se abaixando um pouco pra ficar cara a cara com Hunna.

Os olhos de Hunna se arregalaram quando ela percebeu quem estava na frente dela.

- Mã...mãe? – Hunna disse quase num mumúrio, se perguntando se enlouquecera de vez.

Lino sorriu como um predador. – Oi, puta ingrata. Saudades?

- Mas...mas...vovocê está....morta...

- Estou mais viva do que você gostaria, burra. Sempre tão crédula quanto o corno do seu pai. Você nem mesmo se preocupou em voltar pra me resgatar enquanto eu passava anos vivendo todo tipo de merda com seu ex maridinho, não é? Não... Claro que não.

Aposto que você é quem mais comemora aquele feriado tosco que seu ex criou pela minha falsa morte. Você devia ser minha ponte pro trono Tiger, mas não passou de um obstáculo, uma desgraça a vida toda, sempre atrapalhando meus planos!

Hunna estava muda e imóvel. Eltar nem precisava segurar ela. De lá de cima, Carya só conseguia ouvir leves sussurros e ainda achava que eram os guardas de Lordok que estavam fazendo rondas protegendo o palácio.

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- O que? Nada? Nenhum “mamãe me perdoe por ter sido a pior merda que aconteceu na sua vida”? Tanto faz. Eu não preciso mais de você. Eu terei minha vingança e, de bônus, ainda vou ter um filho no trono Tiger. Um que não vai ser um merda fraco igual a você e que vai reconhecer minha nobreza. Um filho dele. – Lino, quer dizer, Ilena, disse apontando para Eltar. Hunna olhou entre eles, chocada. – É. Isso mesmo, estúpida, mongoloide. O filho do príncipe Tiger, que nós sabemos que será rei em pouco tempo, é meu filho com ele. Vou matar você e, assim que sua filha nojenta cumprir a parte dela, nós a mataremos também.

Seth, bem, aquele molóide é o mais fácil de abater. Eu nunca mais mancharei meu nome com essa descendência podre que você é.

- Vamos logo. – Eltar disse. – Se você gritar, coisinha sem graça, eu vou lá dentro matar aquelas felinas nojentas. Entendeu?

Hunna acenou afirmativamente e Eltar a puxou pela calda, levando-a até o lago. Lino-Ilena seguiu os dois sorrindo com a dor de Hunna que lutava pra não gritar, lágrimas brotando em seus olhos. Eltar a empurrou no lago e forçou sua cabeça pra impedí-la de sair da água, a afogando. De lá de cima, Carya congelou no lugar vendo Lino e Eltar levando sua mãe pro lago que não era muito fundo, mas, dobrando as pernas, podia cobrir um felino de estatura mediana. Quando Eltar forçou a cabeça de sua mãe lá embaixo, ela nem pensou.

Desceu o máximo que pôde escalando e, perdendo a paciência, pulou no chão e convocou as chamas de Éris abaixo de seus pés, para impedir a queda. Eltar e Lino-Ilena se viraram sentindo o calor e a luz do fogo.

- Diabos! – Lino-Ilena gritou. – Deixa essa vaca, Eltar. Eu cuido dessa mongoloide outra hora.

Eltar soltou Hunna imediatamente e correu com Lino pouco atrás, ambos mais preocupados com Tigrésius que com certeza sentira o poder das chamas sendo convocado dentro do território leonino. Hunna saiu da água tossindo, suas lágrimas se misturando com a água gelada do lago, tremendo. Não era época de congelamento nas montanhas, mas ficar molhado à noite nas Montanhas Amarelas era sempre um risco de morte por hipotermia. Carya, rugindo, lançou suas chamas nos dois felinos que corriam longe. As chamas passaram perto, mas eles conseguiram fugir, pular o muro e sumir na noite.

Preocupada com a mãe, Carya voltou, os guardas já se aproximando correndo. Ela usou seu poder pra aquecer a mãe que tremia e balbuciava coisas sem sentido. Carya a levou pra dentro onde Teira e Vó estavam assustadas com o movimento lá fora, sem entender o que acontecia. Quando viram o estado de Hunna, se aproximaram preocupadas.

- Hunna, querida! O que aconteceu? – Teira perguntou.

- Foram os Tigers? Fala onde eles estão que vou dar uma coça nesse moleques! – Vó disse irritada.

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- Eltar e Lino. Ambos estava tentando matá-la. – Carya disse. – Vó, por favor, traga algo quente para ela beber. Mãe, reaja. A senhora está bem, só está em choque.

- Minha mãe. Era minha mãe. – Hunna murmurou olhando pra Teira com lágrimas brotando dos olhos.

- Ilena? – Teira disse. – Você teve alguma visão com ela quando pensou que morreria?

É normal ter visões nesses momentos, querida. Geralmente é porque...

- Não, Teira! Me escuta! – Hunna levantou gritando histericamente. – Lino é a minha mãe! Era ela o tempo todo! Tigrésius não a matou, ele torturou ela por anos e ela acha que é culpa minha! Minha própria mãe acha que sou a pior desgraça na vida dela!

- Oh, Hunna, minha querida. – Vó abraçou Hunna que desabou no choro.

- Onde está Rádara? – Carya perguntou olhando ao redor pra tentar não pensar na loucura que acabara de ouvir.

- Deuses... – Teira tremeu, temendo o pior.

- Eu vou procurar. – Carya disse e começou a se afastar.

- Carya. Tem mais uma coisa. – Hunna disse, tentando se controlar. – O filho de Eltar...

Existe mesmo.

- Como sabe? – Vó perguntou.

- Porque minha mãe fez questão de jogar na minha cara que era filho dela. – Hunna respondeu aos prantos.

-Então... O filho do meu meio-irmão é meu tio e meu sobrinho? – Carya disse. – Eu vou acabar enlouquecendo nesta família. – Ela saiu murmurando.

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Guerra dos Reis– A Batalha de Jubay

- MATEM TODOS! – Tigrésius ordenou e o caos começou.

Soldados Tiger avançaram com espadas, machados, pequenas bombas feitas com magia, garras afiadas e dentes longos poderosos. Os leoninos, como sempre em menor número, fizeram valer sua fama de bárbaros e atacaram com gritos aterrorizantes, armas semelhantes às de seus rivais, além de uma linha não muito longa de magos, estes liderados por Seth. Sem seu mago chefe, o mais poderoso mago Tiger da atualidade, é de se imaginar que o ataque mágico do exército Tiger era fácil de derrotar. Seria, é bem verdade.

Mas não foi o caso. Seth ordenava os ataques eficazmente, mas parecia se segurar, evitar ataques mais poderosos e os Tiger perceberam isso. Na guerra a exitação pode ser mais mortal do que uma lâmina bem afiada. Os magos Tiger sentiram a exitação de Seth e isso lhes deu ânimo pra lutar com todas as forças. Cada ataque mágico passou a ser liderado especialmente pelo rei Tigrésius que não era um mago, mas tinha mais poder mágico do que qualquer felino em toda Likastía.

O ataque de Seth não era fraco, não estava facilitando a vida do inimigo, mas era menor do que sua real capacidade. Lordok, no outro extremo do exército viu aquilo de longe, mas não havia muito que pudesse fazer no momento. Seu foco estava em usar o exército e o terreno à seu favor. Em sua arrogância e fúria, Tigrésius cometeu um erro nunca cometido até então. Estava atacando o inimigo em seu território que não era dos melhores pra uma batalha. Tiger era um reino essencialmente formado por florestas tropicais, praias e zonas desérticas, não haviam muitas montanhas altas ou frio. As Montanhas Amarelas eram uma cadeia de montanhas, uma cordilheira, que se extendia por metade do planeta, mais ao Norte, frio quase o ano todo. Toda Jubay, a capital, ficava no topo de uma dessas montanhas, cercada por florestas, montanhas mais altas ainda e cachoeiras. Lutar em terreno acidentado era a especialidade dos leoninos, acostumados a perambular por aquele terreno e pelas copas das árvores, mais até do que andar no chão.

Mas esse não foi o único erro de Tigrésius. Todo Tiger militar aprende desde cedo que é preciso evitar ao máximo batalhas em cidades porque elas custam caro. Nunca se sabe onde um inimigo vai se esconder, há locais que os habitantes conhecem e não estão em nenhum mapa, recursos do cotidiano que podem se tornar armas... Enfim, muitas chances de erro.

Por tudo isso, Lordok planejaram um ataque em pinça, uma das estratégias mais simples e eficazes de guerra. O plano consistia em enviar partes do exército pra cada flanco do exército Tiger, o cercando devagar e sutilmente, enquanto outra parte o distraía pela frente. Assim, o exército seria destruído pela frente, pelas laterais, e o restante ficaria

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cercado entre os leoninos. As montanhas ao redor serviam perfeitamente à esse propósito já que não havia campo aberto que possibilitasse ao exército Tiger ver claramente onde o inimigo ia. Lordok sinalizou para Rodan que começou o processo de ‘pinçar’ o inimigo, enquanto Devon alertou sutilmente à Seth pra que distraísse o rei Tiger junto com Lordok que não podia se afastar muito, ou arriscaria atrair a atenção do inimigo para o exército que o ladeava. O plano original era usar parte dos magos na lateral direita onde a maioria dos magos inimigos estavam, mas a exitação de Seth seria mais útil ali, distraindo os inimigos que começavam a se sentir confiantes demais.

- Já se cansou, velho? Pode se render quando quiser. Eu prometo te matar bem rápido e só comer sua esposinha escrava depois que te jogar do topo desta maldita montanha! –

Tigrésius provocou.

- E você lá sabe satisfazer uma mulher? Não soube satisfazer nem sua esposa que dormia com metade da sua cidade! – Lordok disse sorrindo quando o rei inimigo rugiu de raiva, soltando fogo por garras e olhos indiscriminadamente, matando inclusive alguns de seus próprios Tiger no caminho.

- Tio. – Seth chamou e, sutilmente, Lordok viu o sinal dos soldados leoninos em formação nas laterais, prontos pra atacar os flancos do exército Tiger.

- Ô TIGRÉSIUS, DEMÔNIO IDIOTA! – Lordok gritou em tom de deboche. – VOCÊ SABE O

QUE OS ANEIS ANUIN DISSERAM PRA LIKASTÍA QUANDO SURGIRAM?

Tigrésius não respondeu, mas o olhou intrigado.

- TE CERQUEI! – Lordok gritou e Tigrésius captou a mensagem, mas tarde demais. O

exército leonino já tinha começado a matar silenciosamente os Tiger nos flancos, mais afastados dos outros e seguia seu caminho matando qualquer um, sem dar chance do inimigo sequer perceber quem os atingira.

- COBRA VOADORA DESGRAÇADA! – Tigrésius berrou e o fogo foi tão intenso que queimou quase todas as suas roupas, deixando apenas proteções de bronze que usava por baixo dos tecidos em áreas vitais. – VOU TE ENSINAR À LUTAR COMO UM MACHO DE

VERDADE!

Tigrésius correu feitou louco, matando tudo e todos que passavam na sua frente, leoninos e Tiger, focado apenas em matar o rei leonino. Outro erro fatal. O rei Tiger abandonou seu posto de comando, deixando seus subordinados confusos, sem saber como reagir ao inesperado ataque pinça, temendo que seu próprio rei os matasse, sem nem mesmo um mago que pudesse lidera-los enquanto isso, já que Leviatã não estava ali e o mago que o rei levara como líder já estava morto. As espadas dos reis se encontraram, deixando ambos cara a cara, separados por meio metro, rosnando loucos de raiva acumulada por décadas.

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- Parece que você finalmente perdeu o juízo, gato. – Lordok usou a palavra mais ofensiva em toda Likastía, a que nenhum felino usava nem com seu inimigo. – Seus soldados vão morrer porque você é irritadinho demais.

- POIS QUE MORRAM! SE VOCÊ MORRER TAMBÉM EU INCENDEIO A DESGRAÇA DESSE

PLANETA INTEIRO! – Tigrésius chegava a babar de raiva. Seu exército o ouviu e congelou no lugar. Nunca antes um exército Tiger havia parado de lutar em meio a um combate. Isso era contra tudo que eles acreditavam, contra seu espírito natural de combate. Mas ouvir seu rei admitir, depois de demonstrar em ações várias vezes, que mataria a todos sem nenhum tipo de exitação, os fez se perguntar pelo que estavam lutando afinal.

Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Em sua raiva, Tigrésius abandonou a espada e tudo ao redor começou a esquentar, com ondas visíveis de calor. As folhas no chão se incendiaram, pêlos dos felinos mais próximos encolheram como se estivessem muito próximos de uma fogueira, o ar ficou insuportavelmente quente, derretendo a pouca neve no chão. A madrugada fria se tornou insuportável como estar num dos desertos de Likastía, sob o sol do meio-dia, sem pêlos para protegê-los. O próprio Tigrésius se inflamou de tal forma que pouco de seu pêlo listrado era visível dentro daquele brilho laranja, vermelho e amarelo do fogo. Seus olhos pareciam duas bolas de fogo laranja e sua voz soou como um crepitar alto e estridente de uma fogueira:

- DIGA ADEUS À SUA MALDITA CIDADE, GATO VELHO!!!! – Tigrésius usou a mesma palavra depreciativa.

Uma onda de fogo emanou do rei Tiger como um círculo ao seu redor, partindo em todas as direções.

- SOFRA, MALDITO DO INFEEEERNOO!!!

Seth enviou um de seus raios em cima do rei Tiger, mas ele, mais uma vez, não queria matar o pai, ele exitou, e o raio acabou não sendo forte o suficiente, apenas lhe dando um incômodo no braço onde fora atingido. Tigrésius se virou lentamente pro filho, com olhos ainda mais furiosos.

- TRAIDOR DE MERDA! BIXINHA!

A próxima onda de ataque foi maior e todos os dois exércitos correram para se proteger atrás de pedras, alguns leoninos inclusive ajudando os Tiger a encontrar abrigo.

Rodan correu em direção ao seu rei para protege-lo e jogou Lordok atrás de uma fonte de pedra na praça, se jogando em cima dele. Seth não teve reação e só ficou parado ali, vendo a onda de fogo se aproximar.

- PAI... EU TE PERDÔO PORQUE VOCÊ ESTÁ DOENTE. – Seth disse com um olhar de piedade que deixou o rei Tiger mais furioso do que se tivesse levado um tapa na cara.

Seth fechou os olhos e esperou a dor da queimadura. Mas a dor não veio. O calor aumentou, como era esperado, mas não o queimando. Vindo correndo pela lateral de

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Tigrésius, bem longe, Carya havia usado seu próprio poder pra enviar uma enorme rajada de fogo, empurrando a do pai e o próprio Tigrésius pra longe, onde antes estava o exército Tiger. O rei caiu a metros de distância, sobre rochas íngremes na beira do penhasco onde ficava a entrada principal da cidade.

- Você ta de sacanagem? Você perdoa? – Carya deu um cascudo na cabeça do irmão que ainda estava parado olhando atônito pra onde o rei Tiger tinha sido jogado.

- AI! – Seth gritou.

- Que porra é essa de “perdôo você porque você está doente”? – Carya fez uma imitação ridícula do irmão. – Se você morresse, idiota, eu nunca ia perdoar você!

- Carya? – Rodan veio correndo até ela.

- Não, sua mãe falando do além. – Carya respondeu irritada. – É claro que sou eu né!

Quem mais ia salvar suas bundas?

- Eu mandei você ficar em casa, caramba! – Rodan disse preocupado.

- E desde quando eu obedeço alguém? – Carya disse. – Tio, sugiro que leve todos pra longe daqui. Duvido que aquela peste tenha morrido na queda. Vou atrás dele.

- Ah não! Você não vai mesmo! Não vai colocar minha filha em risco. – Rodan disse.

- E quem vai me impedir? Você? Pois então tente! Estou grávida, não inválida! – Carya disse e os dois se encararam teimosamente.

- Querida, agradeço, mas... – Lordok começou.

- Mas nada, tio. Te amo, te respeito, mas essa luta agora é pelo trono Tiger e leonino nenhum vai se meter. Fui clara? – Carya disse e os exércitos que haviam se aproximado encaravam a tudo sem saber o que fazer.

- Falou como uma rainha. – Lordok sorriu. – Vá.

- Lordok! – Rodan chamou atenção.

- Rodan, sua esposa vai de qualquer forma. É melhor que vá com o máximo de ajuda que puder. – Lordok disse. – O exército leonino vai com você...

- Sem chance. – Carya respondeu. – Já disse que isso é um problema dos Tiger.

Ninguém, nem mesmo um Tiger deve se meter nisso.

- Carya, deixa o tio terminar, pelos deuses. – Seth disse.

- Obrigado, garoto. – Lordok disse. – Carya, conheço a tradição. Sei que ninguém pode intervir. Mas, não permitirei que Tigrésius escape. Então, se algo lhe acontecer e ele sobreviver, sabemos que ele estará muito ferido e desgastado pela batalha.

- Ou seja, - Seth completou – não poderá lutar contra a prisão leonina.

- Com licença... – Um dos soldados Tiger deu um passo à frente e Rodan instintivamente pegou a espada. O Tiger ergueu as mãos para mostrar que não pretendia atacar.

- Fale. – Carya ordenou.

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- Sabemos quem a senhora é e, já que possui as chamas de Éris, é uma possível rainha.

O que, pela lei militar vigente desde a Quarta Era, nos permite optar entre seguir suas ordens ou a do atual rei Tiger, até que a batalha ocorra e tenhamos apenas um rei para seguir. Por isso, creio que todos os meus companheiros concordam comigo, - os outros militares e magos Tiger acenaram afirmativamente pro líder – queremos servir à senhora.

- Vocês sabem que Tigrésius vai matá-los se piedade, possivelmente até suas famílias, se ele vencer, não é? – Seth perguntou.

- Sim, sabemos. Mas estamos cansados de ter medo do rei que deveríamos admirar.

Somos Tiger, não tememos enfrentar o medo. Somos Tiger, somos a coragem! – O líder colocou sua espada fincada na terra à sua frente e se ajoelhou gritando o lema mais antigo dos Tiger.

Todos os Tiger do exército, até mesmo Seth, copiaram o gesto, fincando suas espadas e cajados mágicos no chão e entoando em uníssono o lema Tiger.

- SOMOS TIGER, SOMOS A CORAGEM!

- Eu aceito o serviço de vocês. Até a batalha decidir quem os governará, vocês são meus súditos e serão tratados como tal. – Carya disse.

Quando todos se preparavam pra descer a montanha e encontrar Tigrésius, ninguém duvidando nem por um segundo que ele estava vivo, Carya contou à Lordok o acontecido no palácio. Rodan, calado e sisudo como sempre, estava de braços cruzados ouvindo tudo, mas não comentou nada.

Ela o puxou de lado e perguntou: - Eu sei que estou arriscando sua cura...

- Não estou preocupado com isso, Carya. – Rodan disse. – Eu já vivi bastante, estou sempre correndo riscos desde que consigo me lembrar. Se eu morrer hoje ou daqui a 20

anos, sei que terei vivido intensamente. O que me incomoda é Eltar. Ele não vai deixar passar. O plano era você manter sua luta em segredo pra que ele fosse o novo rei. Ele vai vir com tudo atrás de você, da nossa filha.

- Quando ele vier cuidaremos dele. Mas não vou deixar esse filhote do demônio que quase matou minha mãe e armou pra você sentar no trono Tiger.

- Você tem certeza de que quer assumir o comando de Tiger? Eu te conheço, amor. Sei que você odeia esse trabalho. Você é livre demais pra ele.

- Não quero. Deuses... Eu realmente não quero. – Carya suspirou – Mas já me escondi demais do meu dever e leoninos e Tiger estão pagando um preço alto por isso. Vou fazer o que precisar fazer. Quanto à sua cura, eu vou conseguir ela nem que eu precise cortar cada pedacinho daquele mago maldito! Não vou perder meu macho assim! Você é meu, Rodan, e não te dou permissão pra morrer ou ficar louco!

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- Como a senhora, mandar, majestade. – Rodan sorriu, meio sem graça, meio orgulhoso por aquela bela e jovem mulher o considerar tão importante pra ela. A mulher que ele mais amava nesse mundo.

Carya puxou Rodan pra um beijo apaixonado, mas parou quando seus rostos estavam a centímetros um do outro.

- Está na hora de irmos. – Seth disse.

- Irmãozinho, você é um mala, sabia. – Carya disse emburrada.

- O que foi que eu fiz? – Seth perguntou confuso, seguindo a irmã e o cunhado até o exército Tiger que os aguardava com alguns leoninos no meio.

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Guerra dos Reis- Vingança

- Te achei, mariquinha! – Tigrésius rosnou para Eltar sentado na beira de um córrego.

Eltar levantou as mãos devagar, sem se virar para o pai, temendo que qualquer movimento brusco pudesse atrair um ataque mortal do pai. O rei Tiger ergueu um braço queimado, a mão acendendo com chamas entre suas garras afiadas. Ele fez uma careta de dor quando o calor de suas chamas atingiu seus braços queimados. Uma adaga afiada voou e acertou seu braço justamente onde estava queimado. O grito dele pareceu o grito de uma fera selvagem enjaulada, fazendo os pássaros voarem de seus galhos. Aproveitando a distração, Eltar lhe deu uma rasteira e o rei caiu de bunda no chão. Já se recuperando, Tigrésius ficou de quatro e pulou na direção do filho que, num movimento ágil, pulou sobre a cabeça do pai, parou em pé atrás dele e chutou suas costas o derrubando de cara de chão. Antes que pudesse fazer algum outro movimento, Eltar colocou o pé sobre o pescoço de Tigrésius.

- Agora sim. Agora você está onde devia. Sob meus pés. SEU MERDA DE PAI! – Eltar rosnou.

Lino...Ilena...Enfim, se aproximou, apoiou um pé sobre o braço queimado de Tigrésius e puxou lentamente sua adaga ainda cravada no braço dele. O rosto do rei, voltado pra ela, ficou em choque quando a viu ali e ela sorriu.

- Que porra é essa? – O rei rosnou.

- Ah, acho que esqueci de contar, papaizinho. Peguei seu brinquedo favorito. – Eltar disse dando um sorriso enorme. – Acredita que eu demorei pra descobrir que não era um macho? Mas valeu a pena. Eu e Ilena nos divertimos muito e até temos um filho.

Os olhos de Tigrésius brilharam de raiva.

- É, majestade. O senhor é vovô de um garoto forte e saudável que eu vou criar pra ser um homem de verdade, um muito mais útil do que você. Pena que você não estará neste mundo pra ver isso. – Eltar continuou, sorrindo satisfeito pelo impacto da notícia no velho Tiger.

- Porra, moleque, você é mais burro e inútil do que pensei. – Tigrésius disse e riu, fazendo o sorriso de Eltar sumir e ser substituído por uma carranca raivosa. – Pelo menos você era a putinha de um mago poderoso. Mas agora? Olha só pra você. Pegou essa coisa feia e nojenta que já deu pra Likastía inteira, essa velha, e ainda fez um filho com essa piranha! Eu nunca vou aprovar esse bastardo, filho dessa rameira, como membro da minha família!

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- E quem disse que estou pedindo sua aprovação? – Eltar disse com tanta raiva que, sem perceber, mudou um pouco seu peso, diminuindo a força sobre o pescoço do pai.

- ELTAR! – Ilena gritou ao ver o sutil movimento do rei para se erguer.

Tigrésius se levantou num pulo, os pêlos todos eriçados, pegando o pé do filho e o jogando para baixo enquanto se erguia. Eltar caiu e sua cabeça quicou no chão, causando uma concussão. Ele se preparou para pular com os dois pés sobre a cabeça do rapaz, mas Ilena foi mais rápida e empurrou Eltar para longe, ambos caindo à alguma distância, rolando até parar com um baque no tronco largo de uma enorme sequóia.

- Eltar! Ei! Olha pra mim! – Ilena gritou erguendo o príncipe Tiger que estava tonto e confuso.

- Para de gritar, imbecil! – Ele disse e pensou: Vou me vingar disso, seu merda! Nunca mais vou deixar você me bater!

Tigrésius andou até eles devagar, sentindo dores pelo corpo que, sem boa parte de sua roupa real que o protegeria, acabou levando um impacto muito maior pelas chamas de Carya. Isso ainda rodava em sua mente. Existia uma razão lógica pra que apenas o rei Tiger tivesse as chamas de Éris e uma delas era que ninguém poderia ferí-lo com o fogo normal.

O fogo era como um bálsamo de energia para o possuidor do poder das chamas, mas, isso não se aplicava às chamas de Éris se viessem de outro guardião. Ele se recusava a acreditar que a lenda sobre Kallisti escolhendo outro guardião para derrotar o rei Tiger fosse real. Ele se via como um deus, maior do que as luas, os anéis que circundavam o planeta, mais poderoso do que a própria Kallisti! Tinha que ter outra explicação. Sua filha, criada por aquela mulher que sempre lhe despertara um misto de nojo e desejo, sua ex esposa, e pelo traidor do Fagrir, uma mera fêmea fraca como qualquer outra, não podia ser escolhida para possuir um poder tão grande. Não mesmo. Ele só tinha certeza de uma coisa: Leviatã e Eltar sabiam e com certeza tinham um dedo nessa história.

- Anda! Levanta! Temos que matar esse desgraçado, aproveitar que eles está fraco! –

Ilena disse, meio histérica.

- Como você é burra, caramba! Como espera que a gente mate esse filho de mil escorpiões!? Com sua faquinha? – Eltar vociferou, ainda tonto e enjoado.

Ilena que o ajudava a se levantar, não percebeu, mas Eltar ficou em pânico vendo que o pai já estava muito perto com fogo nos olhos e emanando um calor suficiente pra incendiar as plantas próximas. Tigrésius ergueu o braço na direção dele e as chamas se ampliaram rapidamente num fluxo violento e espiralado de fogo. As pupilas de Eltar, com seus olhos arregalados, refletiram as chamas na mão do pai. O rei iria matá-lo. Ele sentiu a morte próxima, por uma fração de segundos o mundo parou como se estivesse congelado.

Imagens de sua vida brotaram como uma enxurrada avassaladora em sua mente. Imagens dos poucos momentos felizes, seus prazeres, lembranças da infância correndo brincando

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pelo jardim, coisas que ele esquecera com o tempo, momentos felizes nos braços de sua namorada que ele tanto amava até seu pai abusar com ajuda de Leviatã até a menina morrer, imagens de sua mãe se entregando para vários homens diferentes, a morte da pobre serva que ele tentara defender quando criança, as surras que recebera dos pais até desmaiar, os abusos e a violência de Leviatã, os dias e noites nas masmorras com fome e frio... Tudo que ele pensou era que não queria morrer. Não depois de tanta luta pra subir no trono, pra derrotar seus inimigos e destruir o reino Tiger por nunca ter sido salvo ou defendido por ninguém.

Tigrésius sentia uma fúria incontrolável ainda pior desde que Khara o traíra. Ele só queria queimar tudo e todos. Fazer todos pagarem por suas frustrações. E, naquele momento, Eltar e Ilena eram o alvo da única coisa que ele pensava desde que conseguia se lembrar, todas as vezes que alguém o contrariava, mesmo nas menores coisas: vingança.

As chamas seguiram em direção à Eltar, enquanto Tigrésius gargalhava feito um louco.

Bem...Ele era mesmo louco ne, mas enfim... Num impulso, Eltar puxou Ilena e a colocou em sua frente. Ela arregalou os olhos surpresa e então os gritos de dor ecoaram pela floresta.

Era um grito tão aterrorizante que faria até o mais corajoso dos seres se arrepiar da cabeça aos pés. O odor de carne queimada dominou o local e, se aproveitando da enorme labareda de fogo que Ilena se tornara, a fumaça escura, ele se virou e correu. Correu como se mil demônios famintos estivessem em seu encalço. Não estavam, mas Tigrésius estaria assim que percebesse que o corpo incendiado não era o do filho. E o rei Tiger era pior do que mil demônios famintos quando estava furioso.

~o~

O exército incomum formado por leoninos e Tiger seguia a liderança de Carya e descia a montanha cuidadosamente, o mais silencioso possível, em meio às árvores à procura do rei Tiger. Um grito foi ouvido por um dos Tiger, um cabo que marchava atrás, um dos últimos. Ele explicou ter ouvido um som longínquo, como um grito felino, bem distante.

Ninguém duvidava. A audição e a visão Tiger eram realmente fenomenais. O grupo se virou na direção de onde o rapaz dizia ter vindo o som e seguiram. Era um movimento inteligente. O som vinha possivelmente de uma altura não muito longe de onde Tigrésius tinha sido jogado, mas em outra direção. Ele estava descendo a montanha circundando-a, ao invés de descer em linha reta. Demoraria mais, porém as chances de encontrar seus inimigos na descida eram menores já que eles desceriam provavelmente em linha reta.

- O pilantra pode até ser um filho da mãe nojento, mas é inteligente. Isso não se pode negar. – Devon disse ao lado de Carya.

Eles se falavam pouco desde aquele dia em sua casa, mas se tratavam com respeito.

Carya desistira no último minuto e pedira para Rodan ficar. Afinal, apesar de ser seu

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marido, ele era uma espécie de guarda pessoal do rei e não seria bom deixar Lordok sozinho, sem parte de seu exército. Mas, principalmente, Carya sabia que Rodan poderia interferir na briga se a coisa ficasse feia e Tigrésius tivesse chance visível de vencer. Ela não podia arriscar por inúmeros motivos. Um deles é que ela não estava com paciência pra Rodan no modo superportetor. Carya sabia que a relação de Devon e Rádara era péssima.

Ela conhecia bem a amiga pra perceber certos sinais sutis. Devon disfarçava, mas parecia extremamente magoado. Não seria bom ele voltar para casa naquele momento, não depois da tentativa de Rádara em beijá-la, de novo, em seu quarto quando a libertara das amarras.

Assim, ela achou mais prudente levar Devon como seu braço direito nessa batalha.

Leoninos pulavam de árvore em árvore com maestria, nunca fazendo nem o mínimo ruído. Tiger seguiam em solo, atentos, prontos para qualquer coisa, sempre silenciosos e com movimentos tão coordenados que pareciam um único ser com inúmeros braços, pernas e cabeças. Carya ordenou que um pequeno grupo de espiões leoninos seguisse alguns metros à frente. Tigrésius era astuto e aquilo podia muito bem ser uma armadilha.

Um segundo grito ecoou, dessa vez alto o suficiente para todos ouvirem. Os espiões voltaram e confirmaram que o rei Tiger estava perto do rio, jogado no chão, sob os pés do príncipe Tiger e de um felino de aparência bizarra.

Lino. Carya pensou.

O grupo seguiu ainda mais silencioso, parando numa elevação de terra cerca de 5

metros de distância, com uma visão perfeita da margem do pequeno rio que mais parecia um riacho. O grupo se abaixou para não ser visto e focou os olhos para ampliar a visão.

Carya ficou gelada assim que percebeu o que via. Tigrésius emanando um calor enorme, um braço estendido já com chamas visíveis. Eltar estava à frente, com as costas apoiadas numa sequóia, olhos arregalados de terror, um braço sendo apoiado por Lino ao seu lado e de costas para o rei. Com um sinal, Carya ordenou que um dos arqueiros Tiger atirasse no braço de Tigrésius que, assim como parte de seu corpo seminu, estavam queimados. O

arqueiro se levantou, pegou rapidamente seu arco. Mas não foi rápido o suficiente. No exato momento em que o rei lançou uma labareda assustadora, Eltar puxou Lino para sua frente, virando a pobre felina de frente para Tigrésius. O fogo a atingiu em cheio.

Provavelmente Tigrésius nem percebeu que não era Eltar ali, com sua visão tampada pelo fogo da labareda. O grupo de Carya só conseguiu ver porque estavam na lateral da cena. O

grito de Lino foi assustador. Todo mundo ficou gelado, trêmulo e arrepiado como se tivesse acabado de sentir o sopro do capeta na nuca.

Carya só teve presença de espírito para fazer sinal pro arqueiro se abaixar. Ele, por sua vez, precisou ser puxada pela mão por um companheiro agachado ao seu lado. Ninguém nem piscava, os olhos presos à cena enquanto Eltar virava as costas e corria. Carya nem mesmo teve forças pra mandar ninguém seguir o príncipe. Também não importava. Ela se

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acertaria com ele depois. O foco agora era seu pai lunático. A missão tinha que vir em primeiro lugar. Ela respirou fundo algumas vezes e Seth ao seu lado apertou sua mão transmitindo uma onda de foco. Não magicamente. Não era isso. Só a presença dele ali parecia suficiente para trazê-la de volta à terra. Ela lembrou imediatamente do estado em que o encontrou na estrada depois da morte da mulher e do filho, de como ele ficara depois, das histórias de sua mãe e de Teira, do rapto de sua amiga Rádara que devia ter sofrido horrores com aquele rei, seu próprio nascimento conturbado, até mesmo as coisas loucas que ouvira sobre a criação de Eltar. Sua mente focou na única coisa que lhe importava desde que fora transformada na nova Guardiã das chamas de Éris: vingança.

Era hora de acertar as contas.

~o~

Tigrésius abaixou o braço irritado porque o calor estava causando bolhas em sua pele sensível, exposta com aquela queimadura horrível. Ele se aproximou do corpo preto, totalmente carbonizado, em alerta. Afinal, só havia um corpo. Então, ou Eltar ou Ilena haviam escapado e podiam estar de tocaia. Quando chegou ao corpo não precisava ser gênio pra perceber que não era Eltar. A altura era muito diferente. Ele começou a praguejar mentalmente, mas um zumbido bem fraco, muito sutil, quase imperceptível se ele não estive em total alerta, o fez virar-se abruptamente e segurar uma flecha Tiger, muito próxima a seu rosto, na altura dos olhos.

- TRAIDORES! – Ele berrou vendo dois arqueiros parados de pé onde ele estivera minutos antes, jogado ao chão, pisoteado pelo filho. – VOU MATÁ-LOS POR ISSO!

Ele ergueu a mão, mas um farfalhar à sua direita chamou sua atenção. Com o canto dos olhos viu mais soldados Tiger, com as armas sacadas, de pé em uma elevação de terra de onde ele pulara minutos antes, sorrateiramente para pegar o filho de surpresa. Acima deles, nas árvores viu movimentos sutis e, mais atentamente, viu leoninos agachados em galhos com suas armas em punhos. Do rio, do nada, mais soldados Tiger emergiram da água silenciosamente apenas o suficiente para que seus olhos e narizes ficassem à mostra.

Eram seus especialistas em mergulho e só então Tigrésius percebeu que aquele pequeno rio era muito mais fundo do que parecia. Acima dele, ele não precisava erguer a cabeça para saber que haviam mais leoninos em galhos. À sua frente, mais arqueiros Tiger e leoninos se juntaram aos dois primeiros. Atrás dele, mais sons de folhas. Ele não era burro pra se virar e dar chance dos arqueiros à frente ou qualquer um o atingir com uma flecha.

Mas sabia que haviam mais soldados.

- Leoninos e Tiger juntos? QUE MERDA É ESSA? ESTÃO ENFEITIÇADOS? – Tigrésius gritou. Ninguém respondeu. Todos estavam apenas o encarando sem dizer uma palavra.

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Isso era como invocar o diabo em seu corpo. – O QUE? SEUS MERDINHAS! ACHARAM

MESMO QUE UMA FLECHINHA IA ME MATAR??? EU SOU UM DEUS, SEUS BOSTAS!

- Não. – A voz de Carya, doce e firme, soou entre os arqueiros que abriram passagem para ela, saindo com um arco de sua altura na mão. – Mas quis me divertir te assustando um pouco.

- Você...

Assim que Carya passou, os soldados fecharam a abertura atrás dela. Ela colocou uma mão na cintura, olhou pra ele com uma cara de poucos amigos. – Eu. Espero que esteja pronto, rei. – Ela disse a última palavra com nojo.

- Pronto para o que, garotinha demente? Você não é uma ameaça. É fraca como toda fêmea, especialmente como a piranha da sua mãe!

A vontade dela era avançar e quebrar a cara dele, mas Seth a havia prevenido.

Tigrésius era perigoso especialmente porque era esperto. Se ela agisse impulsivamente, se perdesse o autocontrole, seria seu fim. Ela não podia perder. Queria ver seu marido naquela noite. Ver sua filha nascer, crescer, se tornar uma mulher admirável. Tigrésius havia tirado muito dela, de Seth, de sua mãe e até do reino Tiger. Ele não tiraria seu futuro também.

Ela manteve isso em mente e apenas respondeu: - Que coisa interessante. Parece que você vai morrer pelas mãos desta mulher aqui então. Morto pelas mãos de uma mulher

“fraca”, papaizinho. Vou adorar contribuir com a ironia disso. Prepare-se para lutar pelo trono.

Vou matar essa vagabundinha tão rápido que ela nem vai ter tempo de perceber que morreu. Depois cuido do maricas e do mago traidor. Tigrésius pensou.

Carya entregou, sem se virar, o arco para um dos soldados Tiger atrás dela e deu três passos à frente. Tigrésius deu três passos à frente e parou a encarando. Ambos tinham olhos flamejantes. Cascalhos, terra, folhas e galhos rodopiavam sob seus pés com a onda de calor, algumas folhas se incendiando e se tornando pequenas brasas rodopiantes. Tigrésius babava feito um animal raivoso. Carya tinha os dentes à mostra, apertando a mandíbula de um jeito que chegou a estalar. Os soldados atrás de cada um deles deu alguns passos para trás, evitando o calor e se manteve ali, apenas observando.

O rei Tiger ergueu a cabeça soltando um rugido assustador enquanto Carya fazia o mesmo. O céu começou a clarear com a chegada do sol oculto pelas montanhas e árvores.

Mas não havia briza matinal. Não haviam os costumeiros ventos agitando as árvores naquela altitude. Era como se a própria natureza tivesse parado para observar a cena enquanto o símbolo máximo de Kallisti, o sol, se erguia lentamente. Os braços de Carya e do rei se transformaram em fogo puro e ambos avançaram em direção ao outro, rosnando ferozmente.

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Um dos dois se vingaria do outro.

A vingança seria cumprida.

Mas a de quem?

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Guerra dos Reis- O preço do poder

Seth observava a cena atentamente fazendo seu papel de mago, um religioso que devia impedir que qualquer um quebrasse as regras daquele combate em que ninguém poderia se envolver. Não era fácil. Ele realmente queria que o pai se curasse daquele estado constante de ódio. Não queria que sua irmã carregasse o peso do assassinato do próprio pai nas costas, mesmo um pai como aquele. Mas, ele era um mago e um mago nunca contestava as leis divinas. As regras de combate diziam que os dois guardiões das chamas podiam usar qualquer tática, golpes, estilos de luta... Só não poderiam usar armas de nenhum tipo. Nada de arcos, espadas, machados... Nada que não fossem seus corpos e seus poderes de fogo. Seth estava ali também para garantir que o vencedor tivesse seguido essas regras.

Carya e o rei se transformaram em fogo puro e ambos avançaram em direção ao outro, rosnando ferozmente. Tigrésius desferiu dois socos seguidos, um de direita e um de esquerda, em Carya, com seus punhos em chamas, mas a moça esperava por isso. Ela desviou do primeiro golpe se abaixando e acertando o estômago do rei enquanto ele dava o segundo soco, perdido no ar. Tigrésius cuspiu fogo misturado com sangue, a dor do golpe da menina o deixando com uma raiva quase cega. O ódio de Tigrésius o tornava ainda mais perigoso, sem limites.

Antes que Carya tivesse tempo de se afastar, girando para o lado, o rei a atingiu com um soco nas costas que a fez gritar de dor e se abaixar um pouco mais. Ela desistiu do plano de se afastar, agarrou as coxas do rei que dava mais e mais socos em suas costas. Ele ouviu um ‘crack’ de algum osso interno se fragmentando. Tigrésius só urrava de dor e raiva, socando Carya pra que ela o soltasse, caísse no chão e ele pudesse pisoteá-la. O corpo dela em chamas machucava mais ainda suas pernas e seus punhos. Ela forçou seu poder até as chamas alcançarem as axilas do rei. Ele aguentou o quanto pôde, mas, quando as chamas atingiram a pele mais sensível da virilha ele sentiu que não suportaria, quando atingiu as axilas... Foi demais. Ele deu um grito gutural que fez os soldados dos dois exércitos estremecerem. Ele a soltou e chutou aleatoriamente, cada chute emanando uma onda de fogo na direção dela, mas ela desviou de todos por cima e por baixo dos fluxos de fogo. Os soldados ao redor deram passos para os lados, deixando o fluxo passar por eles e atingir as árvores. Seth habilmente apagou o fogo das árvores com sua magia, enquanto outras eram apagadas por soldados leoninos e Tiger levando água do riacho.

Carya teve o cuidado de enviar o fogo na direção do rei, tendo cuidado pra não se aproximar muito dele que era fisicamente mais forte. Ele desviava de cada fluxo enviado,

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mandando mais chamas ainda mais fortes e violentas do que as dela. Mas Seth e Rodan a preparam para isso. Ela sabia bem o que estava fazendo. Pelo menos ela esperava que fosse assim. Cada movimento a fazia se contorcer sutilmente de dor. As queimaduras nas costas em formas de círculos em seus pêlos listrados e os ossos possivelmente trincados.

Tigrésius era militar a muitos anos, filho de militar, neto de militar... Apesar de sua raiva que quase o cegava (ênfase no quase) ele não era burro. Sabia avaliar um oponente, usar suas dores e fraquezas contra ele. Pra ele Carya, mesmo com todo aquele poder, tinha duas fraquezas: era mulher e estava grávida. Era hora dele usar o plano que vinha bolando desde que ela o jogara daquela maldita cidade.

Mas ela não era burra. Sabia que, apesar de ser militar e fisicamente forte, não era mais fisicamente mais forte do que o rei Tiger. Se aproximar dele assim era perigoso, principalmente por ele ser tão raivoso e descontrolado. Evitar o contato físico ao máximo era uma estratégia que Seth insistira com a irmã durante todo aquele tempo de preparação. Mas Carya não era muito diferente do pai nesse sentido. Ambos eram impacientes, teimosos, irritadiços. Tigrésius precisava se aproximar dela só um pouco e ela precisava que ele desse um único vacilo em sua postura de combate, só um, para atingí-lo mortalmente. Aquilo virou um empasse irritante, mas Carya não queria se aproximar. Seth usava todo seu treinamento de mago pra manter a calma, mas todos os soldados se contorciam ansiosos. Seth sabia que era uma questão de quem ia perder a paciência, sua irmã intempestiva ou seu pai raivoso. Ele estava silenciosamente rezando por ambos mantendo a paz e ficando no impasse. Mas sabia que isso era impossível.

- O que foi, velho? Com medo de brigar no soco com uma mulher? – Carya provocou, rezando pra que ele deixasse a raiva o dominar, corresse pra ela abaixando a guarda.

- Parece que a bastarda herdou o gosto da mãe por apanhar. – Tigrésius se segurou com dificuldade pra tentar fazer a menina perder o foco e se aproximar. – Preciso ensinar aquele velho corno do seu marido a te dar uns murros na cama? Ou ele já te deixa toda destruída com suas garras entre suas pernas?

Carya trincou os dentes e mandou uma rajada de fogo com as duas mãos, muito mais fortes do que as anteriores, na direção da cabeça dele. Com alguma dificuldade, ele desviou, uma de suas orelhas sendo queimadas no processo, pegando fogo como um fósforo. Ironicamente, quando ele apagou o fogo com os dedos, a marca que ficou era muito parecida com o corte na orelha de Hunna causado por ele anos antes. Carya sorriu percebendo a ironia. – Oooown. Que lindo. A mamãe vai adorar saber disso.

- Você não vai ter tempo pra contar pra ela, piranha bastarda! Vou fazer você implorar pra morrer assim como sua mãe implorava pela morte! – Tigrésius fez um movimento abaixando a guarda e, como esperava, Carya atacou com as chamas. Ele recuperou a posição de guarda e enviou outra rajada de fogo. Mas não em direção à ela. O fluxo batia

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de frente com o dela causando uma espécie de bolha dourada-alaranjada brilhante onde os fluxos se encontravam, impedindo que ambos pudessem enxergar o outro. Em pouco mais de um segundo, ele enviou uma rajada de fogo um pouco maior que se manteve no ar enquanto ele movimentava-se em direção à ela, pela lateral. Foi tudo tão rápido que mesmo os que observavam de fora tiveram dificuldades pra ver os movimentos do rei.

Quando Carya percebeu o fluxo de fogo em sua direção diminui bruscamente até que ela visse o local onde o rei estava, rapidamente percebeu que ele se aproximava por um dos lados. Ela era ágil, mais ágil do que ele que tinha muito mais músculos, mas o elemento surpresa venceu. Ele a agarrou pela calda, sua mão ardendo com as queimaduras vindas do corpo dela, mas a raiva meio que anestesiando parcialmente a dor. Ele colocou a mão dentro do cano da bota amarrada ao tornozelo e tirou um chicote fino de três pontas que carregava ali apenas para usar nos escravos e animais.

Carya viu apenas um relance do objeto antes que ele descesse sobre suas costas já machucada pelas queimaduras e hematomas. O chicote triplo desceu com tamanha força que causou três linhas finas e profundas de sangue. O poder de fogo se mesclou com o objeto, transformando-o num chicote de fogo. Ele a golpeou mais e mais vezes, tão rápido e violento que Carya não conseguia mais manter a visão focada.

- HAHAHAHAHAHA! HAHAHAHAHA! – Tigrésius ria como se fosse um louco sádico.

Bem, ele era um louco sádico mesmo. – AHAHAHAHAHA! SANGRA FELINA IMUNDA!

SANGRA!

As costas de Carya estavam tão feridas que mal se via pêlos no meio de tanta queimadura. O que mais doía era a humilhação e a diversão que ele sentia. Carya nunca o vira como pai de nenhum jeito. Mas, mesmo assim, doía saber que o felino que ajudou em sua concepção se divertia assim com a dor dela. Agora ela conseguia entender um pouco da raiva que Eltar sentia.

- Você não pode fugiiiiir. – Tigrésius cantarolou alegremente – Felinos perdem o equilíbrio quando são segurados pelo raaabooo. Eu vou matar você, insolente imprestáááável.

- PARE! – Seth disse e lançou um raio em direção ao chicote. Essa era a única interferência que ele podia aplicar.

O raio passou pelo chicote triplo sem atingí-lo, pois Tigrésius o abaixava nas costas de Carya justamente naquele segundo. O raio atingiu a rocha mais distante, na lateral do rei.

Tigrésius olhou furioso pro rapaz e, usando o chicote como se fosse uma “varinha mágica”, lançou um fluxo de fogo poderoso contra Seth. Era idiotice criar um escudo mágico contra as chamas de Éris, a magia mais poderosa de Likastía. Então ele fez o que todos os soldados sensatos ao seu redor fizeram: desviaram. Tigrésius nem prestou atenção no percurso que o fluxo faria. Ele mataria Seth e todos aqueles traidores depois que acabasse com Carya. Ele

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se voltou para ela, ciente de que mais um pouco de “diversão” a chicoteando, e ela morreria. Antes que toda sua atenção, porém, estivesse em Carya, ela se aproveitou da distração dele e ampliou o próprio poder, focando em seus olhos, ergueu a cabeça de olhos fechados e os abriu. Duas rajadas enormes de fogo, maiores que as que o rei lançava com as mãos, surgiram e atingiram a copa da árvore acima deles.

Tigrésius olhou espantado. Ela era muito mais poderosa do que imaginara e isso, pela primeira vez em muitos anos, o fez sentir medo. E ele odiava esse sentimento.

- Errou, piranha bastarda. – Ele riu, pois o ataque nem chegara perto dele e nem poderia na posição em que estava, atrás dela a meio metro, segurando sua calda.

- Tem...certeza? – Carya se virou pra ele e sorriu que o fez pensar estar vendo o próprio sorriso num espelho.

Ele olhou para cima e um galho enorme desceu em brasa sobre ele.

- FILHA DE... – O galho o atingiu com força e o derrubou, as folhas em brasas caindo sobre seu corpo.

Carya se afastou ofegante, mas não de cansaço. Era raiva. Pura e implacável. Seth fez menção de se aproximar pra ajuda-la, mas ela olhou pra ele de um jeito que o fez congelar no lugar.

- SAI SEU MERDA! EU SEI QUE VOCÊ TA VIVO! – Carya berrou, arfando de raiva, se sentindo sufocada, como se pudesse engasgar com o próprio ódio.

O silêncio só era quebrado pelo som do crepitar do galho e suas folhas. O calor do sol atingia sua pele e ela se sentia ainda mais poderosa, mais furiosa.

- LEVANTA! – Carya berrou de novo, a água presente no solo começou a evaporar, mesmo a uma boa distância dela, tamanho era o calor que emanava.

- Carya, mana, ele morr... – Seth disse, tentando acalmá-la à distância.

- CALA A PORRA DA BOCA, SETH! – Ela gritou com tanta violência que Seth se assustou.

Ela não era uma pessoa muito gentil, mas nunca fora tão agressiva antes. Ela parecia louca.

Mais silêncio. Minutos passaram e nada. Quando Seth ia abrir a boca de novo, entoando um encantamento pra tentar amenizar a fúria dela, o galho creptante se ergueu.

Não. Não era o galho, apenas. Tigrésius levantava com dificuldade, muito queimado e ferido, mas igualmente furioso como Carya. Com ambos os braços erguidos ele levantava o enorme e pesado galho.

- RAMEIRA DESGRAÇADA! – Ele berrou e jogou o galho na direção dela. Ela desviou por um milímetro, parte do galho atingindo a perna dela deixando uma fratura exposta na altura do tornozelo.

Ele não pensou duas vezes. Grávidas ficavam pesadas, sem agilidade, mesmo uma com o ventre tão pequeno. Ele correu até ela e deu um soco na direção do ventre dela, mas

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Carya segurou o punho dele pouco antes de atingí-la. Seu olhos furiosos e flamejantes se encontraram, ambos desejando arduamente a morte do outro.

- Você. Nunca. Vai. Tocar. Nela. – Carya disse, quase babando com a raiva. Ela ergueu o joelho da perna fraturada, ignorando a dor pulsante, e o atingiu entre as pernas.

- DESGRAAAAÇAAAAAAAAAAAAADAAAAAAAAAAAAAA! – Ele gritou, caindo de joelhos diante dela. Ele de joelhos? Isso era imperdoável. Ele segurou o tornozelo ferido, bem em cima da fratura, e apertou deixando o fogo emanar. O cheiro de sangue e pêlo queimado era nauseante e os soldados ao redor tamparam os narizes.

Carya, em pé com dificuldade, segurou a cabeça dele a ergueu e deu uma dentada forte e profunda no olho esquerdo do rei que urrou de dor e apertou mais a fratura pra que ela o soltasse. Mas Carya era imparável. Ela continuou mordendo e afastou-se lentamente, puxando uma artéria sangrenta do olho dele que estava em sua boca. Tigrésius ficou com um buraco escuro e nojento no lugar do olho esquerdo enquanto Carya mastigava lentamente e engolia o olho arrancado, um fio de sangue escorrendo do canto de sua boca.

Os soldados sentiram seus estômagos revirarem. Alguns vomitaram, outros ficaram petrificados sem conseguir desviar o olhar daquele horror. Seth sentiu o sangue gelar nas veias e teve um espasmo trêmulo.

- VAGABUNDA! EU VOU TE MATAR! EU VOU ARRANCAR CADA MEMBRO DO CORPO

DO SEU MARIDO E FAZER VOCÊ ENGOLIR! EU VOU ARRANCAR ESSA CRIA IMUNDA QUE

VOCÊ CARREGA, FRITÁ-LA E DEVORAR... – O rei gritava, beirando a histeria.

- Você vai é morrer, esgoto fantasiado de Tiger. – Carya disse e seu corpo inteiro brilhou como uma tocha, ainda segurando o rosto dele. Mais, mais, mais, mais...Até que tudo que podia ser visto era uma forma bípede com uma calda brilhante, uma luz dourada, um sol em forma felina. O calor era imenso. Os soldados e Seth pularam na água, afundaram e ficaram lá, sentindo a água acima deles esquentar.

Carya manteve o olhar furioso nos olhos do rei aos seus pés. Tigrésius ainda balbuciava ofensas, mas ela não as ouvia mais. Se sentia poderosa, furiosa, esperançosa, justiceira, possuída por uma força maior do que ela podia mensurar. Era como se toda a energia do universo estivesse a preenchendo e exigindo o corpo, a vida de Tigrésius.

- EU NÃO VOU MORRER NAS SUAS MÃOS, SUA PUTINHA NOJENTA! EU SOU IMORTAL!

EU SOU O REI! EU SOU UM DEUS! – Ele gritou.

Carya ouviu, mas sua mente só processou a última frase. Então ela disse com uma voz que ecoou por toda a floresta, uma voz divina, que não era dela e ela sabia disso. – Você não é um deus, Tigrésius, usurpador do trono e do poder Tiger. Você matou Estefan, meu escolhido. Agora morrerá com o fogo que roubou dele.

Mesmo embaixo d’água, todos puderam ouvir claramente a voz que parecia vir de todos os lugares, dentro e fora de seus corpos. A curiosidade os fez se erguer um pouco na

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água, apenas o suficiente para que seus olhos e orelhas ficassem visíveis. O corpo de Carya voltava aos poucos ao normal, segurando a cabeça de Tigrésius, intocada pelo fogo, mas o corpo dele estava negro e carbonizado. Quando toda a luz e o calor do corpo de Carya sumiu, uma brisa gostosa atingiu a floresta e o corpo de Tigrésius simplesmente se desfez em cinzas, sendo levadas pelo vento. Carya estava esgotada e mais ferida do que imaginava. Uma dor terrível atingiu seu ventre. Ela largou a cabeça do rei, intacta exceto pelo olho arrancado com marcas de mordida, e se agachou com os braços na barriga.

Devon foi o primeiro a notar que uma poça de sangue se formava embaixo dela, saindo do meio de suas pernas. Ele correu, com Seth e o exército logo atrás.

Rania... Agora não filha... É cedo demais... Aguenta... Por favor... Carya pensou desesperada quando notou o sangue escorrendo por suas pernas. Ela desmaiou assim que Devon encostou nela.

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Alianças Tiger

- PARE DE BESTEIRA! VOCÊ FEZ COISA MUITO PIOR COMIGO! – Eltar estava descontrolado desde que chegara.

- Nunca fiz nada que você não gostasse. E fale baixo, moleque idiota! Vai acordar seu filho! – Leviatã disse entredentes, controlando a raiva.

- É bom pra ele aprender a dormir alerta como um guerreiro de verdade. – Eltar disse dando um soco na mesa.

- Ele só tem dois anos!

- Com dois anos meu pai já me colocava pra dormir na praia, sozinho, sem coberta, comida, abrigo e água, por coisas tolas. Kursk tem sorte de ter uma cama, pelo menos!

- Vou ignorar essa bobagem... – Leviatã disse com um olhar perigoso que Eltar conhecia bem. O mago estava a ponto de perder o controle. – Você mentiu pra mim, o que não é uma surpresa, honestamente. Mas me trair? Isso foi no mínimo burrice, garoto.

- Eu não traí você. Eu usei um recurso que encontrei e que você com seu reizinho de merda desperdiçavam. Lino...Ilena...Aquela piranha, podia ser uma imunda ambiciosa, mas também era muito boa em cumprir ordens.

- Não era. Porque acha que a mantivemos lá, presa? Ela só te obedeceu porque vocês tinham planos semelhantes. O que me faz pensar... Ilena com certeza queria minha morte...

Você prometeu isso a ela também, não foi?

- Claro que prometi! Se eu dissesse que somos amantes e aliados ela nunca teria me obedecido.

- Então não pretendia me matar? – Leviatã perguntou, seu olhar parecia um lobo faminto observando um coelho indefeso na floresta.

- Lógico que não! De onde tirou esse absurdo? Sabe que te amo! – Eltar disse parecendo ofendido com a desconfiança do mago.

Leviatã apenas o observou por alguns segundos, sério, não demonstrando seus sentimentos. Então sorriu como fazia quando dominava o príncipe em seu quarto.

- Claro que ama. Não se preocupe, meu rapaz adorável, acredito em você. – O choro de Kursk atraiu a atenção do mago.

- INFERNO! ESSE MOLEQUE NÃO CALA A BOCA NUNCA! QUIETO PESTE! – Eltar gritou entrando no quarto e ergueu a mão pra dar um tapa no pequeno Tiger deitado na cama.

Leviatã se aproximou tão rápido que nem mesmo ele soube como fez aquilo estando tão cansado. O mago segurou o punho do príncipe ainda no ar com tanta força como a que aplicava nos golpes sádicos que lhe dava durante os atos sexuais bizarros. Eltar olhou pra ele confuso e irritado.

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- Você não vai tocar nesse menino. Fui claro, Eltar? – Leviatã disse com a voz de comando dos magos, como uma lei divina, o ódio brilhando em seus olhos.

Fazia anos, muitos anos, que o mago não o chamava pelo nome, desde que Eltar se rendera e passara a ceder aos caprichos do Tiger mais velho sem contestar. Leviatã só o chamava pelo nome daquele jeito quando estava muito irritado. Um medo antigo, adormecido ao longo dos anos de submissão, se ergueu no príncipe ao ouvir o mago tratá-lo daquela forma. Ele lembrava muito bem os castigos que sofria...

- Si...sim... – Eltar gaguejou.

- Sim? Só isso? Perdeu a educação que lhe dei? – Leviatã estava tremendo internamente pela raiva. – Sim, o que?

- Sim, meu amor. – Eltar completou.

- Melhorou. – Leviatã o soltou e se virou para pegar Kursk no colo. O garoto começou a se acalmar um pouco com as caras bobas que o mago fazia. Ele sentou na cama com o menino no colo e disse com desprezo, sem olhar para o príncipe: - Saia e pegue as frutas e o leite que mandei! Corte-as, amasse-as e misture bem no leite morno e traga pro meu garotinho. Não demore, inútil!

- Si...sim... – Eltar disse e o mago soltou o ar com raiva. O príncipe corrigiu: - Sim, meu amor.

Ele saiu, pegou tudo que o mago tinha ordenado, voltou e começou a preparar a comida do garoto que já o tirava do sério.

Talvez esse moleque não sirva como meu herdeiro. É bundão demais. O melhor será matar essa coisa inútil e depois eu pego uma piranha qualquer de uma família nobre e produzo um herdeiro mais útil. Leviatã já terá cumprido seu papel e o matarei também...

Mas... Se eu matar esse pivete filho de uma rameira agora o mago perceberá que fui eu.

DROGA! Mas...E se... Claro! Só preciso fazer com que o mago de merda pense que foi culpa dele! Eltar, além de lindo, você é muito esperto. Ele pensou com um sorriso tão meigo no rosto que qualquer um que visse pensaria que ele estava pensando em doces, flores e animaizinhos fofos da floresta.

~o~